Desde o século XVI várias doenças como a malária, a varíola, o sarampo, a ancilostomíase, a disenteria e a febre amarela acometiam grande parte da população livre e escrava no Brasil. Gilberto Freyre lembra-nos de que essas doenças atingiam tanto as ‘casas-grandes’ como as ‘senzalas’.1 No final do século XIX e início do XX, já sob a República, o quadro de insuficiência na saúde pública não havia se alterado, continuavam graves as condições de saúde, diante da ameaça de antigas e novas epidemias. A expedição científica de Carlos Chagas pela Amazônia, realizada entre outubro de 1912 e março de 1913, teve o efeito de colocar o higienista em contato direto com a miséria e as críticas condições de saúde dos seringueiros. No entanto, transcorridos mais de oitenta anos da “pregação salvadora” de higienistas como Carlos Chagas, as condições de saúde da população continuam a desafiar os poderes públicos, atingindo as camadas mais pobres da sociedade brasileira.2
A malária é o caso mais significativo. Na região amazônica, há vastas áreas endêmicas da doença. As populações ribeirinhas são as que mais sofrem sua ação devastadora. A malária voltou a fazer parte das estatísticas do Ministério da Saúde, em vista do seu recrudescimento nessas áreas, durante a década de 1980. Os programas de saúde criados para atender às demandas sanitárias da população não se traduziram em assistência médica de qualidade capazes de melhorar o quadro epidemiológico.
O aumento da incidência da malária, neste período, foi uma das motivações de Rita Barradas Barata, ao desenvolver um estudo sobre o problema. Em Malária e seu controle, a autora recupera a trajetória histórica da doença, as políticas públicas e a formação das práticas sanitárias no estado de São Paulo, no período entre 1930 e 1990. A escolha do caso paulista baseou-se, entre outros pontos, no fato de que as questões suscitadas ou, no dizer da autora, as “verdades estabelecidas” – dificuldades financeiras, técnicas, operacionais e políticas –, para explicar a fragilidade das campanhas de combate à malária em outros estados brasileiros não pareciam válidas para São Paulo.
O trabalho de Rita Barata é significativo na medida em que traz à tona um problema que ainda hoje desafia a saúde pública: o aumento do número de casos de malária. As fontes que utiliza em seu estudo indicam, entre outros problemas, a fragilidade das ações de controle que visam à prevenção da doença. A lamentar, no entanto, um aspecto que de modo algum compromete o conjunto da obra, mas nos dá a sensação de um quadro explicativo até certo ponto simplificador para analisar o desenvolvimento das políticas sanitárias em São Paulo. Do ponto de vista do processo da reforma sanitária, a análise apresentada tende a um certo economicismo. Nesse processo, destaca-se o papel dinâmico do capitalismo, mas as tradições médicas, a montagem dos serviços de saúde, já na Primeira República, pelo Serviço Sanitário paulista e pela Fundação Rockefeller e movimentos reformistas importantes, tais como a Liga Pró-Saneamento, organizada por sanitaristas e intelectuais como Monteiro Lobato – fatores que deveriam justamente revelar aquele elemento dinâmico – não recebem tratamento adequado.
O objetivo principal da análise é mostrar de que forma a malária chega a constituir uma “necessidade socialmente percebida”, no sentido de demandar práticas institucionais de prevenção e controle da doença, e em que medida o conhecimento epidemiológico ajudou na elaboração dessas práticas. A autora sugere a construção de três modelos teóricos de intervenção que, articulados às necessidades sociais de saúde, à produção de conhecimento científico e às práticas de intervenção e controle, dariam conta da compreensão desse fenômeno. Esses modelos corresponderiam a diferentes momentos históricos: o ecológico-ambientalista, característico da fase entre 1930 e 1950; o técnico-campanhista, entre 1950 e 1970; e o modelo focal-preventista, que abrange o período entre 1970 e 1990.
Vejamos como a autora constrói seu primeiro modelo. No modelo ecológico-ambientalista (1930-50), as questões ambientais dominam as formulações teóricas. Segundo a autora, a necessidade de saúde e a montagem de uma estrutura sanitária estão diretamente vinculadas ao processo de ocupação do território paulista em virtude das condições sociais e econômicas verificadas em determinadas áreas de São Paulo. Nesse sentido, a maior ou menor freqüência de casos de malária remete às “condições de existência” de cada região. Nas áreas onde o movimento migratório é menor e o crescimento urbano-industrial é forte, a reprodução da doença é baixa. Mesmo assim, observa-se a presença de uma estrutura sanitária dinâmica. “Os serviços são em geral instalados nas áreas onde os interesses econômicos mais consolidados determinam a definição de prioridades” (p. 28). A malária era vista como um obstáculo ao desenvolvimento econômico, em especial ao crescimento industrial. Sua ocorrência significava redução da capacidade de trabalho e, conseqüentemente, da produtividade: “A necessidade de saúde traduzida no problema-malária coloca-se como um entrave ao processo de valorização e será nesta dimensão, ligada à limitação da capacidade produtiva, que ela se constituirá em motivação para a ação de órgãos e instituições sociais” (p. 25).
Do modo como a autora apresenta a discussão, o modelo não parece ser ecológico, mas lembra, antes, um modelo ‘funcional’, em que as condições de existência parecem determinar, como em uma relação orgânica, a distribuição das doenças e as políticas sanitárias. Essa relação é até certo ponto previsível para uma explicação econômica, pouco sensível a forças e movimentos de natureza política e à própria atuação das tradições médicas e sanitárias da região. Talvez aqui coubesse melhor a conhecida interpretação de William McNeill, em Plagues and peoples, para quem a geografia econômica (isto é, a zona geográfica de uma sociedade e seus estágios de desenvolvimento) afeta o perfil das doenças e seu controle.
No segundo momento, marcado pelo modelo técnico-campanhista, as estratégias de ação assumidas pelo estado são as campanhas de erradicação e prevenção da malária. Esta fase é marcada, segundo a autora, por forte movimento de urbanização, em virtude do desenvolvimento industrial verificado em São Paulo. As campanhas de combate à doença tornam-se mais dinâmicas e o cuidado com a prevenção é o ponto central das atividades. A atuação do Serviço de Profilaxia da Malária, somada à diminuição do número de trabalhadores rurais e à alteração nas relações de produção, são fatores que contribuem para a redução da incidência da malária. Mas, segundo Rita Barata, a diminuição dos casos de malária em São Paulo não modifica a quadro regional de distribuição da doença, “que continua a refletir as características próprias do desenvolvimento sócio-econômico, em cada região” (p. 56). Um ponto interessante, nesta parte do trabalho, é a discussão das controvérsias entre as teorias de erradicação da malária propostas por Fred Soper, favorável à eliminação do vetor, e por Paul Russel, para o qual a erradicação da doença seria o único meio de se evitar a transmissão.3 Ainda neste capítulo, a autora descreve, de maneira minuciosa, as fases do programa de erradicação da malária em São Paulo. A fase preparatória requer, a priori, o conhecimento geográfico para definição das área endêmicas. Na fase de ataque, prevalece o trabalho de borrifação com DDT. Na de consolidação, verifica-se o aumento das atividades epidemiológicas e um maior controle dos focos residuais; e, por fim, na fase de manutenção, o objetivo é a prevenção.
Finalmente, o terceiro período analisado caracteriza-se pelo modelo focal-preventista. Nesta fase, a transmissão da malária em vários municípios de São Paulo foi praticamente interrompida em virtude do decréscimo acentuado da população rural e do impacto provocado pelas campanhas de erradicação da fase anterior. Segundo a autora, as condições para a ocorrência da malária em São Paulo são outras. A doença deixa de constituir um problema e passa a ser vista como um risco, “é o risco da doença, mais do que sua efetiva presença, que constitui a necessidade socialmente posta” (p. 89). O aumento da incidência em outros estados brasileiros, em especial na Amazônia, representa uma ameaça à bem-sucedida campanha sanitária paulista, na medida em que os trabalhadores migrantes atuam como “focos ativos” de transmissão da malária. A vigilância epidemiológica, ou seja, o controle sobre o surgimento de novos focos de malária, passa a ser a preocupação central dos serviços sanitários estaduais. Ainda nesta parte do trabalho, Rita Barata mostra como a teoria focal-preventista ganha força. O recrudescimento da malária, em várias partes do mundo, requer alternativas e estratégias novas para conter o seu avanço. A produção da doença passa a ser tratada como “problema focal”, o que significa, segundo a autora, “abandonar a abstração construída no plano coletivo para a erradicação e buscar abstrações menos generalizadas e mais circunstanciais” (p. 97). A teoria focal leva em consideração as várias manifestações da doença e admite a existência de contextos epidemiológicos distintos. Para finalizar sua análise, faz uma comparação entre a situação sanitária paulista e a verificada nos países desenvolvidos. Nesses, lembra ela, raramente ocorre a reinfestação da doença em áreas onde a transmissão foi interrompida. Este fator é o resultado do desenvolvimento econômico. Nas suas palavras, “a experiência parece indicar que, uma vez obtida a interrupção da transmissão, naquelas áreas em que o desenvolvimento sócio-econômico é suficiente para manter os avanços alcançados, dificilmente a endemia se restabelece” (p. 111). Onde estaria o problema então? Na superação do campanhismo ou na superação do subdesenvolvimento?
Notas
1 Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala (Rio de Janeiro, José Olympio, 1946, p. 150).
2 Revisitando a Amazônia de Carlos Chagas: expedição aos rios Negro e Branco refaz percurso de Carlos Chagas em 1913 (introdução histórica Eduardo Vilela Thielen; crônica da viagem Alexandre Medeiros. Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 1996).
3 Soper foi membro da International Health Division da Fundação Rockefeller e representante do Serviço de Febre Amarela na América do Sul. Paul Russel, malariólogo, foi autor de textos importantes sobre malariologia nas décadas de 1940 e 1950. Infelizmente, o texto não traz referências detalhadas sobre os autores.
Resenhista
Lina Rodrigues de Faria – Historiadora, mestre em saúde coletiva, pesquisadora visitante do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz. E-mail lina@compuland.com.br
Referências desta Resenha
BARATA, Rita Barradas. Malária e seu controle. São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: FARIA, Lina Rodrigues de. Malária em dois tempos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.1, mar./jun. 2000. Acessar publicação original [DR]
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