Fazer a leitura de Maps in newspapers: approaches to study and practices in portraying war since the 19th century é, sem dúvida, percorrer uma obra ímpar. Primeiramente, por seu formato não tão comum na produção acadêmica do Brasil, trata-se de uma monografia que compõe o primeiro volume da coleção Brill Research Perspectives in Map History, da editora holandesa Brill, que propõe trabalhos aprofundados sobre uma determinada perspectiva da história da cartografia e suas abordagens.1 Em segundo, mas não menos importante, também se destaca a particular riqueza das abordagens metodológicas que o texto explora para a pesquisa e compreensão das construções cartográficas, particularmente aquelas da imprensa.
De ímpar, torna-se também uma obra necessária no sentido de colocar em diálogo as diversas abordagens para o estudo dos mapas em sua pluralidade de formas. Mais da metade de suas páginas são destinadas a essa densa discussão, que o autor desenvolve com fluidez, aportado em uma variedade de autores que nos faz sentir viajando entre ideias. Trata-se de uma espécie de confluência de todo trabalho que André Novaes vem construindo sobre o universo dos mapas na imprensa, desde seu mestrado, passando pelo doutorado, até seus mais recentes projetos de pesquisa.
Por tal veemência, a história da cartografia de Novaes passa longe de uma massiva descrição da sucessão de mapas evoluindo em uma linha temporal. O autor dispensa o enfoque cronológico e perpassa pelos períodos históricos de modo a salientar ora as diferenciações, ora as aproximações entre eles. Assim, para dar conta de uma temática tão ampla que são os mapas na imprensa, o autor seleciona exemplos que considera proeminentes do contexto brasileiro: a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a Guerra às drogas nas favelas do Rio de Janeiro (1994-2010).
Isso porque, não diferente de outros países, no Brasil também existe uma relação íntima entre a cartografia na imprensa e as guerras, instigada pelo interesse de situar os avanços de guerra e os conflitos territoriais. Algo que remonta aos primeiros exemplos de mapas impressos em jornais e que, até hoje, impulsionam sua produção. Com isso, a discrepância temporal e de escala entre os exemplos selecionados é intencional e contribui com o objetivo do autor de explorar os diferentes contextos das instituições de mídias, das técnicas e das tecnologias. Não em uma narrativa evolutiva da superação das limitações, mas destacando suas possíveis diferenças e continuidades.
Prova disso é a maneira como a argumentação do texto está esquematizada em três questões direcionadoras que compõem a divisão do texto. A primeira delas, como conceituar os mapas na imprensa, presente na introdução, apresenta um conjunto de ferramentas metodológicas e uma articulação entre os debates da história da cartografia e da história das ciências que apresentam o mapa como um artefato. A segunda, como a cartografia dos jornais impressos tem sido estudada, é debatida na primeira seção do texto, com foco nos discursos sobre as imagens cartográficas e não nas imagens em si, promove o debate entre diferentes ideias, abordagens e autores. Já a última questão sobre quais mudanças esses mapas sofreram ao longo do tempo é debatida ao longo da segunda seção do texto, onde o foco passa para as imagens em si, analisando os exemplos de forma articulada às suas informações históricas, autores, contexto de produção, circulação e inter-relações com outras imagens e produções textuais.
Em tais etapas do texto, Novaes não se limita a esquematizar uma apresentação dos exemplos e histórias da cartografia nos jornais impressos, mas compõe uma destacada abordagem crítica sobre os mapas. Pouco a pouco, questiona a estandardização do mapa enquanto um objeto neutro e acabado, mostrando a construção de tal questionamento na história da cartografia. Em seguida, guia-nos por diversos aspectos imbuídos no mapa que o torna algo posicionado, com atores, construções sociais, escolhas e valores que influenciam a imagem cartográfica. Foi com essa intenção que demos título a esta resenha, destacando que os mapas dessa obra não aparecem para ilustrar uma realidade noticiada, mas para fazer essa realidade, juntamente com outras fontes e textos, em uma intertextualidade de base. Afinal, mapeadores são mais criadores do que refletores (Black, 1997).
Ainda para desmistificar e posicionar a elaboração dos mapas na imprensa, o autor se esquiva de narrativas evolucionistas ou de aperfeiçoamento dos mapas e, como alternativa, enfatiza os atores sociais envolvidos na construção do mapa, seus diferentes lugares, práticas e discursos. Desse modo, pretende com “(…) a historiografia e a história dos mapas nos jornais oferecidos nessa publicação, enfatizar alguns caminhos para uma história da cartografia menos eurocêntrica, normativa e progressiva”.2
Uma valiosa contribuição é trazer à tona o debate sobre a circulação de ideias e de técnicas, relacionando as limitações e as possibilidades materiais com o que se torna visível e interpretativo na imagem cartográfica. Assim, estabelece a relação entre técnica, linguagem e comunicação inseridos nos mapas, algo pouco ou fracamente explorado no estudo das imagens e representações pela geografia. Nesse sentido, os mapas na imprensa são entendidos como artefatos de encontro entre diferentes lugares, tecnologias, discursos e práticas cartográficas. Isso porque, aportado na abordagem da história das ciências, reconhece a imprensa como um importante agente social de transformação na circulação de ideias e práticas representacionais em várias partes do mundo, inclusive centros e periferias. Por conseguinte, os mapas produzidos pela imprensa do Brasil são estudados não em suas características intrínsecas, mas se conectam a um amplo movimento de pessoas, conhecimentos, máquinas e práticas internacionais.
Ao discutir uma possível história do estudo dos mapas na imprensa, Novaes destaca que, por vezes, essa história foi contada de forma isolada e segregada, colocando os mapas da imprensa como uma categoria específica, o que omite as influências e trocas que estes possuem com diferentes modos e práticas cartográficas. Assim, no lugar dessa categorização, o autor discute e adota as noções de “modo cartográfico” (Edney, 1993) e de “gênero cartográfico” (Lois, 2015) como meios de combinar as diferentes formas e funções do mapeamento, cada qual comprometido com um conjunto de relações culturais, sociais e tecnológicas.
Uma inegável contribuição para mudar os rumos da história da cartografia, e logo da cartografia na imprensa, foi a obra de John Brian Harley (1932-1991), que promoveu uma virada crítica, na década de 1980, ao adotar o método iconológico e traçar diálogos com a geografia histórica e a história da arte nos estudos sobre cartografia. Defendeu a análise do mapa como um todo e, para tal, refutava as dicotomias, evolucionismos e polarizações, principalmente entre arte e ciência, persuasão e precisão. A ampla possibilidade interpretativa dos mapas, disseminada pelos textos de Harley, ampliou e estimulou uma agenda de pesquisa para mapeamentos fora da academia.
Entretanto, seguindo a vertente crítica em que iniciou sua obra, Novaes destaca o quanto tal inovação não ocorre de forma linear. Esforços anteriores ocorreram, ainda que de forma isolada, assim como também persistiram, e ainda persistem, abordagens evolutivas e dicotômicas na análise dos mapas. Para o autor, carece, na cartografia crítica baseada em Harley, uma postura mais cuidadosa da história da arte. Isso porque, priorizou-se uma abordagem da iconologia baseada em Erwin Panofsky (1892-1968) e, consequentemente, na simplificação da análise de imagens em uma perspectiva cronológica. Destarte, a cartografia crítica tardou a considerar conceitos centrais da teoria de Aby Warburg (1866-1929), uma importante figura da perspectiva iconológica, como o de série e de sobrevivência, que desafiam a noção de evolução temporal e possuem ampla contribuição para a análise dos mapas da imprensa.
O conceito de sobrevivência na construção de imagens reduz a devoção pela cronologia que tanto fomentou a ideia de renascimento ou reaparição. Já no caso da cartografia, desconstrói as meta-narrativas que associavam diretamente os mapas a contextos sociais convertidos em totalidades históricas. Assim, para Novaes, abre-se caminho para considerar os mapas da imprensa como um modo cartográfico pelo qual práticas antigas de mapeamento sobreviveram ou ressurgiram após a reforma científica da cartografia. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos cartógrafos criticavam os mapas da imprensa por usar práticas da cartografia pré-moderna, reproduzindo ou reformulando projeções e símbolos dos mapas antigos.
A crítica à iconologia acarreta diversos frutos nos estudos sobre as imagens cartográficas, principalmente através do foco no conjunto de técnicas e práticas que produzem o mapa e influenciam a impressão, circulação e recepção do conhecimento espacial. Com essa perspectiva, muitos autores reconduzem a compreensão do mapa em diferentes definições, mas possuem um ponto em comum na ideia de artefato, ou seja, do mapa como uma experiência espacial da prática cotidiana.
Na cartografia da imprensa, a abordagem materialista destaca seus mapas em sua intertextualidade, ou seja, como uma prática que se associa a muitas outras informações textuais disponíveis na vida cotidiana. Trata-se de um desafio metodológico que procura reduzir a grande diferenciação entre representação e prática.
O caminho que Novaes percorre entre diferentes abordagens do estudo do mapa da imprensa não tem o objetivo de isolá-las ou de eleger um melhor aprimoramento ou adequação. O autor destaca que muitas abordagens continuam, outras são associadas, mais do que escolher uma única proposta, é possível combinar métodos no estudo dos mapas para uma visão mais ampla e completa. É com essa perspectiva em mente que os três exemplos de cartografia na imprensa brasileira são apresentados, assim, visualizamos uma rica coletânea de mapas que é associada a um amplo conjunto de informações não só históricas, como comunicativas, interpretativas, carregadas de intencionalidade e, principalmente, de sua materialidade técnica e de circulação do conhecimento.
Por anos, os mapas encantam olhares curiosos ao redor do mundo, expõem e revelam sentidos sobre os espaços. Trata-se de uma ferramenta incrivelmente rica que merece uma abordagem comprometida tal como aquela que André Novaes nos propõe em seu texto, explorando como o mapa possui diversos ângulos de visão, cada qual com seu potencial de revelação e investigação sobre nossas relações com o espaço.
Notas
1 Nesse primeiro volume, a cartografia nos mapas da imprensa.
2 Do original: “(…) the historiography and the history of maps in newspaper offered in this publication seek to stress some paths toward a less Eurocentric, normative and progressive history of cartography” (Novaes, 2019: 8).
Referências
Black, Jeremy (1997). Maps and Politics. London: Reaktion Book.
Edney, Matthew (1993). “Cartography without Progress: Reinterpreting the Nature and Historical Development of Mapmaking”. Cartographica, n. 30, pp. 54-68.
Lois, Carla (2015). “El mapa, los mapas. Propuestas metodológicas para abordar la pluralidade y la inestabilidad de la imagen cartográfica”. Geograficando, v. 11, n. 1.
Novaes, André (2019). Maps in Newspaper: Approaches to study and practices in portraying War since the 19th Century. Map History, issue 1.1. Leiden/Boston: Brill.
Resenhista
Carla Sales – Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: carla.msales@gmail.com
Referências desta resenha
NOVAES, André (2019). “Maps in Newspaper: Approaches to Study and Practices in Portrayin War since the 19th Century”. Map History, issue 1.1. Leiden/Boston: Brill. Resenha de: SALES, Carla. Uma história dos mapas da imprensa que fazem história. Terra Brasilis (Nova Série), 12, 2019. Acessar publicação original
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