Introdução
Antes mesmo de ser considerada e nomeada como ciência efetiva, em meados do século XIX, a Arqueologia já intrigava e despertava a curiosidade e o fascínio de colecionadores e estudiosos. E isso teria se dado não pela sua teoria em si, mas pelo seu objeto de estudo: a cultura material, com objetos e documentos preciosos de um tempo passado. Sua construção como ramo do conhecimento perpassa, desta forma, as fronteiras do acatamento em uma única disciplina.
Em outras palavras, é uma matéria interdisciplinar tanto em sua prática2 quanto em sua própria concepção3. Entretanto, além de interdisciplinar, dialoga tanto com o ambiente acadêmico/intelectual, quanto com o ambiente leigo, pois seu acesso é majoritariamente visual, palpável, fazendo-se entender pelo grande público (e despertando a curiosidade deste mesmo por ser um contato com o passado, tão “remoto” e “desconhecido”).
E é justamente esta narração da pluralidade da Arqueologia que Nuno Gonçalo Viana Pereira Ferreira Bicho, ou simplesmente Nuno Bicho, traz, com suas premissas e técnicas, em um verdadeiro manual, ao escrever o Manual de Arqueologia Préhistórica4. Dividindo-o em seis partes, preza por demonstrar de maneira densa (mais de 500 páginas), especialmente em língua portuguesa, não só a teoria da Arqueologia, mas também os aspectos metodológicos desta, variando entre História da Arqueologia, Arqueologia de Campo, Problemas Cronológicos, Reconstrução Paleológica e, por fim, Sítios e Artefatos.
Nascido em 1965, Nuno Bicho é atualmente Diretor do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano e professor associado da Universidade do Algarve, em Portugal. Sua principal ressalva, em seu lugar de pesquisador português, é a de fazer uma Arqueologia originalmente nesta língua, que aborde diversos assuntos e tópicos, e não apenas um recorte (costume das pesquisas acadêmicas), para estabelecer e fincar o lugar de Portugal nos estudos desta ciência. Isto é, em vez de ser pesquisa em si, baseada em clássicos estrangeiros, busca que sua obra seja o suporte para o desenvolvimento de outros compatriotas. Não descarta a importância da especificidade dos objetos históricos, mas, por outro lado, busca consolidá-los com base em um panorama plural.
A retomada à história da Arqueologia: uma metalinguagem
Como bem dito por Vítor Oliveira Jorge, no prefácio à obra, “o que o leitor tem na mão é um manual de arqueologia pré-histórica, e não um manual da pré-história”5. Assim sendo, reforça o valor do trabalho de Bicho como sendo um suporte primordial. Ressalta o papel de importância essencial da análise e embasamento à prática para a formulação de teorias. Isto é, inverte os lugares – em vez de a Arqueologia ser derivada de outras ciências investigativas, ela seria a base primária necessária para o desenvolvimento destas mesmas; é o ponto principal de partida.
Desta forma, em um exame específico da “Introdução” e “Parte 1” da obra, percebe-se uma mescla entre a história da Arqueologia como técnica e como teoria. Isto é, nesta primeira parte, foco da análise aqui presente, Nuno Bicho traz uma herança histórica de pesquisas e descobertas materiais que compõem a forma atual da Arqueologia da Pré-História. Ao mesmo tempo, discute e traz à tona as transformações internas a ela como disciplina, no quesito de epistemologias e paradigmas investigativos de suas metodologias ao longo do tempo. Ou seja, é uma metalinguagem. É a Arqueologia que explica a si mesma. Portanto, para tal, separa esta Parte 1 em dois capítulos: “A Emergência da Arqueologia” e “Desenvolvimento e Consolidação da Metodologia e Teoria Arqueológicas”.
Nesta linha, primeiramente discorre sobre a importância da dimensão do tempo e da importância da noção do presente acerca da existência de um tempo passado, anterior a ele. Narra, desta forma, o passo-a-passo da advinda e construção cronológica de uma disciplina que se dedicaria justamente a um estudo consciente do passado antes do estudo do material em si.
E, a partir da possibilidade dessa consciência de um presente a respeito de um tempo anterior a ele, poder-se-ia enfim ter melhor compreensão e aprofundamento agora do objeto em si – pela Arqueologia. Isto é, tal disciplina, quando bem pensada e consolidada, forneceria o caminho exemplar para o estudo:
De fato, as sequências cronológicas desenvolvidas no seio da geologia e paleontologia (…) não foram a base dos métodos de datação da arqueologia pré-histórica. (…) A Arqueologia Pré-histórica não começou, portanto, com métodos ‘emprestados’, mas criou o seu próprio método com bases teóricas sólidas e racionais6.
Já no capítulo 2, percebe-se o esforço de Nuno Bicho por trazer uma narrativa do remodelamento interno da Arqueologia ao longo do tempo, com a advinda de novos olhares e paradigmas – fase histórico-classificativa e fase explicativa.
A Arqueologia, na primeira destas fases, já existente como matéria consolidada, teria ainda um viés restritamente cultural7 (característico da primeira metade do séc. XX), se desenvolvendo em torno do passado objeto de pesquisa de maneira metodológica, contingenciada – de modo cronológico e homogeneizado. Mas, ao mesmo tempo, seria de fundamental importância até os dias de hoje, já que muitos destes métodos categóricos auxiliam no estudo de campo em si.
Questionando essa lógica arqueológica essencialmente detalhista, surge consolidada em 1960 a “Nova Arqueologia”, a segunda das fases. Este novo formato teria vieses mais antropológicos, para a identificação dos processos culturais, ainda que com os alicerces metodológicos da primeira não descartados (escavação e até mesmo datação, a exemplo)8. Nela, cada vez mais madura ao longo do tempo, a questão da função da Arqueologia entre um passado dito dinâmico e um presente “estático” seria de principal importância – contrastando com o olhar meramente cultural.
Surge, enfim, uma Arqueologia crítica a qual observa aspectos silenciados pelos artefatos dominantes, irrompendo como um lugar de compreensão da subjetividade – das esferas simbólico-cognitivas. Esta Nova Arqueologia teria então, possibilidade e consciência da existência de diferentes vertentes / correntes da História da Pré-história, e da diversidade entre elas.
Considerações finais
Em vista de tudo isso, portanto, percebe-se nesta primeira parte da obra de Nuno Bicho um esforço constante por trazer à Arqueologia um lugar de prestígio, como merecedora de pareamento com as demais ciências, indo além do cargo embutido de “ciência auxiliar”. Contudo, ao ressaltar na Introdução veementemente que o livro foi feito para ser um livro de Arqueologia em português, nega na instância mais subjetiva o valor deste próprio conteúdo, sugerindo que o livro foi feito para integrar o corpo científico nacional português, e não para contribuir para o desenvolvimento da Arqueologia coletiva, mundial.
Todavia, mesmo que partindo deste princípio, não se invalida o esforço pioneiro do autor, pois a linguagem é de fácil acesso, podendo ser vista pela parte social externa à acadêmica, mas, ao mesmo tempo, não perdendo seu caráter historiográfico formal. Por se tratar da Arqueologia, este rigor formal acaba por ter menos barreiras e menos “preconceitos” no meio intelectual, em comparação à História em si ou à Filosofia, por exemplo, que exigem uma linguagem altamente elaborada. Um exemplo disso é o próprio uso de imagens e tabelas, que resumem e facilitam ainda mais a absorção dos conteúdos pelo leitor.
Então, além desta possibilidade de inserção com o meio extra-acadêmico, a parte aqui referida do livro pode também ser reconhecida como fonte base e leitura obrigatória em outras ciências. Isto é, pode ser pertencente ao corpo didático de diferentes áreas, pois aborda temas que podem integrar-se aos conhecimentos de outras ciências, a exemplo da radioatividade (datação relativa), longe do objeto de estudo habitual da História.
Desta forma, Bicho presa por colocar em um patamar de destaque o estudo dos pilares das sociedades dos dias de hoje. Não só coloca em um patamar o estudo do passado pré-histórico, mas também o passado em si. Consequentemente, além de um trabalho de arqueólogo, por expor as técnicas de seu trabalho o autor, faz, por fim, um trabalho de historiador, por remeter às fontes para narrar o contexto dos fatos – o processo histórico de formação da Arqueologia.
Pode-se considerar, em última instância, sua obra, de modo específico na “Introdução” e na “Parte I”, como sendo ambiciosa, já que busca abarcar um compilado de informações, mas que, ainda assim, não perde a qualidade, a especificidade e o atencioso detalhamento, conseguidos através de uma bibliografia de fôlego. Concluise, através dela, que a História é feita pelo presente, confirmando na prática o que a historiografia traz desde Marc Bloch, no século XX. Ou seja, a partir do embargo teórico do presente; do acúmulo de renovações de informações e teorias, é que se pode avançar e ousar no passado. Esta é a grande lição de Nuno Bicho. Seja este referido presente o dele mesmo, no século XXI, seja este presente o momento de ação dos pesquisadores do século XIX, os quais puderam abrir o horizonte e consolidar uma área de pesquisa que resultaria na mais fascinante ponte com os primórdios do que hoje se chama humanidade.
Notas
2 Parceria para a investigação e análise com ramos de química, física, biologia, geologia, entre outros, que varia de acordo com o objeto de estudo e com as condições internas e externas que este mesmo se encontra, assim como o meio no qual está inserido.
3 Concebida também como uma ciência com fim de auxiliar outras – deixar “pronto” o objeto de estudo destas outras – se filiando à História e Antropologia, por exemplo.
4 BICHO, Nuno Ferreira. Manual de Arqueologia Pré-histórica. Lisboa: Edições 70, 2006.
5 Ibidem. p. 9.
6 Ibidem. p. 39.
7 Aqui, por exemplo, entra como maior expoente V. Gordon Childe, com a Arqueologia dentro da chamada História Cultural, a qual preza por um olhar sobre os dados (e não sobre a estrutura) e que proporcionaria uma mudança apenas por migração, difusão e inovação. Vide: GOSDEN, Christopher. Anthropology and Archaeology: A changing relationship. London and New York: Routledge, 1999 e GAMBLE, Clive. Archaeology, the Basics. London: Routledge, 2001.
8 Arqueologia processual e Arqueologia antropológica, de Binford. Já aqui, a arqueologia seria “em essência a disciplina com a teoria e prática que recuperariam padrões comportamentais hominídeos não observáveis de traços indiretos em amostras ruins”. Vide: (CLARK, 1979: p. 100) apud (GAMBLE, 2001: p. 28).
Referências
BICHO, Nuno Ferreira. “Apresentação” e “Parte 1: Breve história da Arqueologia”. In: Manual de Arqueologia Pré-histórica. Lisboa: Edições 70, 2006.
CLARKE, D. L. Analytical Archaeologist. London: Academic Press, 1979.
GAMBLE, Clive. Archaeology, the Basics. London: Routledge, 2001.
GOSDEN, Christopher. Anthropology and Archaeology: A changing relationship. London and New York: Routledge, 1999.
Resenhista
Sofia Helena Cardoso Rodrigues – Graduanda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), orientada pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari. E-mail: sofiahelenacr@gmail.com
Referências desta Resenha
BICHO, Nuno Ferreira. “Apresentação” e “Parte 1: Breve história da Arqueologia”. In: Manual de Arqueologia Pré-histórica. Lisboa: Edições 70, 2006. Resenha de: RODRIGUES, Sofia Helena Cardoso. Ensaios de História. Franca, v. 21, n. 1, p. 67- 72, 2020. Acessar publicação original [DR]
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