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“Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945b| Joseanne Zingleara Soares Marinho

Joseanne Zingleara Soares Marinho é uma das mais notáveis historiadoras da historiografia piauiense recente. Realiza pesquisas em História da Saúde, das Doenças e das Ciências, Políticas Públicas, Gênero, História das Mulheres, Ensino de História e História da Educação. É professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – Campus Poeta Torquato Neto, em Teresina – Piauí. É Professora Permanente do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) UESPI/UFRJ. É uma das líderes do Grupo de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde no Piauí (SANA), vinculado à Universidade Estadual do Piauí – UESPI e à Universidade Federal do Piauí – UFPI, cujas ações têm contribuído para o desenvolvimento de pesquisas e para a sistematização da História da Saúde e das Doenças no Piauí. Dentre uma vasta produção de pesquisas da autora, uma obra que ganha muita projeção é “Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945. O livro foi publicado no ano de 2018 pela Paco Editorial, trata-se do resultado da sua tese de Doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. A relevância da obra e a sua importância podem ser notadas pela produção do Prefácio, da Apresentação, da orelha do livro e da contracapa, todos produzidos por historiadores renomados como Ana Paula Vosne Martins, Maria Martha de Luna Freire, Pedro Pio Fontineles Filho e Antônia Valtéria Melo Alvarenga.

O livro encontra-se dividido em quatro capítulos. Na parte introdutória, a autora busca analisar o planejamento e a execução das políticas públicas de saúde materno-infantil em território piauiense no período da Era Vargas. O presidente adotou uma postura centralizadora e de ampliação do sistema de proteção a assistência de mães e crianças por todo o país. Essa perspectiva encontrava amparo dentro da orientação política de criar uma nação forte, saudável e em constante progresso. A década de 1930 representa esse momento em que o Estado, os médicos e as políticas públicas buscavam criar um aparato em que pudesse ser incentivada a medicina preventiva, baseadas nos conhecimentos de puericultura e assim contribuir para o aprimoramento de práticas de higiene e saúde das crianças e das mães brasileiras. A autora não fica restrita ao pós-1930, ela recua na década de 1920, e constata que naquele momento os atendimentos às gestantes e as crianças aconteciam, sobretudo, através de instituições filantrópicas de assistência, que recebiam doações, e o poder público estadual figurava como o principal mantenedor. A década de 1930 demarcaria o momento em que o Estado amplia sua atuação para além da filantropia, sistematizando as políticas públicas, inclusive criando instituições de saúde em algumas cidades piauienses, como Teresina, Parnaíba e Floriano. Conforme a autora aponta, as mães “deveriam exercer, prioritariamente, os cuidados cotidianos baseados na puericultura, que serviriam para manter as crianças sadias, como também deveriam procurar os pediatras puericultores de saúde para tratamento de seus filhos doentes” (MARINHO, 2018: 29-30). Dessa forma, o Estado e a medicina tentavam incentivar com que as mulheres abandonassem práticas associadas ao conhecimento popular. A pesquisadora se amparou em um amplo corpus documental, que contemplou fontes como constituições, decretos, leis, discursos presidenciais, legislações, mensagens governamentais, jornais que circularam no Piauí, como o Diário Oficial, revistas da Associação Piauiense de Medicina, além dos códices de saúde. Essa multiplicidade de fontes foi essencial para compreender os projetos e o funcionamento da administração da saúde no Piauí.

O primeiro capítulo, intitulado “As primeiras iniciativas piauienses de saúde pública materno-infantil”, abordou como os serviços de saúde pública eram oferecidos para os piauienses durante a Primeira República, no entanto, a assistência aos serviços tinha a marca da precariedade e da inconstância na oferta. Os serviços ficavam a cargo da Diretoria de Saúde Pública e o estado enfrentava uma série de dificuldades para proporcionar assistência à saúde para os piauienses. A pesquisadora reflete sobre como a infância passou a ser retratada como o futuro do Brasil e que deveria vencer um turbilhão de problemas que ainda ameaçavam a imagem de Brasil moderno e civilizado, como a mortalidade infantil. Para isso o estado passou a oferecer orientações e ensinamentos de práticas de puericultura no cuidado a infância no país. A historiadora reflete, também, sobre como o estado do Piauí apresentou pouca expressividade na área da saúde pública durante a Primeira República, “situação justificada pela ausência de organização administrativa e verbas insuficientes para investimentos” (MARINHO, 2018: 66), além disso a quantidade de médicos no Piauí ainda era pequena naquele momento. Em seguida, faz abordagem sobre a criação de alguns postos de saúde no Piauí, especialmente em Teresina. O primeiro posto de saúde pública foi instalado na capital do estado em 1921 e possibilitou o atendimento a serviços regulares de saúde na capital do estado. Prestava serviços como atendimento ambulatorial, tratamento contra doenças infectocontagiosas e assistência médica de urgência. O Posto de Saúde funcionava com uma limitada receita orçamentária e era custeado pelo estado. “Os serviços eram mantidos, sobretudo para os pobres, que procuravam a unidade de saúde quando as enfermidades já estavam instaladas, pois era costume que, inicialmente, buscassem a medicina popular” (MARINHO, 2018:79). Além disso, a historiadora observa o financiamento do poder público estadual para o funcionamento de hospitais filantrópicos, como a Santa Casa de Misericórdia de Teresina, Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba e o Hospital São Vicente de Paula em Floriano, essas instituições ofereciam serviços englobando a saúde geral dos piauienses, e neles aconteciam os atendimentos as mães e crianças do estado. Todas essas instituições funcionavam com escassez de recursos e atendiam a população pobre referente aos seus municípios e região.

No segundo capítulo, intitulado “Políticos e médicos em defesa de um novo país: o debate sobre a saúde de mães e crianças no Piauí”, a autora analisa como, a partir de 1930, o estado brasileiro passa a assumir a proteção da saúde de mães e crianças como um dos caminhos para o país tornar-se um “Brasil Novo”, em que a infância seria uma parcela significativa do almejado progresso. As historiadoras Ana Paula Vosne Martins e Maria Martha de Luna Freire (2018), também, demarcam a década de 1930 como um momento em que se delineia um vigoroso investimento em políticas públicas voltadas para a maternidade e a infância no Brasil. No cenário piauiense, as interventorias do tenente Landry Salles e do médico Leônidas de Castro Mello, passaram a representar um momento de ruptura com o passado. Os políticos simbolizariam, no discurso oficial, o novo momento que o Piauí estava atravessando no caminho para o progresso. Esses interventores costumavam aparecer na imprensa como líderes de um “Novo Piauí” e atrelados a projetos de modernização na capital e por todo o estado. Dentro dessa concepção desenvolvimentista, o poder público passa a atuar com a colaboração cada vez maior dos médicos piauienses na construção e sistematização do campo da saúde no estado. Nesse sentido, “decorria daí o dever inerente ao estado de amparar a saúde do indivíduo, preservando-a dos malefícios, em todas as atividades e fases da vida, mas, sobretudo, na infância” (MARINHO, 2018: 114). Essa proteção à infância deveria combater uma das principais mazelas que atingiam a saúde das crianças piauienses, a mortalidade infantil. A maioria das mortes na infância aconteciam em virtude da diarreia, gastroenterite, além de moléstias como meningite, doenças do aparelho respiratório e infecção do cordão umbilical. Os discursos dos governantes e dos médicos passaram enfatizar que as altas taxas de mortalidade na infância eram avessas ao ideal de progresso piauiense. Nesse sentido, a historiadora busca compreender como a valorização da saúde entrou na agenda política para a construção de um novo país, em que os poderes públicos pensaram estratégias que colocassem as crianças como um dos pilares de um Brasil moderno e saudável.

No capítulo três, “A proteção à saúde materno-infantil no Piauí: os órgãos públicos e as associações particulares”, a historiadora reflete sobre a organização do sistema de saúde pública no Piauí, que passou a dar maior notoriedade à proteção da infância como dever do estado. No governo de Leônidas Mello, ocorreu a reorganização da Diretoria de Saúde Pública, com uma tentativa de fazer tornar os trabalhos mais eficientes e que atingissem outros municípios do Piauí. Nesse sentido, “O órgão estadual foi dividido em várias inspetorias, inclusive, uma delas era especializada em higiene escolar” (MARINHO, 2018: 191). Dentro dessa concepção reformista do governo de Leônidas Mello, no ano de 1938, a Diretoria de Saúde Pública passou a ser denominada de Departamento de Saúde do Piauí. O órgão possuía um centro de administração e coordenação das atividades que giravam em torno da educação sanitária, profilaxia das doenças transmissíveis e combate ao curandeirismo, entre outros. Além dessas ações no ambiente da esfera pública, o estado passou a conceder incentivos para participação do setor particular, sobretudo em auxílio orçamentário para o funcionamento de instituições filantrópicas que prestavam serviços de saúde em território piauiense. A pesquisadora ainda destaca que “embora a capital do Piauí fosse mais favorecida pelos benefícios revestidos para associações filantrópicas, foram verificados investimentos também nas entidades sediadas no interior” (MARINHO, 2018: 227).

No capítulo quatro, intitulado “ A assistência pública às gestantes e seus filhos: o sistema distrital e as unidades hospitalares no Piauí”, Joseanne Marinho ressalta como o governo estadual atuou na instalação de postos e delegacias de saúde em vários municípios piauienses, levando assistência materno-infantil para um público maior de pessoas e facilitando o acesso a determinados serviços da área médica. Foram criadas Delegacias de Saúde nas cidades de Parnaíba, Floriano, Oeiras, Barras, Picos e Valença, entre outras, esse avanço dos estabelecimentos de saúde pelo Piauí representava um encurtamento das distâncias ao acesso a saúde, além de uma ampliação de informações e cuidados de higiene que deveriam fazer parte do cotidiano dos piauienses. Entretanto, é oportuno destacar que as Delegacias de Saúde e Dispensários ainda funcionavam com poucos médicos e com limitados recursos (MARINHO, 2018). A autora destaca como os postos de higiene e centros de saúde passaram a oferecer serviços especializados ligados à saúde materno-infantil no Piauí. Um dos serviços oferecidos nos Centros de Saúde era o Serviços da Higiene da Criança, que era composto por três divisões, a primeira delas era de Higiene Infantil, com orientações práticas sobre puericultura, com objetivo de combater a mortalidade infantil. A segunda seção era a Higiene Pré-Escolar, em que um dos serviços ofertados era o de vacinação para os estudantes. A última seção era Higiene Escolar, com atendimento especializado para os alunos do ensino primário, oferecendo serviços como a realização de exames e de orientações higiênicas (MARINHO, 2018). A pesquisadora reflete sobre a atuação do estado e da iniciativa particular no funcionamento das clínicas obstétrica e pediátrica nos hospitais gerais. No começo da década de 1940, foi criado um ambulatório de pediatria e puericultura sob a direção do médico Olavo Corrêa Lima na Santa Casa de Misericórdia de Teresina. A criação desse novo ambulatório reflete que o amparo a infância deveria passar pela assistência especializada difundidas pelos médicos pediatras. Com a inauguração do Hospital Getúlio Vargas, em 1941, também passou a ser oferecidos serviços obstétricos, além do hospital possuir uma enfermaria de puericultura e pediatria. (MARINHO, 2018). O historiador Francisco Alcides Nascimento (2002) enfatiza que a construção do Hospital Getúlio Vargas tentava acompanhar a modernização da rede hospitalar em curso no país e era colocado como uma das prioridades do governo de Leônidas Mello. Interessante ressaltar que os conhecimentos sobre a puericultura eram ensinados as mulheres não somente nos espaços hospitalares, mas, também, em ambientes educacionais, como a Escola Normal de Teresina (MARINHO, 2008). Além disso, a autora faz uma análise de como a filantropia permaneceu atuante na proteção à saúde materno-infantil no Piauí, sobretudo em virtude dos investimentos financeiros cedidos pelo governo estadual.

O livro “Manter sadia a criança sã” inscreve sua marca como uma das grandes obras sobre políticas públicas de proteção à saúde materno-infantil no Piauí. Joseanne Marinho, de forma competente e esquadrinhando as ações do Estado, das instituições e dos médicos, consegue construir um cenário em que o Piauí desenvolve de forma sistematizada seu amparo para mães e crianças pobres. A historiadora constrói sua narrativa conectada com o cenário nacional, em que Getúlio Vargas buscava projetar a infância como depositária do futuro do Brasil e na construção de uma nação moderna e saudável. Dentro desse projeto político, foram criadas legislações e normatizações que passavam pelos cuidados especializados na assistência às mulheres e as crianças brasileiras. Nesse cenário que se burocratizava, ganharam destaque os hospitais, delegacias de saúde, postos de higiene, maternidades e lactários, que passaram a ser responsáveis pelas orientações de prevenção da saúde, cuidados de higiene e das prescrições da puericultura. Os médicos passaram a fazer parte da equipe de governo dos interventores, além de combater práticas que estavam associadas ao conhecimento popular. O sistema distrital foi instalado no Piauí, possibilitando uma ampliação dos serviços para outros municípios do estado. A pesquisadora faz um recuo na Primeira República piauiense para refletir sobre as inciativas que possibilitaram certa visibilidade de amparo à saúde dos piauienses, entretanto, constata a década de 1930 como sintomática de um momento em que a proteção à saúde de mães e crianças passou a ser incorporada como atribuição do Estado brasileiro. O livro de Joseanne Marinho lança possibilidades de pesquisas voltadas para debates teóricos, metodológicos e historiográficos sobre políticas públicas, doenças, instituições hospitalares, saúde pública, filantropia e cidades. É uma obra que não se restringe ao contexto piauiense, fazendo uma ampla abordagem com o projeto político varguista.

Joseanne Marinho parece seguir os ensinamentos de Jacques Le Goff, que assevera que o estudo das doenças está atrelado “à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações” (LE GOFF, 1985: 08). Assim, o trabalho se inscreve como uma obra indispensável no campo da História da Saúde e das Doenças, além de provocar uma série de reflexões sobre a história da república na primeira metade do século XX.

Referências

LE GOFF, Jacques (Org.). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985.

MARINHO, Joseanne Zingleara Soares. “Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

MARINHO, Joseanne Zingleara Soares. Entre Letras e Bordados: o tecer das tramas na história das normalistas em Teresina (1930-1949). Dissertação (Mestrado em História do Brasil). Teresina: UFPI, 2008.

MARTINS, Ana Paula Vosne; FREIRE, Maria Martha de Luna. História dos cuidados com a saúde da mulher e da criança. In: TEIXEIRA, Luiz Antonio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN, Gilberto (Orgs.). História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. p. 182 – 224.

NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina (1937-1945). Teresina: FCMC, 2002.


Resenhista

José de Arimatéa Freitas Aguiar Júnior – Doutorando em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Mestre em História do Brasil pela UFPI. Especialista em Estado, Movimentos Sociais e Cultura pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Graduado em História pela UESPI.


Referências desta Resenha

MARINHO, Joseanne Zingleara Soares. “Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Resenha de: AGUIAR JÚNIOR, José de Arimatéa Freitas. O Estado e a proteção da infância: políticas públicas de assistência à saúde de mães e crianças piauienses no período de 1930 a 1945. Contraponto. Teresina, v. 10, n.1, p.569- 573, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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