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Marcha contra o saber: o golpe militar de 1964 e o AI-5 na Universidade de São Paulo | C. Giannazi

Marcha contra o saber, título mais eloquente não poderia ser dado para uma obra cujo foco é entender os impactos causados pelo regime militar no sistema universitário brasileiro. O livro é resultado da dissertação de mestrado1 de Carlos Giannazi, defendida em 1995 na Faculdade de Educação da USP. Sua motivação ao realizar a pesquisa foi a de levar à compreensão de como a ditadura transformou os setores da educação em inimigos privilegiados. A obra está dividida em prefácio (escrito por Vladimir Safatle), introdução, dois capítulos e conclusões. Algo que merece atenção é que os capítulos não possuem títulos definidos e carregam uma variedade de subtítulos sobre os casos que aconteceram durante o período abordado.

Giannazi reflete sobre os efeitos das arbitrariedades do regime para que não caiam no esquecimento e que suas consequências não continuem se prologando em silêncio na sociedade brasileira. Lançado em 2014, ano de 50 anos do Golpe de Militar, a obra permite que o leitor entenda que o saber se configura como um elemento de poder. Demonstra que não apenas as Ciências Humanas tinham sido constituídas como inimigas da ação da Ditadura, mas que o espectro das atitudes desta era muito maior, atingindo diversas áreas e setores educacionais.

É inegável o impacto do AI-5 em toda a sociedade brasileira, mas o autor, em sua pesquisa, optou por analisar seus efeitos no âmbito da atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na época chamada de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
As fontes utilizadas na investigação foram atas das reuniões da Congregação, publicações realizadas pela USP e o dossiê Brasil, nunca mais, publicado pela Comissão de Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de São Paulo, sob responsabilidade do cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Por meio da análise dessa rica documentação, o autor nos auxilia a entender as posições encontradas no interior da instituição que, mais tarde, seria desmembrada, dando origem a outras unidades, como os Institutos de Química, Física, Matemática, Geociências, Psicologia e a Faculdade de Educação, refletindo os posicionamentos dos principais docentes que tinham assento em seus colegiados. Outra fonte documental utilizada por Giannazi foi a imprensa alternativa da época: Movimento, Opinião, Fato Novo e Pasquim.
Em termos de periodização, o livro está centrado nas agitações ocorridas no mês de março de 1964, as quais antecederam o golpe de 1º de abril de 1964, até a edição do AI-5. Abordando também a época do governo Médici, quando ocorreram algumas das aposentadorias compulsórias mais significativas que atingiu toda a USP, dedica especial atenção aos cursos de ciências humanas. Mostra que, nos governos posteriores, houve, de um lado, a manutenção das aposentadorias compulsórias e, de outro, a continuidade de um autoritarismo acentuado.

No primeiro capítulo, o autor busca teorizar e localizar o leitor sobre os fatos que aconteceram naquele momento histórico, tanto no âmbito do país quanto na USP, especificamente.

Carlos Giannazi classifica os professores e pesquisadores que foram perseguidos em duas categorias: aqueles que receberam punições logo com o golpe e os que acabaram sendo punidos nos anos posteriores. As perseguições aconteciam por motivos políticos (a defesa da política de João Goulart, as visões céticas do processo histórico e político brasileiro e de suas instituições sociais excludentes) e pessoais (afastamento de potenciais candidatos que pudessem ascender academicamente).

Em 1964, surgiu a primeira lista de expurgo de professores realizado com a colaboração do DOPS. A Faculdade de Medicina foi o local com o maior número de punidos: 20 nomes citados de uma lista de 52 acusados (44 docentes e 8 funcionários e alunos). É interessante notar que essa elevada cifra deve-se à crítica que os especialistas dessa área faziam aos graves problemas estruturais do país, como falta de saneamento básico, desnutrição, endemias, falta de acesso a cuidados básicos, falta de médicos, hospitais e medicamentos. Além disso, o maior número de subversivos foi da Faculdade de Medicina porque esse centro forneceu um dos principais elementos renovadores da USP: o professor Ulhoa Cintra. Este núcleo o apoiou em sua eleição e inspirou a renovação universitária que marcou sua gestão como reitor.

O autor chama nossa atenção para o crescente descaso do governo brasileiro com a universidade pública a partir de 1969 e para o correspondente aumento de faculdades superiores privadas. Desta forma, os alunos formados nas ‘faculdades comerciais’, nome adotado por ele para se referir a esse tipo de instituição, seriam mais passivos e conformistas diante da realidade social brasileira, já que muitos deles estavam menos preocupados com sua formação acadêmica e mais com o recebimento do diploma universitário.
É interessante perceber, durante a elaboração do AI-5, as alianças entre as forças conservadoras da universidade e o governo militar, pois inúmeros juristas e ex-reitores participaram de sua concepção. A mentalidade de muitos deles era contrária à própria USP, pois não concordavam com o pensamento de abrangência que a instituição carregava em sua criação. Tais indivíduos eram muitas vezes pertencentes aos quadros da Faculdade de Direito e da Escola Politécnica, contrários ao espírito de integração existente na universidade e severos críticos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Na lista de aposentadorias compulsórias surgida após o decreto do AI-5, estavam citados 43 docentes de universidades brasileiras, três da USP – Florestan Fernandes, Jaime Tiomno e João Batista Villanova Artigas. Na época, o vice-reitor em exercício, Hélio Lourenço de Oliveira protestou veementemente contra essa atitude e seu nome passou a constar na próxima listagem de aposentadorias compulsórias. Na segunda lista divulgada, apenas seis docentes não eram do quadro da USP.

O fato de, nas duas listas divulgadas, constar muitos elementos de destaque em suas especialidades, alguns dos quais de renome internacionalnão foi à toa. A aposentadoria os removia do caminho de outros indivíduos que temiam sua concorrência nas respectivas áreas de atuação. Percebem-se, nestes casos, as motivações pessoais na composição das listagens. Tais práticas não eram muito diferentes das que acontecem nos dias de hoje, quando, muitas vezes por egoísmo, pesquisadores buscam prejudicar outros para ascender academicamente.

A década de 1970 na USP foi marcada por cortes de verba e por entraves de funcionamento em diversos setores. Entre os exemplos citados, o autor menciona a Revista de História, cujo criador, Eurípedes Simões de Paula, por falta de recursos institucionais, custeou algumas de suas edições com apoio de amigos. Outro caso curioso mencionado por ele é o da criação do curso de Língua, Literatura e Cultura Árabe, que precisou de doações de livros dos países do mundo árabe e de instituições muçulmanas que apoiaram seu primeiro docente Helmi Mohammed Ibrahim Nasr em sua criação. Além disso, pela ótica tecnocrata que começava se edificar, os gastos com cursos como Armênio, Sânscrito e Hebraico eram vistos como desnecessários, assim como os estudos de Grego e de Latim eram vistos com preconceito. Nota-se, até hoje, esse prejulgamento dos cursos de Ciências Humanas, que, em geral, não são beneficiados no repasse de recursos e vistos como dispensáveis.

O final do período Médici marcou a USP com dois importantes episódios: a morte, sob tortura, do estudante Vanucchi Leme do curso de Geologia, acusado de participação na Aliança Libertadora Nacional, e, no DOI-CODI do Exército, a de Vladimir Herzog, professor da Escola de Comunicação e Artes. Esses acontecimentos trágicos fizeram com que a instituição começasse a reagir contra as imposições externas em seu ambiente.

No segundo capítulo, o leitor é informado dos episódios específicos da instituição e das reações de seus colegiados.
Logo após o golpe, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras realizou frequentes reuniões em razão das preocupações sobre os concursos de livre-docente e de cátedra que estavam com datas marcadas, já que havia rumores de uma lista de professores subversivos que seriam enviadas para a polícia política.

No mês de maio de 1964, um episódio agitou as reuniões do colegiado daquela instituição: a prisão do professor Mário Schenberg. Florestan Fernandes criticou a posição de silêncio adotada pela instituição em apoio ao colega. Alguns meses depois, a universidade tornou-se palco de um inquérito policial presidido pelo tenente-coronel Bernardo Schommann, durante o qual diversos professores foram apontados como comunistas ou ligados a movimentos subversivos. Uma tentativa de reação às perseguições políticas e de defesa do livre exercício de pensamento foi o manifesto dos professores assistentes, apresentado na Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 25 de setembro de 1964, pelo professor Oswaldo Porchat e assinado por mais de cem importantes docentes.
A participação estudantil é evidenciada em dois episódios analisados nesse capítulo.

O primeiro, de agosto de 1968, foi o da ocupação dos prédios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras localizados na rua Maria Antônia. Os alunos pediam melhorias estudantis e participação na gestão universitária, em comissões paritárias e com poderes deliberativos. Tais reivindicações até hoje são pautas do movimento estudantil de diversas universidades brasileiras. A Congregação absteve-se de tomar medidas enérgicas contra a ocupação, evidenciando um confronto entre professores de tendências mais conservadoras e setores renovadores da instituição que desejavam ampla participação do corpo discente e da comunidade no processo de reestruturação universitária.

O segundo episódio foi o conflito com alunos da Universidade Mackenzie em outubro de 1968. Pela primeira vez após o Golpe, a Congregação se manifestou contra as atitudes de violência contra seus estudantes. Na Mackenzie, havia muitos oficiais que cursavam direito porque pretendiam cargos de delegado e usavam força desproporcional contra os uspianos (coquetéis molotov, metralhadoras e bombas). No comunicado, foi criticada a passividade da polícia durante o enfrentamento. Depois desse incidente, por ordem policial, os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras oferecidos na rua Maria Antônia foram transferidos para a Cidade Universitária. Um dos motivos da recolocação é que os estudantes não causariam mais problemas para a ordem social, já que, em comparação, a Cidade Universitária não contava com setores de convivência.

Com base nesses fatos, o autor demonstra que aos poucos a Congregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras começava a adotar uma postura mais crítica diante dos acontecimentos políticos brasileiros. Em maio de 1969, 44 membros desse colegiado se reuniram para discutir os procedimentos a ser adotados após a divulgação da segunda lista de aposentadorias compulsórias. Deliberou-se pela elaboração de um manifesto no qual a instituição declarava sua perplexidade com tal atitude, considerando-a um duro golpe para a expansão do ensino e da pesquisa no país. Finalmente, a Congregação sustentava um posicionamento de defesa intransigente e corajosa dos seus direitos e liberdade de pensamento.

Marcha contra o saber demonstra de forma ampla como a Educação era o inimigo principal do regime de exceção instaurado a partir de 1964. É um livro atual, pois mostra diversas feridas que não cicatrizaram nos setores educacionais e faz refletir sobre como a Educação foi moeda de troca por motivações pessoais, como ainda hoje acontece. Nessa obra, Carlos Giannazi aborda assuntos delicados no meio universitário brasileiro: disputas pessoais entre pesquisadores, reivindicações estudantis por maior participação na gestão universitária e investimentos no setor. É um livro para entendermos até que ponto a universidade avançou nesses aspectos nas últimas décadas e onde ela ainda está estagnada.

Fundamentalmente, é uma obra que ousou desvendar os segredos mais recônditos da Universidade de São Paulo no tempo dos militares, apresentando-se como contribuição essencial para a compreensão da história e da trajetória dessa instituição.

Nota

1; Sua dissertação recebeu o título São Paulo e o golpe militar (1964): as dificuldades para manutenção da liberdade de cátedra antes e depois do ato institucional n. 5 (1964-1985), orientado por Nelson Piletti.


Resenhista

Thiago Henrique Sampaio – Mestrando em História. Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – Unesp. Assis – SP. E-mail: thiago.sampaio92@gmail.com.


Referências desta resenha

GIANNAZI, C. Marcha contra o saber: o golpe militar de 1964 e o AI-5 na Universidade de São Paulo. São Paulo, SP: Global, 2014. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. História, Educação e Resistência: a USP nos anos iniciais da Ditadura Militar. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 17, n. 1 (44), p. 284-294, jan./mar. 2017.

Acessar publicação original

Maria Luiza Pérola Dantas Barros

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