Dentre os oito Estados “cristãos” que se reuniram no Congresso de Viena, em 1815, cinco indiscutivelmente dominavam o chamado “concerto europeu”, que presidiu ao nascimento da Europa pós-napoleônica, estabeleceu novas regras de convívio entre as “nações civilizadas” e determinou, em grande medida, como seria moldado o mundo burguês que emergia da primeira Revolução Industrial. O equilíbrio persistiu durante todo o longo século XIX e apenas seria rompido em virtude da “segunda Guerra de Trinta Anos” em que parece ter vivido a Europa na primeira metade deste século.
Cinco grandes países continuavam a dominar, no final do século XX, o inner circle do poder mundial e a determinar, via monopólio da arma nuclear, o curso da vida no planeta. Entretanto, do ponto de vista quantitativo, ao menos, o cenário é mais populoso: partindo de apenas 50 Estados independentes em seu ato constitutivo, o sistema onusiano evoluiu para cerca de 190 países membros. Do ponto de vista qualitativo, por outro lado, a mudança é substancial: no lugar da antiga diplomacia secreta dos príncipes e dos agentes dos reis, temos uma real diplomacia parlamentar exercida em mais de 350 organizações, interestatais e não-governamentais, constituídas em dezenas de foros econômicos, políticos, técnicos e culturais, nas quais as armas da crítica substituiram a crítica das armas. O poder talvez não se tenha tornado menos concentrado hoje do que 180 anos atrás, mas ele já não pode mais legitimamente ser exercido de forma crua e direta, devendo obrigatoriamente passar, mesmo no caso da superpotência remanescente, por diferentes instâncias de discussão e de encaminhamento de soluções aos problemas multifacéticos enfrentados pela humanidade.
A resposta encontrada a esses problemas pelos Estados nacionais, o elemento mais consistente do legado de Vestfália, é a construção de uma sociedade mundial que encontra nas organizações internacionais seu tijolo mais sólido. Se o mandato de Versalhes, com seus vícios revanchistas, não frutificou, a Carta de São Francisco ainda permanece uma referência válida para a construção de uma sociedade internacional livre da diplomacia da canhoneira. O livro de Ricardo Seitenfus trata precisamente desse fenômeno organizacional que constitui o multilateralismo contemporâneo, formado pelas dezenas de coletividades autônomas que se revezam na agenda internacional para tratar dos diferentes temas aos quais, nos planos regional ou mundial, elas estão dedicadas: comércio, trabalho, clima e meio ambiente, finanças, padrões de comunicação, normas de saúde, patentes e direitos do autor, transportes, energia, direito e justiça, produtos de base, correios, segurança, integração econômica, enfim, todas elas voltadas para a promoção dos direitos humanos, a causa da paz e, sobretudo, do desenvolvimento.
O título talvez peque por excessiva modéstia: o livro de Seitenfus é muito mais do que um simples manual, no sentido didático que se empresta correntemente ao vocábulo. Tampouco ele é um mero diretório das organizações ali elencadas, interessando apenas aos estudiosos do Direito Internacional. Trata-se de uma obra densa, voltada em primeiro lugar para os aspectos teóricos, históricos, doutrinários, classificatórios e ideológicos do multilateralismo contemporâneo, enfocando em seguida a personalidade jurídica, a competência e os instrumentos dessas organizações, para então discorrer, na maior parte do volume, sobre as mais importantes entidades multilaterais e regionais a partir da Liga das Nações. A ONU e suas agências especializadas recebem muita atenção, mas também os organismos políticos e econômicos do continente americano, sem descurar os demais órgãos regionais e mesmo as organizações não-governamentais. Um conjunto de anexos traz um utilíssimo quadro cronológico sobre a participação do Brasil nessas organizações internacionais e os textos dos convênios constitutivos das mais importantes entidades do ponto de vista da diplomacia brasileira.
A formação multidisciplinar e “transnacional” do seu autor que transita facilmente da história ao direito e da economia à sociologia por certo contribuiu para a elegante abrangência dessa verdadeira summa das organizações internacionais, relativamente inédita para os padrões acadêmicos brasileiros. Também é notável a clareza das definições; vejamos apenas a que interessa ao objeto da obra: as organizações internacionais são associações voluntárias de Estados, constituídas através de um tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. Elas representam, segundo outra definição, um subconjunto das relações internacionais e sua ideologia está vinculada às concepções defendidas por seus Estados membros (como foi o caso das Nações Aliadas nos estertores da Segunda Guerra). Elas passaram por fases, desde o funcionalismo dos primeiros anos da ONU até o atual globalismo, passando pelo desenvolvimentismo e pelo transnacionalismo. Os processos decisórios e seus mecanismos (ou relações de força) são obviamente muito importantes, mas as organizações internacionais parecem querer levar o mundo contemporâneo a uma espécie de “hegemonia consensual”.
Elas constituem, inquestionavelmente, um dos elementos mais dinâmicos e importantes das relações internacionais deste final de século e do futuro previsível. Conhecer sua anatomia institucional, a trajetória de cada uma delas, seus respectivos mandatos constitucionais, compreender, por fim, suas competências específicas e suas limitações intrínsecas impõe-se a qualquer estudioso do mundo globalizado em que vivemos. O manual de Ricardo Seitenfus torna mais fácil a apreensão dessa realidade múltipla a qualquer leigo no assunto e consegue agregar conhecimentos novos mesmo ao mais escolado dos diplomatas.
Resenhista
Paulo Roberto de Almeida
Referências desta Resenha
SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Resenha de: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Revista Brasileira de Política Internacional, v.40, n.2, 1997. Acessar publicação original [DR]
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