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Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai | Francisco Doratioto

A 7 de dezembro de 1864, o diplomata Edward Thornton, representante britânico na Argentina e Paraguai, escreveu ao chanceler paraguaio José Berges uma carta que comprova o desinteresse da Grã-Bretanha na eclosão de uma guerra entre o Paraguai e seus vizinhos. No documento, Thornton afirma textualmente: “V.E. sabe que a Inglaterra também está em atritos com o Brasil, de modo que tanto por esse motivo, como pela falta de instruções de meu governo, não poderia fazer nada de oficial com seu governo; mas particularmente sim, se puder servir, no mínimo que seja, para contribuir para a reconciliação dos dois países, espero que V.E. não hesite em me utilizar”.

A disposição do representante britânico de colaborar para evitar o conflito entre Brasil e Paraguai é uma das muitas surpresas guardadas na obra do historiador Francisco Doratioto, que desfaz um dos maiores mitos a respeito da Guerra do Paraguai: o de uma guerra que teria sido provocada pelos interesses “imperialistas” britânicos. Construído inicialmente pelo revisionismo histórico paraguaio, a valorização da figura de Solano López chegou ao paroxismo no final dos anos 1960, quando intelectuais nacionalistas e de esquerda o elevaram à condição de líder antiimperialista. Uma geração inteira de brasileiros concluiu seus estudos secundários e mesmo de nível superior acreditando que o Paraguai alcançou um bom nível de desenvolvimento após a independência, possuía um projeto autônomo e equilibrado de crescimento e que foi destruído pela Tríplice Aliança, por representar uma ameaça aos interesses ingleses na região. A Grã-Bretanha teria se utilizado do Brasil, da Argentina e do Uruguai para pôr fim ao projeto paraguaio.

O livro mais marcante desse revisionismo, na interpretação do autor, foi a obra La Guerra del Paraguay: gran negocio!, publicado em 1968 pelo historiador argentino León Pomer. A simplificação dos argumentos dessa obra resultou no livro Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, do escritor Julio José Chiavennato. No Brasil, o texto de Chiavennato foi contemplado pelo mercado editorial com mais de 27 edições, o que contribuiu para a generalização de idéias equivocadas acerca do conflito.

Doratioto apresenta, com base em ampla pesquisa de fontes primárias e profundo conhecimento da literatura secundária, uma visão muito distinta. Ao mesmo tempo em que se afasta da historiografia mais tradicional – aquela que atribuía a causa da guerra às pretensões descomunais de um ditador megalômano – refuta a argumentação da historiografia dos anos 70 e 80. A historiografia tradicional e o revisionismo simplificaram as causas e o desenrolar da Guerra do Paraguai, ao “ignorar documentos e anestesiar o senso crítico”. “Ambos substituíram a metodologia do trabalho histórico pelo emocionalismo fácil e pela denúncia indignada”, afirma o autor.

Na “nova história”, o Paraguai, após a independência, não se diferenciou substancialmente do padrão apresentado pelos demais países latino-americanos. Foi governado inicialmente por José Gaspar Rodríguez de Francia – o “Ditador Perpétuo” – que promoveu o isolamento do país, o fortalecimento do Estado e manteve uma estrutura produtiva baseada na produção de erva-mate, tabaco e madeira. As famosas Estancias de la Patria, anteriormente tomadas como exemplo de equilíbrio social utilizaram não só o trabalho de camponeses, mas também de escravos de origem africana e de prisioneiros, conforme o estudo de Josefina Plá, Hermano negro: la esclavitud en el Paraguay. Nada, no Paraguai de Rodríguez de Francia, permitiria falar em “igualdade social” ou em “projeto autônomo de desenvolvimento”.

Na década de 1840, o país procurava obter o reconhecimento de sua independência e ampliar o contato com o exterior, para modernizar sua economia. A nova orientação, que ganhou força no governo de Carlos Antonio López e, principalmente, de Solano López, era uma tentativa de o Paraguai se inserir no mercado mundial. Com Carlos López, o Estado paraguaio implementou uma estratégia de “crescimento para fora”, possibilitado pela exportação de produtos primários. Sua rápida modernização, basicamente militar, deu-se sem o concurso de capitais estrangeiros, pois a tecnologia importada era paga à vista. Em 1854, Francisco Solano López foi enviado à Europa para comprar armamentos e estabelecer vínculos comerciais. Um acordo com a empresa Blyth & Co permitiu ao Paraguai a compra de armamento e o treinamento de jovens soldados. Daí o fato de Doratioto considerar um outro mito do revisionismo histórico a idéia de uma industrialização a partir “de dentro”, que teria se tornado uma ameaça aos interesses ingleses.

Dessa forma, as causas da Guerra do Paraguai devem ser buscadas na política regional. A guerra foi um desdobramento previsível de uma política exterior “agressiva”, que aproximou o Paraguai do Partido Blanco uruguaio, em detrimento dos interesses do Brasil e da Argentina. Fatores políticos internos desses dois países – a ascensão de um gabinete liberal no Brasil e a vitória de Mitre sobre Urquiza – favoreceram a aproximação, inusitada para a época, entre Brasil e Argentina. Não se trata de negar a influência exercida e os benefícios obtidos pela Grã-Bretanha durante o conflito, mas de retirar dos fatores do conflito “os interesses imperialistas ingleses”.

Doratioto não se limitou a rever toda a historiografia da guerra à luz das fontes documentais, elaborou uma ampla análise da política internacional da bacia do Prata, fazendo uso de conhecimentos multidisciplinares e abordando aspectos tão variados como os interesses econômicos nacionais, os conflitos de natureza “geopolítica” e a personalidade dos dirigentes envolvidos no conflito. Chega a revelar, em relação à insistência de D. Pedro I em prosseguir com o conflito até a morte de Solano López, que a familiaridade com a personalidade do ditador paraguaio, advinda do estudo das fontes primárias, permite reconhecer uma certa lógica na atitude do Imperador.

A profundidade da análise e o uso intenso de fontes primárias, ao contrário do que poderia parecer em um primeiro momento, não torna a leitura demorada ou cansativa. Ao contrário, Doratioto conseguiu um raro equilíbrio entre a narrativa e a interpretação. O relato sobre a guerra é enriquecido com referências aos costumes de época, à opinião pública, à produção intelectual ou mesmo à bravura dos soldados. Não faltam comentários sobre estratégia militar, armamentos ou mesmo sobre as “charges” dos jornais paraguaios e brasileiros, que já desenvolviam uma guerra de informações.

Enfim, Maldita Guerra nasce como um clássico, uma referência obrigatória para os estudos da história e das relações internacionais latino-americanas do século XIX. O conflito, que resultou na morte de cerca de 50 mil brasileiros, 18 mil argentinos e mais de 28 mil paraguaios recebeu um estudo à altura de seu significado.


Resenhista

Carlos Eduardo Vidigal


Referências desta Resenha

DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: VIDIGAL, Carlos Eduardo. Revista Brasileira de Política Internacional, v.45, n.1, 2002. Acessar publicação original [DR]

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