Mandarin Brazil: race, representation, and memory. | Ana Paulina Lee
A obra Mandarin Brazil , premiada como melhor livro em humanidades na seção Brasil pela Latin American Studies Association, é uma leitura importante para a compreensão das representações dos chineses na cultura popular brasileira. O livro remonta a construção e ressignificação dos estereótipos raciais associados ao imigrante chinês na literatura, na música e no teatro nos séculos XIX e XX. A obra extrapola o enfoque da historiografia nacional sobre os debates e as construções raciais em torno da imigração chinesa entre 1850 e 1890. Ana Paulina Lee (2018) priorizou a elaboração, reprodução e apropriação da chinesness , expressões culturais que elaboram conceitos e estigmas raciais referentes à China e aos seus habitantes. Essas imagens foram concebidas e apropriadas em meio a um intenso diálogo global fortalecido após a abolição do tráfico negreiro. Tais representações circulam dentro de uma memória circum-oceânica, um processo criativo por meio do qual a cultura da modernidade se inventa ao transmitir um passado que pode ser esquecido, recriado ou transformado em uma memória coletiva.
Mandarin Brazil é composto por seis capítulos, introdução e conclusão. A divisão do livro respeita a lógica das fontes e uma coerência cronológica. O primeiro capítulo introduz a relação Portugal/Brasil e China, sendo o único que não analisa um aspecto específico do universo cultural/social/político brasileiro. A noção de chinesness fica mais clara ao leitor no capítulo seguinte, onde ocorre a contextualização da discussão acerca da imigração chinesa no século XIX dentro da noção de perigo amarelo, isto é, a ameaça que a imigração de asiáticos traria para a composição racial e para a soberania nacional. A chinesness contribui para a definição de negritude e branquitude e a compreensão da identidade nacional a partir do olhar do outro. Os demais capítulos do livro levam o leitor a compreender o alcance do discurso racializado antichinês na cultura nacional nos livros de Machado de Assis, nas caricaturas de Angelo Agostini, nas personagens do teatro de revista do século XIX, nos textos ficcionais escritos por diplomáticos e nas músicas de Ari Barroso. O caminho cuidadosamente traçado pela pesquisadora permite a identificação dos discursos raciais em diferentes expressões da vida cultural e política brasileira ao longo dos séculos XIX e XX.
A diversidade dos documentos analisados revela a penetração das categorias raciais nas diferentes camadas da sociedade. A pesquisadora trabalhou com a análise de porcelanas, relatos de viagem, caricaturas, teatro de revista, literatura, poesia, música, marchas de carnaval e grafites. A diversidade das fontes permite a reconstrução da trajetória da chinesness em diferentes canais de expressão cultural. O receio da competição desleal entre o trabalhador chinês e o nacional, amplamente discutido por políticos e pensadores nos EUA e no Brasil no século XIX, estava presente, por exemplo, em canções de Ari Barroso e João de Barro durante o governo Getúlio Vargas. A autora entendeu a circulação dessas visões como uma memória circum-oceânica compartilhada e realimentada por várias sociedades em diferentes momentos. Os registros culturais reunidos revelam a longevidade e o vigor de conceitos de chinesness elaborados no século XIX. Os intelectuais da época do Império temiam que a mão de obra coolie , de origem asiática e etnicamente indesejada, ocupasse o lugar do trabalhador nacional e comprometesse a formação de um Brasil branco e eugênico. Esse receio perdurou por décadas.
Em outros momentos, a estudiosa analisa minuciosamente textos apenas citados por outros historiadores. Este é o caso da peça de teatro O mandarim , escrita por Arthur de Azevedo e Sampaio Moreira e encenada em 1883. O enredo revela uma riqueza de críticas, imagens, representações e preconceitos raciais em torno do chinês, personificado em três figuras: o vendedor de camarão, o mandarim e a sua esposa. Representava-se dessa forma a pobreza extrema do trabalhador chinês, a dificuldade de assimilação da elite governante e a moral duvidosa das mulheres. Os trabalhadores asiáticos não resolveriam os problemas nacionais e ainda criariam outras questões. O receio da miscigenação ficou claro em Fritzmac , peça escrita por Arthur de Azevedo em parceria com o seu ilustre irmão Aluísio de Azevedo. A prole resultante da mistura de brasileiros e chineses foi representada como preguiçosa, suja e viciada em ópio e em álcool.
O teatro de Arthur de Azevedo foi categorizado como yellowface, performance que reflete estruturas sociais e dinâmicas de poder que integram o imaginário acerca das populações de origem asiática. Há um diálogo com a concepção do blackface nos EUA e os paralelos traçados contribuem para que o leitor perceba os canais que levaram o debate de acadêmico a outras camadas da sociedade. Tanto a peça de teatro supracitada quanto canções dos anos 1960 reproduzem a sexualidade chinesa como inadequada, bizarra e ameaçadora. O homem é retratado como afeminado, impotente e imoral, enquanto as mulheres seriam pequenas, infantis e exóticas. Essas concepções em torno dos chineses estiveram presentes no debate acerca da imigração europeia na segunda metade do século XIX. Nas músicas e no teatro, essas acepções ganharam um apelo popular e ficaram mais palpáveis à sociedade como um todo.
As personagens do teatro de revista apresentadas pela autora revelam algumas concepções dos chineses extremamente acessíveis ao público geral, não necessariamente escolarizado. Os discursos raciais ganham novas roupagens e tornam-se acessíveis a uma quantidade maior de pessoas. As fontes escolhidas pela autora distinguem a obra de outros textos sobre a imigração chinesa, por vezes restritos aos estudos de discursos parlamentares, notícias de jornais, panfletos, ensaios e opúsculos. A diversificação do corpus documental traz uma nova perspectiva e inspira estudos críticos e aprofundados que percebam as permanências, releituras e ressignificações da chinesness na cultura brasileira para além da questão chinesa discutida no século XIX.
Referências
LEE, Ana Paulina. Mandarin in Brazil: race, representation, and memory. Stanford: Stanford University Press. 2018.
Resenhista
João Ítalo Silva – Professor. Universidade do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte. orcid.org/0000-0003-1548-2279 E-mail: joao_italo@hotmail.com
Referências desta Resenha
LEE, Ana Paulina. Mandarin Brazil: race, representation, and memory. Stanford: Stanford University Press, 2018. Resenha de: SILVA, João Ítalo. Mandarin Brazil: representações raciais dos chineses na sociedade brasileira. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.2, abr./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
MERCHANT Carolyn (Aut), The death of nature: women/ecology/ and the Scientific Revolution (T), Harper and Row (E), PEREIRA Gabriel Schunk (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Mulher, Revolução Científica, Epistemologia Feminista, Feminismo, Ecologismo, Europa-, Séc. 16-17
Lançado em 1980, The death of nature completa, em 2020, 40 anos de publicação e ainda carecia de uma resenha em português. Apesar do tempo passado desde o lançamento, o livro de Carolyn Merchant apresenta algumas reflexões e contribuições ainda atuais.
Merchant é professora emérita da University of California, Berkeley, e possui publicações nas áreas de epistemologia feminista, história ambiental e história das ciências. É uma das referências do ecofeminismo, movimento que associa ecologismo e feminismo, identificando relações entre a exploração da natureza e das mulheres. Contudo, ainda hoje a autora tem pouca inserção nos cursos e programas de história ambiental e das ciências no Brasil, sobretudo quando a comparamos com outras autoras feministas, como Evelyn Fox Keller e Donna Haraway. Entretanto, isso não é exclusividade brasileira. Apesar do interesse do campo ambiental e feminista, o livro foi marginalizado por historiadores anglófonos e filósofos da ciência moderna, além de ter encontrado um “clima frio” para sua recepção dentro da historiografia da ciência ( Park, 2006 ).
Outro motivo é que, mesmo não rejeitando a ideia de revolução científica, Merchant (2006) atacou duramente os “pais fundadores” da ciência moderna, Bacon e Descartes. Para ela, o movimento fundante da ciência moderna e os novos valores científicos e comerciais excluíram as mulheres e ajudaram a estabelecer uma nova visão de mundo que autorizava o domínio e a exploração da natureza e das mulheres.
The death of nature é a obra mais famosa e a maior contribuição de Merchant para a teoria ecofeminista. Com foco na Europa ocidental dos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, a autora analisou, amparada em um sofisticado e amplo corpo documental, as conexões entre as imagens das mulheres e da natureza existentes na formação do mundo moderno. Com 12 capítulos, o livro poderia ser menor, uma vez que os argumentos são repetidos algumas vezes durante a narrativa. Entretanto, isso parece decorrer do didatismo e do cuidado da autora ao falar de autores e tradições filosóficas que não são tão próximas de um público mais amplo. Mesmo assim, após a leitura, é possível compreender perfeitamente a bem formulada tese central.
Os primeiros quatro capítulos apresentam o mundo orgânico pré-moderno: como as metáforas e imagens da natureza geravam tipos diferentes de atitudes frente ao mundo natural e como as condições materiais daquele período permitiram a substituição do organicismo pelo mecanicismo. A teoria orgânica projetava na sociedade o funcionamento do corpo humano, onde cada indivíduo possuía uma função específica, estando subordinado aos propósitos da comunidade. A natureza, por sua vez, era representada como uma mãe nutridora e benevolente, que supria as necessidades humanas. Essa imagem – que aparece na literatura, arte, filosofia e ciência – gerava uma restrição cultural que impedia o uso arbitrário dos recursos. Após ser alterada para uma visão da natureza como selvagem e desordenada, o comportamento restritivo deu lugar à dominação.
Isso foi possível devido a um conjunto de mudanças ecológicas, comerciais, tecnológicas e sociais. Merchant mostra como a expansão mercadológica mudou comportamentos em relação à terra. O controle comunitário dos recursos, feito pelos camponeses para subsistência, deu lugar ao controle capitalista voltado para o mercado, alterando os padrões tradicionais de integração humano/terra.
As mulheres continuaram a ser ligadas à natureza quando esta passou a ser vista como desordenada e caótica. Era necessário, então, controlar e subjugar a natureza selvagem e também as mulheres, cada vez mais associadas à bruxaria e à luxúria, como mostram os julgamentos de bruxas na Inglaterra quinhentista. Na nova ordem, a figura feminina tornou-se passiva nas esferas produtiva e reprodutiva. Na primeira, a mulher perdeu seu papel na vida econômica e foi relegada à domesticidade do lar. Na segunda, estabeleceu-se a passividade do papel feminino na reprodução. A obstetrícia, anteriormente uma atividade exclusivamente feminina, conforme apontam tratados da época, passou a ser um domínio masculino.
Na última metade do livro, a autora discorre sobre domínio da natureza e a constituição da ordem mecânica. Filósofos naturais, como Bacon e Descartes, sancionaram os novos princípios e métodos científicos que viam a natureza como uma mulher a ser torturada. A natureza feminina, morta, inanimada e controlada pela técnica, estava pronta para ter seus segredos revelados e para ser utilizada em benefício humano, possibilitando a exploração e manipulação irrestrita do ambiente natural. A metáfora do organismo deu lugar à da máquina.
Quando o livro foi publicado, a discussão ambiental já era notória, mas ganhou mais importância, mantendo a atualidade da publicação. Outras cosmologias e alternativas de sociedade, trazidas por Merchant na exposição das utopias científicas, apontam outros modelos sociais que não a ordem mecanicista vencedora. Acusada de essencialismo, a autora não propõe, entretanto, retornar ao modelo orgânico, tampouco que as mulheres têm de resolver os problemas ambientais causados pelos homens. Sua contribuição ecofeminista se funda em uma mudança material e linguística, substituindo a feminilidade da natureza por uma terminologia neutra, e a construção de uma ética de parceria com a natureza (Merchant, 2006). Abre-se uma oportunidade de reflexão conjunta à ideia de “fazer parentes” de Haraway (2016) .
É igualmente importante o argumento de Merchant que coloca as questões de gênero no seio do debate sobre a emergência da ciência moderna na Europa, e de como ideias sexistas conformaram práticas científicas e atitudes em relação ao ambiente natural. Para a história ambiental, seu livro demonstra o valor das ideias na constituição da relação entre sociedade e natureza. O livro é uma boa oportunidade para entender e questionar alguns dos princípios que pavimentaram o caminho para a crise ecológica contemporânea.
Referências
HARAWAY, Donna. Antropoceno, capitaloceno, plantationoceno, chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5, p. 139 – 146. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf >. Acesso em: 3 fev. 2020. 2016 .
» https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4197142/mod_resource/content/0/HARAWAY_Antropoceno_capitaloceno_plantationoceno_chthuluceno_Fazendo_parentes.pdf
MERCHANT, Carolyn. The scientific revolution and the death of nature. Isis, v. 97, n. 3, p. 513 – 533. 2006.
MERCHANT, Carolyn. The death of nature: women, ecology, and the scientific revolution. San Francisco: Harper and Row. 1980.
PARK, Katharine. Women, gender, and utopia: “The death of nature” and the historiography of early modern science. Isis, v. 97, n. 3, p. 487 – 495. 2006.
Resenhista
Gabriel Schunk Pereira – Mestrando, Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal de Minas Gerais. orcid.org/0000-0002-8467-5579 E-mail: gabrielschunk@hotmail.com
Referências desta Resenha
MERCHANT, Carolyn. The death of nature: women, ecology, and the Scientific Revolution. San Francisco: Harper and Row, 1980. Resenha de: PEREIRA, Gabriel Schunk. The Death of Nature quarenta anos depois: as contribuições para o ecofeminismo e a historiografia da ciência, História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.2, abr./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
GOLCMAN Alejandra (Aut), El trabajo clínico psiquiátrico en el Buenos Aires del siglo XX (T), Catarata (E), GONZÁLEZ María Eugenia (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Trabalho Clínico Psiquiátrico, Buenos Aires, América – Argentina, Séc. 20
El libro de Alejandra Golcman El trabajo clínico psiquiátrico en el Buenos Aires del Siglo XX es el resultado de una tesis de doctorado en ciencias sociales, producto de una investigación de 5 años de duración. El texto explica principalmente cómo las prácticas de los médicos del hospital psiquiátrico de mujeres J.A. Esteves, de Buenos Aires, Argentina, fueron influenciadas, atravesadas e, incluso, modificadas por el contexto social y cultural, durante el período 1908-1971. Este trabajo se aleja de la histoedria tradicional, con foco en las grandes figuras o corrientes teóricas, y se inscribe dentro de una perspectiva de historia cultural de la psiquiatría.
Los principales aportes del libro residen, en primer lugar, en la estrategia metodológica utilizada a lo largo del texto. El planteo cuantitativo y cualitativo le ha permitido a la autora analizar, tanto la población hospitalaria en general como los casos particulares del hospital. En segundo lugar, es destacable el trabajo realizado con historias clínicas. Golcman adhiere a un enfoque donde cobra relevancia la pregunta por la cotidianeidad del trabajo clínico de los profesionales y la vida de los pacientes dentro de las instituciones psiquiátricas. La centralidad de estos aspectos en el libro resulta, entonces, su contribución fundamental. Cabe aclarar que Golcman inscribe su investigación en perspectivas que ya vienen siendo trabajadas, hace por lo menos 10 años, fundamentalmente por equipos de investigación de España y México ( Huertas, 2012 ; Ríos Molina, 2017 ) en el marco de la Red Iberoamericana de Historia de la Psiquiatría. De esta manera, en lo que se refiere específicamente al contenido del libro, la autora comienza su texto brindando una mirada sobre los diagnósticos de demencia precoz y esquizofrenia en el plano teórico, como los cuadros clínicos emblemáticos de la época, y también como los cuadros más representativos dentro de los casos clínicos analizados por la autora. Golcman realiza un abordaje de las ideas de los psiquiatras argentinos de aquel momento por medio de un análisis de artículos en revistas médicas, libros y tesis doctorales. Así, en el primer capítulo, la investigadora desarrolla el trabajo de esos autores, teniendo en cuenta las apropiaciones que ellos realizaron en el contexto local y mostrando que esas nociones también fueron redefiniéndose y reconstruyéndose con el correr de los años, en ese país.
En el segundo capítulo, la autora estudia las vivencias diarias de las pacientes internadas en el hospital, enfocando la atención en aspectos como las características de la convivencia con otras pacientes, el impacto de la inmigración y de la lengua extranjera, y los diagnósticos que aparecen en las historias clínicas. En esa parte del libro, Golcman consigue mostrar cierta homogeneidad de la cotidianeidad de la población hospitalaria, revelando también lógicas propias e independientes del contexto que tuvieron lugar en los pabellones del hospital. Este capítulo, ilustra la noción de “inercia” que Golcman (2017, p.204) propone en el libro. Ella argumenta que las descripciones encontradas en las fuentes muestran que el día a día de las pacientes en el hospital no parece haber cambiado mucho con el correr de las décadas.
Luego, en el capítulo “Los tratamientos que no curan”, Golcman (2017 , p.133) desarrolla los diferentes tipos de terapias utilizadas en el hospital, exponiendo cómo el ha sido entendido como un “laboratorio” donde se experimentaban diferentes terapias provenientes de Europa o de EEUU. Allí, la autora argumenta que los tratamientos utilizados, como la laborterapia, malarioterapia, terapias de shock y la lobotomía, utilización de psicofármacos etc., tuvieron otras intenciones más allá de la específicamente clínica. Golcman fundamenta esto en el pequeño número de pacientes que efectivamente recibieron terapias en el hospital. En este capítulo, vemos como el análisis cuantitativo que Golcman realiza resulta un recurso metodológico exitoso, ya que ilumina conclusiones sobre la existencia de una necesidad por parte de los psiquiatras, de experimentación, orden y control en el hospital, más que de una finalidad específicamente terapéutica.
En el último capítulo, el libro analiza la experiencia piloto de comunidades terapéuticas en el hospital, entre 1969 y 1971. La autora expone cómo, en uno de los 14 pabellones, convivieron diversos saberes y prácticas, provenientes no solamente de la psiquiatría, sino también del psicoanálisis y de la psicología comunitaria. En esta parte del libro, Golcman apela en primer lugar a la historiografía para comprender esas conexiones entre las distintas disciplinas en el país. Después, la autora explica puntualmente cómo se produjeron tensiones en el hospital, entre las diferentes formas de entender la cura de las pacientes en ese período histórico. La riqueza de esta parte del libro reside en que la autora desarrolla cómo esas tensiones no estuvieron desligadas de los procesos políticos del país, que se encontraba gobernado por un régimen militar.
El libro se torna, por lo tanto, en un excelente recurso para pensar el funcionamiento de este tipo de hospitales en relación a los diferentes contextos políticos de los países latinoamericanos. Estas instituciones resultan centrales en los escenarios de formulaciones de políticas de salud mental. Por ejemplo, en 2017, durante el gobierno de Mauricio Macri en Argentina, fue elaborado un proyecto de reforma de la Ley de Salud Mental, ya sancionada en 2010 y aceptada en aquel momento por diversos sectores. Por lo menos, en el plano formal la ley promovía la intención de mudar el paradigma manicomial, restituyendo los derechos para los pacientes. Después de esos avances, el actual gobierno argentino pretendió cambiar los términos de esa ley, dejando sin efecto esas propuestas. En el caso brasilero, y de forma similar, las directrices actuales de la política nacional de salud mental han sido reorientadas. En ese país, la hospitalización en manicomios se ha tornado central en el Ministerio de Salud del actual gobierno de Jair Bolsonaro.
En este sentido, tal como muestra el libro de Alejandra Golcman, se producen severas tensiones entra las distintas perspectivas de entender el funcionamiento de los hospitales psiquiátricos por parte de los actores del campo “psi”. Su libro entonces puede funcionar como “puente” entre ellos y contribuir a disminuir algunas distancias, por ejemplo, entre los investigadores de la temática con los profesionales de la salud mental de diferentes lugares. Estos y otros actores del campo “psi” tienen el derecho de solicitar y reclamar a los responsables, esto es, a los correspondientes funcionarios y gestores de cada país, que elaboren propuestas renovadoras dentro de los diferentes sistemas nacionales de salud mental. De esta manera, la investigación y el libro de la autora pueden colaborar para unir esfuerzos en esa dirección.
Finalmente, cabe destacar que si bien una de las principales fortalezas del libro reside en mostrar el panorama del accionar de profesionales (delimitando a la vez, cruces entre prácticas psiquiátricas y psicoanalíticas) y pacientes a lo largo del último siglo en el mencionado hospital, de igual forma el texto logra ofrecer herramientas teóricas y metodológicas. Este trabajo resulta de utilidad entonces para aquellos lectores que pretenden inscribir sus investigaciones, por ejemplo, en el área de los estudios históricos con perspectiva de género o basados en problemáticas de inmigración, a la vez que también resulta provechoso para quienes pretenden investigar este tipo de fuentes (historias clínicas) en otras instituciones similares en América Latina. El texto constituye entonces un recurso importante para los historiadores de la psiquiatría, para los profesionales de la salud mental y para el público en general interesado en la materia.
Referencias
GOLCMAN, Alejandra. El trabajo clínico psiquiátrico en el Buenos Aires del siglo XX. Madrid: Catarata. 2017.
HUERTAS, Rafael. Historia cultural de la psiquiatría: (re)pensar la locura. Madrid: Catarata. 2012.
RÍOS MOLINA, Andrés (Coord.). Los pacientes del Manicomio La Castañeda y sus diagnósticos: una historia de la clínica psiquiátrica en México. Ciudad de México: Instituto de Investigaciones Históricas Dr. José María Luis Mora/Universidad Nacional Autónoma de México. 2017.
Resenhista
María Eugenia González – Estudiante de postdoctorado, Universidad Nacional de Salta/ Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Salta – Argentina orcid.org/0000-0003-0085-798X E-mail: mgonzalez@mendoza-conicet.gov.ar
Referências desta Resenha
GOLCMAN, Alejandra. El trabajo clínico psiquiátrico en el Buenos Aires del siglo XX. Madrid: Catarata, 2017. Resenha de: GONZÁLEZ, María Eugenia. La psiquiatría en Buenos Aires en el siglo pasado: un estudio histórico sobre el trabajo clínico en el Hospital J.A. Esteves. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.2, abr./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
MIRANDA Cybelle Salvador (Org), COSTA Renato da Gama-Rosa (Org), Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal (T), Editora Fiocruz (E), NUNES José Carlos Avelãs (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Hospitais, Saúde, Séc. 19, América – Brasil, Europa – Portugal
Por um vasto oceano uniram-se dois continentes, com uma língua e um passado partilhados. Entre as viagens, sobreveio um profícuo e interessante linguajar oitocentista entre vários actores e instituições portugueses e brasileiros. Essas “conversas”, influenciadas por uma Europa de referência elitista, por um maior poder económico e um rápido incremento de estatuto social, foram cruciais para a apropriação e a utilização de conceitos na arquitetura da época. Cybelle Salvador Miranda e Renato da Gama-Rosa Costa, no livro Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal , publicado em 2018, pela Editora Fiocruz, organizam relatos históricos de uma viagem icónica entre esses dois mundos que, aparentemente diferentes, beberam da mesma fonte.
Os diversos poderes imperiais e não imperiais que, nesse arco cronológico, sofreram metamorfoses são, também, agentes produtores de registos cruciais, pois, em última análise, a decisão é um poder executivo. Nessa obra, não são apenas os detalhes históricos centrados em sistemas governativos, mas também as visões dos doentes para com os seus decisores, invertendo a narrativa para ilustrar a importância da doença e do tratamento – o relato pelas elites resulta, normalmente, numa linha histórica rapidamente solúvel. As diversas peças do puzzle são extensivamente analisadas nos textos, entre as quais a questão da mudança da direcção médica das instituições, a consolidação científica, a título de exemplo. A arquitetura é um “espelho de Alice” que, além de refletir imagens da sua realidade, revela, por detrás, um mundo desconhecido de premissas e locuções – as mesmas que, também, o livro desvenda.
Por um lado, são demais interessantes as apropriações de conhecimento entre os actores portugueses e os brasileiros, mesmo quando o solo lhes foi trocado, com um estudo não apenas focado nos experts , mas dando destaque ao papel fundamental de muitos outros personagens. Essas redes construídas no Oitocentos permitiram alinhar os pontos entre os projetos dos arquitetos e engenheiros de “além-mar”, com uma reciprocidade que os autores profundamente exploram. Sendo a arquitetura para os seus utilizadores e, no caso do tipo hospitalar ou assistencial, para os seus doentes, é de notar que, partilhando o palco, a visão dos seus utilizadores não é de somenos explorada, mas sim consequente das decisões políticas e das espacializações arquitetónicas adoptadas.
Por outro lado, o livro é mais uma contribuição para uma história da arquitetura com ênfase na história da medicina, numa primeira escala. Esse trabalho relê as entrelinhas entre essas duas disciplinas, fundamentais para a compreensão do poder político e económico, as suas consequências no planeamento urbano e, especialmente, na arquitetura hospitalar. Não fica apenas pelas fachadas, pelos pormenores construtivos ou ainda por elementos de índole artística – precisamente ícones de fulgurantes transições neoclássicas ou “beaux-artianas” francesas –, mas apoia-se na compreensão da arquitetura como um elemento organizado e integrativo. As descobertas médicas e a sua adopção no sentido científico e prático da época foram peças fundamentais e até dominantes para uma resposta por parte dos arquitetos, e contribuíram para uma nova visão de programa hospitalar. Concorda-se com as palavras dos organizadores, na “leitura dos diálogos intensos e ainda pouco visíveis na historiografia luso-brasileira” (Miranda, Costa, 2018), e até no ponto de vista internacional, que, só muito recentemente, considera a história das ciências, da tecnologia e da medicina não como mediadores, mas como fundamentais para a compreensão da razão (clássica e modernista) das decisões. Essa razão – científica, nesse caso – foi o mote para a construção de uma régua e de um esquadro próprios para os hospitais e a higienização das urbes, e a lente utilizada para as decisões políticas da época. Questionar o status quo vigente da historiografia da arquitetura, retomando a história comparada e com realce na história da ciência, é uma das grandes contribuições dessa obra.
Analisando o filme de um século iluminado, os vários fotogramas examinados pelos sete capítulos do livro examinam, em detalhe, o(s) seu(s) objeto(s): o(s) hospitai(s) (num sentido plural e lato).
Em comum surge a importância da transição entre a primeira e a segunda metade do século XIX: a década de 1850. As grandes epidemias (nacionais e internacionais), as pequenas mas significativas revoluções científicas desse século e o projeto e edificação de edifícios hospitalares não são – nem poderiam ser – um acaso probabilístico dessa década. As doenças, o urbanismo, a arquitetura, a sociedade e os médicos são figuras-chave, que os autores vastamente exploram, para reaver um significado histórico e uma descodificação causal. Adaptando Saramago, as “intermitências da morte” (tal como os surtos epidémicos) varriam os corpos doentes enquanto fizeram lavar as cidades e os edifícios. Também, nas palavras de Sanglard no prefácio do livro, surgem três marcadores cruciais para trilhar o seu caminho: “progresso, asseio (higiene) e racionalidade” (Miranda, Costa, 2018, p.10). Essas palavras são chaves e chavões para, precisamente, o Oitocentos em estudo. A arquitetura higienista, que tem o seu berço nesse século – mesmo que antes da apoteose do século seguinte –, encontrava-se imbuída no discurso dessa época, em Fafe ou no Rio de Janeiro, no Pará ou em Coimbra, ou em qualquer outro local onde as malas dos viajantes luso-brasileiros ou brasileiro-lusos estivessem pousadas.
Para onde foram esses doentes? Em que situações estavam esses doentes? Como viviam esses doentes?
Os autores instigam a arquitetura como contenção, como profilaxia, ou até como isolamento, para os seus vários programas – o do enfermo contagioso, do maluco, do pestilento. Mas esse programa não foi comum, naturalmente, a todos os estratos sociais da época, altamente segregados. Para além da capacidade científica e a sua utilização material na arquitetura, como respondeu a sociedade à incapacidade económica dos seus enfermos? Os estudos relacionados de sistemas das Misericórdias da época, e beneficência e de assistência (pública e privada) relacionaram-se, mas forçaram respostas projetuais diferenciadas. Na mesma sequência, é muito interessante e relevante o estudo paralelo entre várias instituições brasileiras e portuguesas, e suas relações simbióticas. Foram constituídas redes e trocas, com circulação de conhecimento científico e arquitetónico, cujas discussões e decisões, modelos e sistemas são manifestamente importantes tanto para o projeto e a sua materialização como para a compreensão de um fenómeno com diversas faces. Também a importância da circulação de conhecimento por meio da difusão popular, nomeadamente por meio das várias referências existentes no livro sobre opúsculos, boletins ou jornais, mostra tanto a urgência e a necessidade dos ensinamentos higiénicos como também a constante preocupação dos cientistas.
Os arquitetos ou os engenheiros são, assim, as personagens principais nesse palco. Foram os arquitetos uma das classes profissionais a contribuir para a formulação de modelos ou tipos, mas também aqueles que os materializaram. Concomitantemente, a sua utilização como objeto (o hospital, por exemplo), agregando também os desenvolvimentos científicos da época, foi também discutida pelos projetistas. Do desenho no papel à construção da obra, muitas discussões com médicos e políticos são borrachas ou escantilhões para o projeto de arquitetura. Nesse ponto, as adaptações neoclássicas (ou a sua anulação) ganham o seu propósito, pois estavam tanto enraizadas na formação dos arquitetos como vulgarizada na prática, no desenho. Mas apenas existia “um” neoclássico, ou as suas variações são diferentes dos dois lados do oceano? Como se mediou esse conflito estético e gramatical, e por quem? As várias e possíveis respostas encontram-se em cada um dos capítulos, mas levanta-se apenas o véu: a arquitetura portuguesa e a arquitetura brasileira têm ângulos de reflexão diferentes dos ângulos de incidência; mais, são caleidoscópios com resultados inesperados. A rotação da sua lente levanta mais interrogações: foi o neoclássico um estilo exequível para os preceitos higiénicos da época, ou constituiria ele próprio uma imagem de marca de higiene e sanidade, (ou ainda) uma imagem de um império?
O “projeto arquitetónico como enquadramento da memória” ( Miranda, Costa, 2018 , p.122) resume, também, a vertente documental e a importância dos hospitais para a leitura da cidade. Mesmo perante a destruição de alguns edifícios (e, consequentemente – ou não – de documentação), só a memória permite consolidar a presença dessas instituições e matérias arquitetónicas, quer quando essas ainda existem, quer quando estão para sempre perdidas. Além dos organizadores, são Cibelly Figueiredo, Daniel Bastos, Emanuella Godinho, Éric Gallo, Fernando Grilo, Inês Andrade, Joana Pinho e Maria João Bonina os autores e escrivães desses sete capítulos, que constituem um registo de leitura(s) e memória(s) que não se perderam no oceano.
Referências
MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa (Org.). Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2018.
Resenhista
José Carlos Avelãs Nunes – Investigador. Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia/ Faculdade de Ciências/Universidade de Lisboa. Lisboa – Portugal orcid.org/0000-0002-9964-6658 E-mail: jcnunes@fc.ul.pt
Referências desta Resenha
MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa (Org.). Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. Resenha de: NUNES, José Carlos Avelãs. Os navegantes cruzados entre as duas margens de um mesmo Atlântico: a(s) arquitetura(s) na(s) saúde(s) de Oitocentos entre Brasil e Portugal. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.2, abr./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
VELMET Aro (Aut), Pasteur’s empire: bacteriology and politics in France/ its colonies and the world (T), Oxford University Press (E), SILVA Matheus Alves Duarte da (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), História da Ciência, História da Medicina, História Global, Microbiologia, Ásia – Indochina, Europa – França, Séc. 19-20, Ásia – Vietnã, Ásia – Laos, Ásia – Camboja, África – Tunísia, África – Senegal,
Fruto de tese de doutorado, Pasteur’s empire combina ferramentas analíticas próprias à história da ciência, à história da medicina e à história global a fim de mapear as consequências políticas e científicas do encontro entre a microbiologia e o império francês. Cronologicamente, o livro abarca uma faixa de tempo compreendida entre o início da colonização francesa na Indochina, na última década do século XIX, até a capitulação de 1940, que encerra oficialmente a Terceira República. Geograficamente, embora tenha uma pretensão quase totalizante expressa em seu título, o livro recobre sobretudo a França e as colônias da Indochina (atuais Vietnã, Laos e Camboja), da Tunísia e do Senegal (este último parte integrante da então África Ocidental Francesa).
Aro Velmet trabalha um tema em particular em cada capítulo, indo desde a gestão de doenças epidêmicas como a peste bubônica, a febre amarela e a tuberculose em alguns desses espaços coloniais, passando pela tentativa dos pasteurianos em estabelecer um monopólio sobre a produção e venda de álcool na Indochina ou pela transformação geral dos pasteurianos, “monges ascetas” na metrópole, em grandes capitalistas coloniais. Após essa viagem por pelos menos três continentes ao longo de quase 50 anos, Velmet conclui que essa época pasteuriana na história da medicina possui características muito próximas da era atual: trabalho em rede, conectado ao mercado global e capaz de fornecer soluções orientadas para as causas biológicas e não sociais dos problemas. Em razão dessa similaridade, Velmet afirma que o deslocamento da microbiologia da França para as suas colônias desvela uma possível origem da saúde global.
De maneira geral, o livro de Velmet dialoga com duas principais correntes historiográficas. De um lado, ele se dirige às discussões sobre as relações complexas entre medicina, ciência e impérios em contextos de língua inglesa. Velmet lembra portanto que a dominação do mundo não foi apanágio britânico nem estado-unidense, e que os franceses também tiveram um império. Ele dialoga por outro lado com a historiografia francesa dedicada à microbiologia, sobretudo com a obra de Bruno Latour. De fato, o leitor encontrará ao longo dos capítulos o típico vocabulário do pensador francês – redes, centros de cálculo, atores não humanos –, o que faz o livro de Velmet parecer em alguns momentos uma sequência de The Pasteurization of France , em que, dessa vez, o império contra-ataca.
Para além de ser um livro agradável e bem construído, a principal força de Pasteur’s empire reside em que ele complementa e complexifica The Pasteurization of France . Como aponta Latour (2001, p.222-234) ao fim da parte empírica do seu livro, para se compreender a capacidade transformativa da microbiologia após a criação do soro antidiftérico, em 1894, a atenção deve se voltar, ao menos até 1914, para as colônias francesas, pois é ali que os pasteurianos, como “Solons dos trópicos”, legislam e transformam tais sociedades. A afirmação de Latour se baseia porém em pouca, ou quase nenhuma, pesquisa documental, o que Velmet por outro lado faz muito bem. Partindo de diferentes arquivos situados na França e em suas antigas possessões, ele mapeia não apenas como os pasteurianos mudaram e moldaram o império francês para muito além de 1914, mas como o império os transformou nesse meio-tempo. Velmet mostra também como as estruturas de poder, um tópico sempre problemático em análises que utilizam o ferramental latouriano, revelam-se presentes ao longo da saga pasteuriana nos trópicos; se os cientistas conseguem transformar as sociedades coloniais, essa transformação é limitada e deve ser negociada a quase todo momento com a administração colonial e em menor escala com os próprios “colonizados”.
Apesar desse interesse, a leitura do livro de Velmet desperta também três principais inquietações, a começar pela ideia de que o império mudou a microbiologia, a ela atribuindo uma dimensão capitalista. Na verdade, o Instituto Pasteur foi sempre pensado e agiu como uma empresa capitalista, e os estudos sobre a tentativa de Pasteur em controlar monopolisticamente o comércio da vacina anticarbunculosa, um pouco antes do período analisado no livro, ilustram muito bem essa situação (Cassier, 2008). A ida aos trópicos com certeza alterou algumas práticas da microbiologia e os próprios microbiologistas, mas o império não transformou totalmente a microbiologia, posto que na França ela não era mais “pura” e menos conectada aos interesses capitalistas do que nas colônias.
Embora o livro de Velmet seja um estudo centrado sobre o império francês, ele pretendia também cobrir o “mundo”. Esse mundo não é visto, no entanto, só pelas lentes francesas. Assim, em segundo lugar, ao se concentrar quase exclusivamente sobre os pasteurianos franceses ao longo de debates que ultrapassavam em muitos aspectos as fronteiras daquele império, como a crise provocada pela pandemia de peste bubônica no final do século XIX ou as tentativas de se encontrar uma vacina para a febre amarela nos anos 1920, Velmet dá a falsa impressão de que seus atores possuíam uma capacidade de ação global inigualável. O leitor sentirá falta precisamente de outras vozes capazes de enriquecer a análise das redes pasteurianas, vozes brasileiras por exemplo, tão presentes nos debates internacionais sobre a peste bubônica quanto naqueles sobre a febre amarela.
Em terceiro lugar, ao afirmar que a saúde global possui uma origem pasteuriana, Velmet faz uma análise teleológica. De fato, o conceito de saúde global vem funcionando muitas vezes como um imã, atraindo para si a maioria dos estudos em história da medicina e da saúde. Em vez dessa quase obsessão com as origens ou com a antecipação da saúde global já no início do século XX, seria talvez mais proveitoso pensar em termos de histórias globais da saúde. Tais histórias poderiam ser capazes de mostrar como os saberes e as práticas da medicina foram construídos, validados, reconfigurados e contestados em um momento de densificação das interações humanas como a era dos impérios; um período de tempo no qual os europeus exercem um grande poder, mas não o exercem sozinhos. A análise de Velmet dá assim indícios importantes tanto de como contar uma história global da saúde quanto das dificuldades que existem para realizá-la.
Referências
CASSIER, Maurice. Producing, controlling, and stabilizing Pasteur’s anthrax vaccine: creating a new industry and a health market. Science in Context, v. 21, n. 2, p. 253 – 278. 2008.
LATOUR, Bruno. Pasteur: guerre et paix des microbes. Paris: La Découverte. 2001.
Resenhista
Matheus Alves Duarte da Silva – Doutorando. Centre Alexandre Koyré/École des Hautes Études en Science Sociales. Paris – França orcid.org/0000-0003-0982-6231 E-mail: matheus.duarte@ehess.fr
Referências desta Resenha
VELMET, Aro. Pasteur’s empire: bacteriology and politics in France, its colonies and the world. Oxford: Oxford University Press, 2020. Resenha de: SILVA, Matheus Alves Duarte da. A pasteurização do império francês. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.3, jul./set. 2020. Acessar publicação original [DR]
RÍOS MOLINA Andrés (Coord), La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporâneo (T), Universidad Nacional Autónoma de México (T), CERQUEIRA Ede (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Psiquiatria, América – México, Séc. 20-21
O livro La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporáneo, como o próprio título indica, tem como objetivo explorar as formas como a psiquiatria se relacionou com os campos sociais, políticos e culturais no México, ultrapassando as fronteiras da clínica. Coordenada por Andrés Ríos Molina (2017), a obra reúne autores que, a partir de metodologias e aportes teóricos diversos, procuram explorar as relações estabelecidas entre sociedade e psiquiatria sob o viés da história cultural. Para desenvolver esse tipo de análise, eles partem de um primoroso, variado e inovador conjunto de fontes, que envolve desde planos educativos, correspondência administrativa, cartografias, imagens publicitárias, fotografias, fotonovelas até comics.
Os cinco capítulos que compõem a obra se estruturam em torno de um duplo viés historiográfico, privilegiando, por um lado, o estudo das instituições educacionais, médicas e governamentais onde a psiquiatria desempenhou um papel relevante e, por outro, as representações culturais sobre a loucura, tanto no âmbito do discurso como da prática, disseminadas em múltiplos espaços da Cidade do México. Nesses capítulos são apresentados outros atores sociais, além dos médicos e psiquiatras, como pedagogos, administradores públicos, empresários e fotógrafos, entre outros, que também se preocuparam em alguma medida com questões relacionadas às enfermidades mentais.
Daniel Vicencio, no primeiro capítulo, estuda os últimos anos de funcionamento do Manicômio Geral de La Castañeda, fundado em 1910 na região de Mixcoac, até seu fechamento e demolição em 1968. O autor procura demonstrar, em oposição à historiografia sobre o tema, que a “Operação Castañeda”, que possibilitou o fechamento do hospício, longe de ser apenas uma iniciativa governamental amparada pelas teorias médicas, foi um processo que envolveu outros atores – empreiteiros e administradores públicos –, cuja participação foi determinante, mobilizando interesses médicos, econômicos e políticos. Já o segundo capítulo trata do desenvolvimento e institucionalização da psiquiatria infantil e da educação especial no México, a partir do estudo de duas instituições psiquiátricas criadas pela Secretaria de Educação Pública na década de 1920, o Instituto Médico Pedagógico Parque Lira e a Clínica de Conduta. Nesse capítulo, a autora, Ximena López Carrilo, analisa como se desenvolveram as relações entre a medicina mental infantil e as escolas, destacando as formas como o contexto institucional educativo definiu as práticas e o olhar da psiquiatria clínica sobre a infância. José Antonio Maya González, no capítulo seguinte, analisa as representações sociais sobre a epilepsia presentes tanto na imprensa como na publicidade médica, em comparação ao discurso desenvolvido pela medicina psiquiátrica. O autor observa que houve uma variação considerável do olhar sobre os indivíduos acometidos pela epilepsia, na Cidade do México, entre o final do século XIX e início do XX, que dependeu do lugar social em que as representações sobre eles foram elaboradas. Na sequência, Rebeca Monroy Nasr trabalha com a análise de fotografias produzidas sobre o Manicômio La Castañeda até seu fechamento, incluindo também imagens de algumas das instituições hospitalares que o substituíram. A autora observa, a partir desse rico material, como as imagens produzidas serviram a propósitos vários ao longo do tempo, influenciadas pelas mudanças políticas, institucionais e pelo olhar do fotógrafo. No último capítulo, Andrés Ríos Molina utiliza fotonovelas e comics, publicados na Cidade do México entre 1963 e 1979, como fontes para desenvolver uma análise das representações da loucura nesse tipo de produção cultural.
Os autores participantes dessa obra coletiva apresentam uma significativa contribuição para os estudos culturais em história da psiquiatria, tanto pelo amplo conjunto de fontes levantadas como pelas relevantes análises desenvolvidas a partir delas. Essas fontes, que remetem a produções desenvolvidas em outros âmbitos que não o estritamente vinculado à ciência médica psiquiátrica, apresentam uma polifonia de discursos produzidos sobre a loucura e os cuidados com ela por atores sociais de campos como a imprensa, a educação, a política e a administração local, demonstrando o quanto as vozes externas ao hospício influenciavam seu funcionamento. Em alguns momentos, no entanto, os autores acentuam a separação entre o campo psiquiátrico e o contexto cultural e social mais amplo, como se cada um desses atores sociais – médicos e não médicos – fossem produtores de discursos singulares e independentes que não se influenciassem mutuamente. Essa separação não se justifica se considerarmos a ciência psiquiátrica um empreendimento social que deve ser analisado inserido nesse contexto, conforme trabalhos mais recentes sobre a história das ciências têm mostrado. Concluindo, reafirmo a significativa contribuição da obra para a historiografia da psiquiatria, uma vez que incentiva a ampliação e diversificação do escopo de fontes utilizadas, assim como dos temas e atores sociais eleitos como objetos de análise nesse campo do conhecimento.
Referências
RÍOS MOLINA, Andrés. La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporáneo. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México. 2017.
Resenhista
Ede Cerqueira – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro orcid.org/0000-0003-1741-4763 E-mail: dy_cbc@hotmail.com
Referências desta Resenha
RÍOS MOLINA, Andrés (Coord.). La psiquiatría más allá de sus fronteras: instituciones y representaciones en el México contemporáneo. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2017. Resenha de: CERQUEIRA, Ede. Psiquiatria, cultura e sociedade no México. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.3, jul./set. 2020. Acessar publicação original [DR]
SOUZA Vanderlei Sebastião de (Aut), Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência/ raça e nação no período entreguerras (T), Editora Unicentro (E), EL-DINE Lorenna Ribeiro Zem (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Renato
O livro de Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto da Universidade Estadual do Centro-oeste (Unicentro-PR), consiste em um estudo sobre a atuação do médico Renato Kehl (1889-1974) como organizador do movimento eugênico brasileiro, entre 1917 e 1932. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, a pesquisa se baseou em amplo repertório de fontes bibliográficas e do arquivo pessoal de Kehl, incluindo atas e anais de congressos, artigos de periódicos e correspondências, contido no acervo do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Souza analisa os fatores que levaram a mudança nas concepções eugênicas de Kehl, a partir de finais da década de 1920. Conforme o argumento desenvolvido no livro, tal mudança se traduz pela passagem de um conceito amplo de eugenia e que esteve muito próximo dos ideais de reforma do ambiente social do movimento médico-sanitarista, para uma eugenia com fronteiras mais bem delimitadas e caracterizada por medidas radicais como o exame médico pré-nupcial obrigatório, a esterilização compulsória e a seleção dos imigrantes segundo critérios raciais.
Para compreender como se deu essa passagem de Kehl da “eugenia preventiva” para as eugenias “positiva” e “negativa”, Souza dialogou com os estudos de Pierre Bourdieu sobre o campo científico. A partir dessa interlocução, nos quatro capítulos que compõem o livro, Souza analisa os movimentos de Kehl como ator científico, divulgando as ideias eugênicas nos meios científico e social brasileiros, posicionando-se em relação aos debates sobre o melhoramento da “raça brasileira” e participando de uma rede transnacional de eugenistas, composta de médicos, cientistas, políticos e intelectuais.
O diálogo mais importante do livro é o realizado com o trabalho da pesquisadora Nancy Leys Stepan, professora da Universidade de Columbia, em Nova York. Para Stepan (2005), nos países da América Latina predominou uma eugenia mais “suave” e associada à teoria neolamarckiana, que pressupunha a interferência de fatores ambientais nos processos da hereditariedade. Em razão disso, as políticas eugênicas nesses países se concentraram nas ações de combate às doenças e ao alcoolismo e nos cuidados com a maternidade e a infância. Já em países do norte da Europa e nos EUA, o predomínio da genética mendeliana e da crença na independência da hereditariedade em relação ao meio implicou medidas eugênicas mais duras, como a esterilização, a restrição da imigração e a segregação racial.
Na linha de Stepan, os dois primeiros capítulos do livro analisam as razões do êxito de Renato Kehl na divulgação da eugenia e o modo como ele assume o protagonismo desse movimento no Brasil. Souza ressalta o sentido de modernidade que foi associado à eugenia, assim como a preocupação histórica das elites intelectuais brasileiras com as consequências da miscigenação racial. Nesse ambiente propício à popularização de uma ciência que prometia interferir nos processos da hereditariedade humana, Renato Kehl conseguiu apoiadores entre os médicos sanitaristas e organizadores da Liga Pró-saneamento do Brasil, os psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene Mental e os principais expoentes da medicina legal. Na América Latina, Kehl foi interlocutor do eugenista argentino Victor Delfino e do peruano Carlos Henrique de Paz Sóldan.
O terceiro e o quarto capítulos analisam a mudança do paradigma eugênico de Kehl como reflexo das mudanças do movimento eugenista dentro e fora do país, do avanço da genética mendeliana e dos novos rumos da carreira de Kehl, que, em 1927, trocaria o Departamento Nacional de Saúde Pública pelo cargo de diretor da Indústria Química e Farmacêutica, da Casa Bayer, no Brasil. Em 1928, o eugenista brasileiro esteve na Europa por cinco meses, como convidado da empresa multinacional alemã, e aproveitou a oportunidade para conhecer instituições dedicadas à pesquisa eugênica. A realização dessa viagem ampliou sua rede de contatos da América Latina em direção à Europa e aos EUA. De volta ao Brasil, Renato Kehl procurou se afirmar como porta-voz de um programa eugênico delimitado nos moldes da eugenia racial alemã e cada vez mais distante da medicina social.
Apesar do foco sobre Kehl, o livro pontua diversas vozes da eugenia no meio científico brasileiro, endossando, nesse ponto, a crítica feita por Mark B. Adams (1990, p.219) aos estudos que interpretaram a eugenia como uma pseudociência à margem das ciências institucionalizadas. Ao mesmo tempo, ressalta a heterogeneidade das ideias e práticas eugênicas no Brasil, como efeito de suas interações com diferentes tradições intelectuais. Ao discutir o percurso intelectual de Kehl, Souza reitera a distinção de Stepan entre a “eugenia latina” e a “eugenia anglo-saxã”, tornando-a elucidativa dos pontos de partida e de chegada de seu programa eugênico.
Nesse ponto aparece sua principal divergência com o livro clássico de Stepan (2005, p.170), pois enquanto esse livro sugere que Kehl teria permanecido entre os adeptos das teorias lamarckistas, mesmo quando passou a propor medidas eugênicas mais radicais, Souza nos convence de que o eugenista brasileiro se tornou um mendeliano. Essa constatação complexifica a historiografia do movimento eugênico no Brasil, pois os oponentes das proposições radicais de Kehl, como o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, também eram mendelianos. Com isso, Souza delineia uma agenda de pesquisa sobre as variantes e as controvérsias do movimento eugênico, chamando a atenção para os intercâmbios intelectuais e os movimentos transnacionais da eugenia, nas primeiras décadas do século XX. Agenda essa a que Vanderlei Sebastião de Souza (2017) vem se dedicando em artigos e seu livro sobre o antropólogo Edgard Roquette-Pinto.
Referências
ADAMS, Mark B. Toward a comparative history of eugenics. In: Adams, Mark B. The wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Russia. New York: Oxford University Press. p.217-231. 1990.
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Rio de Janeiro: FGV; Fiocruz. 2017.
STEPAN, Nancy Leys. “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005.
Resenhista
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine – Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. Rio de Janeiro orcid.org/0000-0002-4055-8733 E-mail: lrzedine@gmail.com
Referências desta Resenha
SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. Resenha de: EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. Renato Kehl, a eugenia brasileira e suas conexões internacionais. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.3, jul./set. 2020. Acessar publicação original [DR]
MARTÍNEZ-PÉREZ José (Ed), PERDIGUERO-GIL Enrique (Ed), Genealogías de la reforma sanitaria en España (T), Libros de La Catarata (E), BALLESTER Rosa (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), Reforma Sanitária, Europa – Espanha, Genealogias, Séc. 20
La reforma del sector de la salud hay que entenderla, en sus principios programáticos generales, como un proceso cuyo objetivo es mejorar la equidad, la calidad y la eficiencia mediante cambios en la organización y financiación de los servicios de salud. El análisis histórico de los sistemas sanitarios contemporáneos nos permite valorar y entender el modo como los distintos países se enfrentaron a los formidables retos planteados para hacer frente a la salud y enfermedad de las poblaciones. Este es el núcleo en torno al cual se articula el libro Genealogías de la reforma sanitaria en España, intentando responder a las preguntas del por qué, el cuándo y el cómo tuvo lugar ese proceso en el Estado español de la segunda mitad del siglo XX. El interés de una obra de estas características, coordinada por dos historiadores de reconocida valía y dilatada trayectoria investigadora, reside, en gran medida, en la singularidad de su enfoque, en la potencialidad de las fuentes utilizadas, en la novedad de muchos de sus contenidos, que hacen que su lectura rebase con mucho las fronteras de un estudio país para transformarse en un modelo de trabajo que sin duda va a ser de utilidad a nivel internacional. Examinemos brevemente el contexto político y social en el que el libro se desenvuelve.
Tras el trágico episodio de la Guerra Civil Española (1936-1939), se instauró y tuvo una vigencia de cerca de cuarenta años, la dictadura franquista. A lo largo de este dilatado espacio temporal, hasta la muerte de Francisco Franco en 1975, se fueron sucediendo una serie de cambios, desde el denominado periodo autárquico, caracterizado por el aislacionismo político y social, hasta el fin de dicho aislamiento internacional de España con la entrada del país en los organismos y agencias de las Naciones Unidas, entre ellos, la Organización Mundial de la Salud (OMS) en 1951, en pleno periodo de la Guerra Fría. Los últimos años del régimen franquista, en los que transcurren preferentemente la mayor parte de los capítulos del libro, corresponden a la etapa del desarrollismo con la puesta en marcha de los denominados planes de desarrollo económico y social, y el declive del régimen. En todo este contexto se produjeron una serie de cambios que afectaron a la organización sanitaria y que se acentuaron en la etapa denominada de transición democrática, periodo durante el cual el país dejó atrás el régimen dictatorial y pasó a regirse por una constitución (1978) que restauraba la democracia.
En el caso concreto de las transformaciones experimentadas por todos aquellos aspectos referentes a las políticas sanitarias, esta monografía representa una contribución a la tarea de comprender adecuadamente los acontecimientos previos – con iniciativas que no pocas veces estuvieron abocadas al fracaso – a la reforma que delimita el actual ordenamiento sanitario español: la Ley General de Sanidad de 1986. Dicha ley supuso un cambio de gran trascendencia en el modelo político de asistencia sanitaria, que pasó de un sistema de Seguridad Social financiado con las cuotas de trabajadores y empresarios, a un sistema nacional de salud en el que se integraban todas las otras redes existentes y que se financiaba a través de los presupuestos generales del Estado de forma progresiva. Se estableció igualmente la universalidad de la asistencia sanitaria para todos los españoles.
La utilización en el título del plural “genealogías” en lugar de “genealogía” responde a la amplitud y complejidad del tema que, como indican los autores, requeriría de más estudios monográficos de diversos aspectos que permitieran tener una visión de conjunto, global y comprehensiva de la reforma sanitaria en el periodo de tiempo estudiado. Por ello, se ha optado por seleccionar algunos problemas relevantes y significativos por su importante alcance científico, profesional y social. En los tres bloques en los que está estructurado el libro se abordan sucesivamente los problemas de salud en el ámbito rural (“Un mundo en descomposición: la asistencia sanitaria en el mundo rural”), diversas cuestiones de índole educativa y asistencial (“Nuevas respuestas a viejos problemas”) y finalmente, análisis de las discusiones en torno a la definición de las fronteras entre la normalidad y la discapacidad con ejemplos prácticos (“Redefiniendo las fronteras de la normalidad”).
Médicos y matronas en unos entornos rurales en proceso de despoblación en el periodo del desarrollismo y con los cambios que conllevaron la introducción de nuevas normativas que modificaban las propias figuras profesionales, eran temas escasamente estudiado. La aportación de Ruiz Verdún sobre la asistencia al parto en el mundo rural, el papel desempeñado por las matronas y, como telón de fondo, la medicalización creciente del parto, es muy clarificador e incluye testimonios de estas profesionales junto con otras fuentes. El capítulo de autoría colectiva (Comelles, Perdiguero, Bueno y Barceló), sobre la práctica médica rural durante el franquismo, el de mayor longitud de todo el volumen, merece una mención especial al aunar una pluralidad de fuentes analizadas con rigor, un muy detallado análisis de las peripecias sufridas por el cuerpo de médicos titulares, desde varios puntos de vista, el legislativo, el estructural pero también el modo como percibieron y experimentaron las transformaciones hasta su virtual desaparición con la aparición de la atención primaria a la salud, desde sus propios testimonios. El capítulo está abordado desde la doble perspectiva antropológica e histórica. La presencia de dos de los autores, especialistas en antropología médica e historia (Josep M. Comelles y E. Perdiguero) con una obra muy importante en este terreno ( Perdiguero-Gil, 2015 ; Perdiguero-Gil, Comelles, 2019), hacen que ese capítulo sea de referencia obligada para el análisis de los médicos rurales – en este entorno español y en el de otros países – y plantea un interesantísimo tema de investigación de largo recorrido en la historiografía: la figura y la percepción social del médico ideal, el que escucha, el que atiende técnicamente pero también el que se ocupa, y se preocupa por sus enfermos de forma altruista y cercana.
En el segundo de los bloques indicados, se articulan cuatro grupos temáticos que tienen en común el formar parte de un grupo de problemas de largo recorrido que experimentaron cambios en su consideración en los años finales del franquismo. David Lorda, un historiador de la psiquiatría, sobre la base de las importantes investigaciones que sobre el particular se están llevando a cabo por autores de la talla de Rafael Huertas, Ricardo Campos o Enric Novella, se ocupa de la asistencia al enfermo mental heredada del franquismo y los intentos de reforma a través de nuevos organismos como el Patronato Nacional de Asistencia Psiquiátrica, desde una perspectiva tecnocrática que no supo estar a la altura de los movimientos de reforma psiquiátrica que en otros países se estaban llevando a cabo.
Dadas las características del régimen franquista, con una fuerte impronta de la moral más conservadora, el tema de la sexualidad en general y de la educación sexual en las escuelas, en particular, era punto menos que conflictivo. Aida Terrón e Inmaculada Hurtado, conocidas expertas en historia de la educación, examinan tanto el contexto internacional de países concretos y de organismos como OMS y Unesco, sobre el tipo y contenidos programáticos de este tipo de educación y la realidad española de los años 1960 y 1970, con las dificultades para conciliar y armonizar los distintos modelos con bases ideológicas plurales, intentando evitar conflictos, en un tema no resuelto.
Pilar León forma parte del grupo de investigación sobre el recorrido histórico en el periodo contemporáneo del hospital, la institución asistencial más emblemática. Su capítulo en este volumen aborda la redefinición del papel jugado por la Iglesia católica en el sistema hospitalario español, en un doble eje de referencia: los cambios asistenciales que afectaron a la red hospitalaria durante el franquismo y la transición y el nuevo marco que supusieron las orientaciones de la Iglesia emanadas del Concilio Vaticano Segundo. Un análisis que incluye desde los cambios en la situación patrimonial de las instituciones existentes, sobre todo las relativas a la infancia, los enfermos mentales y la atención a ancianos y otras patologías residuales, como la lepra, a los cambios cualitativos de tipo profesional e ideológico que afectaron a religiosos y religiosas que tradicionalmente habían sido piezas clave en la estructura de dichas instituciones.
Los problemas y las orientaciones que se llevaron a cabo en el periodo objeto de estudio sobre temas cruciales que afectaban a la propia estructura de las políticas sociales y económicas del país, el de la medicina, la higiene y la seguridad del trabajo, es el contenido del último de los capítulos de este segundo bloque, bajo la autoría de un especialista en estos temas, José Martínez Pérez. A diferencia de otras reformas emprendidas y que se analizan en otros lugares del libro, ésta se orientó siguiendo en gran medida las directrices emanadas de organismos internacionales como la OMS y la Organización Internacional del Trabajo con un discurso que reforzaba la prevención y una visión amplia del concepto de salud en los contenidos de la especialidad de medicina del trabajo, contribuyendo al proceso modernizador que el país estaba experimentando.
El libro se cierra con un tercer bloque que incluye dos trabajos de Salvador Cayuela y Mercedes del Cura, respectivamente, estudios que se incardinan en el grupo de investigación liderado por el autor del capítulo anterior, con una larga trayectoria en el campo de la historia de las discapacidades. Dos aportaciones con enfoques distintos pero complementarios. El primero, desde perspectivas filosóficas en especial desde el análisis foucaultiano y con la inclusión de un estudio de campo etnográfico, explora el modo cómo las personas con este tipo de problemas fueron gobernadas, conducidas y percibidas por diferentes instancias e instituciones que tenían como objeto la discapacidad y sus protagonistas. El libro se cierra con el capítulo de Del Cura que reconstruye de forma pormenorizada y con un interesante análisis crítico, las políticas relativas a la discapacidad intelectual en las décadas de 1970 y 1980, con referencias a la situación anterior. En este tema fue muy reseñable la influencia de las recomendaciones de expertos de organizaciones sanitarias internacionales sobre las posibilidades que los nuevos conocimientos médicos ofrecían para su prevención y la necesidad del cuidado prenatal, perinatal y postnatal. Las campañas de sensibilización con abundante material y formatos – como cartelismo y uso de los medios de comunicación destinadas a difundir la nueva mirada sobre este tipo de discapacidades – y las normativas y organismos creados específicamente para abordar este tema solo pudieron implementarse y despegar en el entorno político de la transición democrática.
En suma, la monografía constituye una aportación de primer orden al estudio de las reformas sanitarias llevadas a cabo en la segunda mitad del siglo pasado. En primer lugar, por tratarse de una obra que recoge, en manos de un grupo de historiadores de reconocida valía, el resultado de un importante número de investigaciones y trabajos anteriores que permiten aproximarnos, de un modo original y riguroso, a un tema historiográficamente relevante al mostrar los factores que condicionaron estas actuaciones reformistas, alguna de las cuales no llegaron siquiera a cuajar de un modo significativo y cuyo modelo permite realizar análisis comparados posteriores con otros países estableciendo similitudes y diferencias y la importancia de los contextos. En segundo término, porque permite arrojar luz y orientar a los retos actuales de las políticas sanitarias lo que amplía el campo de interés de posibles lectores más allá del campo de la historia.
Referencias
MARTÍNEZ-PÉREZ José; PERDIGUERO-GIL, Enrique (Ed.). Genealogías de la reforma sanitaria en España. Madrid: Libros de La Catarata. 2020.
PERDIGUERO-GIL, Enrique (Ed.). Política, salud y enfermedad en España: entre el desarrollismo y la transición democrática. Elche: Editorial electrónica de la Universidad Miguel Hernández. Epub. Disponible en: <https://editorial.umh.es/2015/12/09/politica-salud-y-enfermedad-en-espana-entre-el-desarrollismo-y-la-transicion-democratica/> Acceso en: 10 mar. 2020. 2015.
» https://editorial.umh.es/2015/12/09/politica-salud-y-enfermedad-en-espana-entre-el-desarrollismo-y-la-transicion-democratica/>
PERDIGUERO-GIL, Enrique; COMELLES, Josep María. The defence of health: the debates on health reform in 1970s in Spain. Dynamis, v.39, n.1, p.45-72. 2019.
Resenhista
Rosa Ballester – Profesora emérita. Universidad Miguel Hernández. Elche – Alicante – España orcid.org/0000-0002-7870-4185 E-mail: Rosa.Ballester@umh.es
Referências desta Resenha
MARTÍNEZ-PÉREZ, José; PERDIGUERO-GIL, Enrique (Ed.). Genealogías de la reforma sanitaria en España. Madrid: Libros de La Catarata, 2020. Resenha de: BALLESTER, Rosa. Sobre reformas y políticas sanitarias en la España de los últimos años del franquismo y la transición democrática. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.4, out./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
NIETO OLARTE Mauricio (Aut), Una historia de la verdad en Occidente: ciência/arte/religión y política en la conformación de la cosmología moderna (T), Fondo de Cultura Económica (E), Universidad de los Andes (E), CUETO Marcos (Res), História Ciência Saúde – Manguinhos (HCS-M), História da Verdade, Europa-Séc. 15-18
Un destacado historiador de la ciencia es el autor de este libro, un colombiano quien previamente había producido valiosos análisis sobre las expediciones científicas y el naturalismo en España y América en las postrimerías del período colonial ( Nieto Olarte, 2006 , 2007 ). En este ambicioso trabajo analiza el desarrollo del conocimiento racional y la emergencia del eurocentrismo político, cultural y científico a partir del siglo XVIII. La mayoría de los 21 capítulos de este estudio se concentran en los saberes producidos en Europa durante la Edad Moderna (1492-1789). Es decir, se ocupan de temas como el Renacimiento italiano, la astronomía de Galileo, el empirismo de Francis Bacon y la física de Isaac Newton. Los capítulos iniciales se remontan a las discusiones filosóficas de Platón y Aristóteles sobre los límites y la esencia del conocimiento, así como a la noción de una única verdad del monoteísmo cristiano. En sus capítulos finales aborda la construcción del carácter enciclopédico de la obra de Alexander von Humboldt y hace un recuento del positivismo de Auguste Comte. Para encontrar una obra de envergadura parecida en América Latina es necesario remontarse a Aldo Mieli (1952) , el inmigrante italiano que publicó en varios volúmenes una historia de la ciencia europea en la Argentina de los años 1950. Luego de este esfuerzo, la mayoría de los historiadores latinoamericanos de la ciencia y de la medicina nos ocupamos de la recepción, la negociación y la participación de investigadores latinoamericanos en circuitos internacionales del conocimiento.
La diversidad temática y temporal de los asuntos tratados por Nieto Olarte no sacrifica la profundidad ni la coherencia de su análisis. Es un libro relevante por varias razones. En primer lugar, porque explora de una manera creativa y sugerente la estrecha relación de la construcción y difusión de la verdad científica con el arte, la filosofía, la religión, la política e inclusive la magia. Durante la mayor parte del pasado, no existieron barreras fijas o compartimientos estanco que separasen lo que hacían pintores, ingenieros, médicos y los cultores de lo que hemos venido a llamar conocimiento científico. Según Nieto Olarte, solamente a comienzos del siglo XIX se empiezan a construir fronteras entre las diferentes formas de saber y a establecer diferencias y jerarquías entre sus practicantes. Entonces, se glorificó y se proyectó, tanto hacia el pasado como hacia el futuro, el empirismo y el racionalismo. Al mismo tiempo se consolidó una narrativa tradicional de historia de la ciencia que asignaba a la Inglaterra del siglo XVII el origen casi exclusivo de la ciencia moderna.
Una segunda razón por la que este trabajo es pertinente es porque enfatiza los procesos más que los orígenes en la historia del conocimiento; procesos adonde las continuidades son más importantes que los cambios. Estas continuidades y procesos son generalmente incoherentes, contradictorios, heterodoxos y hasta disonantes. De esta manera, Nieto Olarte se une a la voz de otros historiadores que sostienen que el Renacimiento, como una categoría distintiva del pasado, es un mito y la Revolución Científica de Inglaterra del siglo XVII es un concepto que por lo menos debe ser pensado en una versión plural. Nieto Olarte también se suma a otros autores cuando subraya que el eurocentrismo es un concepto y una realidad atractiva y poderosa para quienes supuestamente serian víctimas del mismo porque es incluyente: es decir asimila, de una manera subordinada, a otras culturas fuera de Europa. De acuerdo con Nieto Olarte, casi todo el resto de culturas – agregaríamos que la mayoría de las sociedades latinoamericanas durante buena parte de su historia – aceptan y refuerzan el ideal al que deben aspirar minimizando los cuestionamientos a este modelo. En tercer lugar, este estudio es importante porque explica cómo las prácticas y las técnicas – como el astrolabio, la cartografía, el telescopio, los museos y la imprenta – moldearon el contenido del conocimiento.
Sin duda la atención del autor está alrededor de las diferentes formas de historia intelectual. Aunque hay oportunas referencias a la relación entre los grandes centros comerciales y el imperialismo europeo con la ciencia, este libro no es una historia social de la ciencia. Y no necesita serlo para ser una contribución notable. Una de sus cualidades es la clara explicación de la evolución de los argumentos de diferentes historiadores de la ciencia que en los últimos años han cuestionado la importancia de la Revolución Científica del siglo XVII como un momento fundacional realizado por una élite. Es también importante mencionar otro de los límites que Nieto Olarte reconoce y que es una paradoja en el resultado final del trabajo: no es un estudio de formas alternativas al saber del europeo occidental – a pesar de que existe un capítulo sobre el Islam y la ciencia en el Medio Oriente. Es decir, a pesar que el libro cuestiona la hegemonía europea en las narrativas tradicionales de historia de la ciencia acaba ocupándose principalmente de lo que pasó en el viejo continente. También el autor reconoce que está contando una historia plagada de hombres y en la que la contribución de las mujeres fue y es invisibilizada. Sin embargo, es necesario reconocer que pedir a un estudio que cubra todo no es solo injusto sino imposible.
En este valioso estudio, los historiadores de la ciencia y los lectores en general podrán reflexionar sobre la constante reproducción de la fragmentación del saber académico, lo cual limita el entendimiento de la relación entre la naturaleza y la sociedad y de la interacción entre todas las formas humanas de aprender, experimentar y conocer. Aquellos interesados en la historia de la salud tendrán especial interés en la sección sobre René Descartes y la diferenciación radical entre la mente y los mecanismos del cuerpo humano. La bibliografía final es un recuento actualizado de las investigaciones contemporáneas y clásicas que será valorada por otros historiadores. La inclusión de pequeños recuadros biográficos, diseños, reproducciones de pinturas, mapas y cronología hacen el texto accesible y susceptible de ser usado en cursos universitarios.
¿Podrá la lectura de este trabajo darle mayor densidad y horizonte teóricos a los historiadores y filósofos latinoamericanos que se ocupan de la ciencia y la evolución del conocimiento? Ojalá.
Referencias
MIELI, Aldo. Panorama general de historia de la ciencia: la época medieval, mundo islámico y occidente cristiano. Buenos Aires: Espasa-Calpe. 1952.
NIETO OLARTE, Mauricio. Una historia de la verdad en Occidente: ciencia, arte, religión y política en la conformación de la cosmología moderna. Bogotá: Fondo de Cultura Económica; Universidad de los Andes. 2019.
NIETO OLARTE, Mauricio. Orden natural y orden social: ciencia y política en el Semanario del Nuevo Reyno de Granda. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas. 2007.
NIETO OLARTE, Mauricio. Remedios para el imperio: historia natural y la apropiación del nuevo mundo. Bogotá: Universidad de los Andes. 2006.
Resenhista
Marcos Cueto – Pesquisador, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. orcid.org/0000-0002-9291-7232 E-mail: marcos.cueto@fiocruz.br
Referências desta Resenha
NIETO OLARTE, Mauricio. Una historia de la verdad en Occidente: ciencia, arte, religión y política en la conformación de la cosmología moderna. Bogotá: Fondo de Cultura Económica; Universidad de los Andes, 2019. Resenha de: CUETO, Marcos. Una historia del eurocentrismo científico. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.27, n.4, out./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]