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Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil | Ricardo Soares Oliveira

Magnifica e Miserável: Angola desde a guerra civil é um livro de autoria do investigador português Ricardo Soares de Oliveira, publicado originalmente em língua inglesa (Magnificent and Beggar Land: Angola since the civil war) e seis meses mais tarde dado à estampa pela editora portuguesa Tinta-da-China. A publicação desse livro provocou em certo entusiasmo incontido em alguns meios jornalísticos e acadêmicos em Portugal e o Reino Unido, que se manifestaram nos comentários qualificativos sobre o autor e a obra constantes na contracapa da versão inglesa, assim como da versão portuguesa tais como: “lúcido, brilhante” e “fascinante, provocativo”, por um lado, “profundo conhecedor da política do petróleo em Angola” e “melhor estudo sobre Angola em inglês”, por outro. Salvo engano, o livro mereceu algumas de resenhas críticas à versão inglesa1 que ampliam e levantaram a discussão sem que a mesma fosse sentida no meio acadêmico angolano e de língua portuguesa.

Magnífica e Miserável apresenta-nos uma capa que ilustra o pôr do sol da costa de Luanda e os escombros do mausoléu, obra quase abandonada, infraestrutura imponente à soviética onde repousa os restos mortais do primeiro presidente de Angola independente, António Agostinho Neto. Esta ilustração sinaliza o que entendemos ser o início da representação caricatural, – da magnificência – que se pode encontrar reforçada no texto.

O livro está formalmente estruturado em cinco capítulos, e retrata, em chave de leitura alargada, o percurso sociopolítico e econômico, a consolidação do poder em Angola nos últimos anos do pós-guerra de José Eduardo dos Santos como o grande condutor das transformações que ocorreram neste país ao sul do continente africano.

O argumento central de Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil é o de que à época de Agostinho Neto e aquando da sucessão deste por José Eduardo dos Santos ao mesmo tempo que decorria a guerra civil avassaladora, Angola constituiu-se como uma espécie de Estado paralelo com uma administração político-formal centrada na Presidência da República e essa estrutura paralela representada pela petrolífera estatal Sonangol, que mantinha relação intrincada com o capital internacional através da venda do petróleo às multinacionais que operavam no território nacional, que impulsionou o surgimento de um pequeno grupo de pessoas no interior do partido MPLA, configurando, assim, a “Oligarquia capitalista angolana”.

Partindo do título Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil em certo sentido pode-se visualizar uma caricatura de Angola, na medida em que o livro se expõe a um dualismo analítico que caracteriza as relações tecidas pelo poder económico de uns e as condições paupérrimas de outros, suponho. Neste particular, por um lado, resta muito pouco espaço para uma análise pujante sobre os segmentos sociais intermédios, há um vazio no que a este aspeto diz respeito. Pelo dualismo atraente, por outro lado, Magnífica e Miserável aborda as teias econômicas do poder político angolano, não escapando a tentação de fazer “história por analogia”2 na aceção de Mamdani (1996) ao comparar o “sistema paralelo”, que se entende como tendo a Sonangol, petrolífera estatal com o Estado colonial português que tinha, como sua pedra de toque, a assombrosa e ostensiva empresa de extração, produção e comercialização de diamantes na região das Lundas, a Diamang, um concessionário da primeira metade do século XX repartido entre o capital português, norte-americano e belga.

Magnífica e Miserável apresenta, por sua vez, algumas notas de natureza conceitual e metodológica que despertaram a nossa leitura por considerarmos que constrangem análise. No início do livro, a primeira nota, o autor faz uma manifestação de boa intenção segundo a qual o livro não se trata de uma “história de Angola” e termina precisamente construindo uma descrição histórica exaustiva com avanços e recuos sobre o poder político angolano e as suas relações internas e externas. A segunda nota é ausência de um enquadramento teórico da obra a partir do qual se pode melhor compreender o seu encaminhamento analítico. A terceira nota diz respeito ao seu corpus empírico. Ainda sobre a mesma nota, fica-se com a impressão que havia imensa informação que não é tratada. Colocando de outro modo, há uma manta do não dito que encobre a discussão ao longo do livro. Tal impressão fica reforçada, no entanto, quando a dado passo da leitura parece que os informantes vão sussurrando pequenos segredos de estado nos ouvidos do autor.

Ricardo Soares de Oliveira constrói por isso um quadro esquemático e ambivalente dos seus informantes, na medida em que uns poucos e publicamente conhecidos têm os sobrenomes revelados e aparecem como autoridades conhecedoras da realidade social angolana, enquanto outros tantos, ou seja, a maioria, permanece no anonimato, não se compreendendo se se trata de uma opção ou mera omissão. Como ilustração do que referimos acima e nos próprios termos do autor eis alguns desses anônimos: “um quadro superior de uma grande companhia europeia a operar em Angola” (p. 65); “Um elemento próximo do regime” (p. 110); “um banqueiro angolano”(p.196); “ um alto quadro do MPLA” (p.206); “Como referiu um acadêmico”(p.208); “ Um alto funcionário da TAAG” (p.209); “outro empresário”(p.210);“Um angolano ilustre”(p.211); “Um consultor estrangeiro referiu” (p. 213), “Comentou um experiente empresário português com múltiplas parceiras com figuras mais ilustres de Luanda”(p.211); “conforme reiteraram os indivíduos entrevistados”(p.214); “ segundo um político aposentado” (p.216); “ referiu um diplomata estrangeiro”(p.217); “ Afirmou um empresário angolano” (p.220) e “ como afirmou um jornalista angolano”(p.226); “Um antigo ministro”(p.305) ou ainda um exemplo de perfil de informante muito mais ambíguo: “um autodenominado membro crítico do MPLA” (p.223) e “alguns observadores angolanos…” (p.231); “sustentam alguns”(p.305).

Chega-se a um ponto da leitura de Magnífica e Miserável em que o enredo muito se aproxima de “Crônica de um mujimbo” 3 do escritor Manuel Rui, em que o não-dito é uma alegoria estruturante.

A quarta nota digna de realce é a de que o qualificativo “Miserável” que dá corpo à caricatura maniqueísta se encontra gritantemente ausente. A miséria ou o seu correlato “miserável” não aparece tratada no livro e em nenhum momento o autor o apresenta nem sequer explica como esse adjetivo se articula com a magnificência de Angola. O leitor atento constata que no livro não há referência à situação concreta de miséria. Tal nota leva-nos a supor que o autor de Magnífica e Miserável dá como facto adquirido a miséria que circunda Angola ao retratá-la sem sentir qualquer necessidade de a explicar.

A quinta nota mais conceitual de Magnífica e Miserável é o tratamento inconsequente de dois conceitos que aparecem de modo algo circunstancial e problemático. Ricardo Soares de Oliveira, suponho, não manifesta qualquer necessidade de fundamentar, à luz da teoria, quer o conceito de “acumulação primitiva de capitais”, quer mais notório, o conceito de “classe média”.

No capítulo IV que tomou o subtítulo de “O capitalismo oligarca à maneira de Angola” Soares de Oliveira discorre de maneira esquemática sobre a forma como aquilo que designa por “elite angolana política, empresarial, militar e dos órgãos de segurança presidencial” foi se apropriando dos recursos disponíveis durante o período de guerra e, depois disso, o enriquecimento ilimitado que se verificou à custa do Estado ou das suas posições de destaque. Constata-se que a explicação sobre o processo de acumulação à custa do Estado e não da exploração de mão-de-obra barata está esvaziada de discussão teórica.

A forma que o livro descreve como sendo constitutiva do “capitalismo angolano” está muito longe de tipificar a “acumulação primitiva de capitais”, ainda que se incluam aí as ramificações que a classe dominante angolana mantém em alguns mercados mundiais de circulação do grande capital. A analogia que se estabelece com a Rússia pós-reforma revela-se disfuncional em termos comparativos, na medida em que a explicação sobre o processo de acumulação em Angola está ausente e não teve em conta as idiossincrasias de cada caso independentemente da proximidade entre o poder político russo e angolano ao longo do tempo. É que nem sequer se consegue visualizar evidências de uma tentativa de teorização consequente com base nos dados empíricos. Uma clara contradição evidente é que o designado “capitalismo angolano” colide com a imagem de como este grupo é encarado pela generalidade das pessoas: “a maioria dos que estão no poder são vistos como ladrões, no sentido literal do termo, tendo construído as suas fortunas com base na drenagem dos rendimentos do petróleo ou do aproveitamento de cargos públicos para fins privados” (p. 223).

Contrariamente a Ricardo Soares de Oliveira, entendemos que “a classe dominante angolana não depende totalmente das suas atividades empresariais, sendo estas precedidas e mantidas pela utilização das instituições do Estado quer para facilitar ou sonegar, quer para persuadir, coagir ou impor, quer ainda para fazerem integralmente a vez do privado. Em outras palavras, o seu lugar de origem e reprodução social é o Estado – que, em termos clássicos, não é o lócus da burguesia. E se é também e sobretudo a ideologia e a política (a existência de uma consciência para si e de um projeto de poder ou de nação) o que define o estatuto das classes sociais, e não apenas a propriedade ou a posição que os agentes ocupam no contexto das relações de produção material da vida, pode afirmar-se que a classe dominante angolana se reconhece na consciência do Estado como “Coisa sua”, algo como um patrimônio genético (em termos edipianos, o passado colonial seria um “pai-morto”, mas vivo na consciência de culpa), sem o qual a sua existência se revelaria pura e simplesmente nua”4 .

Ora, perante tal contrariedade, como falar em “capitalismo angolano” sem explicar as caraterísticas que lhe são constitutivas? Quais são as evidências da singularidade dessa forma de acumulação indissociável do Estado? Há muito mais interpelações que poderiam ser levantadas. Concentraremos, contudo, a nossa atenção nos aspetos enunciados.

À semelhança do que ocorreu com o economista norte-americano Tony Hodges, no seu livro com o título grandiloquente Angola: do afro-estalinismo ao capitalismo selvagem5, onde não se encontra qualquer discussão teórico-conceitual consequente, Soares de Oliveira, ao que tudo indica, sucumbe ao mesmo esquema, ficando-se pela boa intenção nominal.

No que se refere ao conceito de “classe média”, sem nenhum esforço de explicação sobre as caraterísticas e composição desse segmento social, Ricardo Soares de Oliveira segue apontando-lhe um caráter meramente econômico para justificar essa formação social.

No capítulo II “O Espetáculo da Reconstrução”, Ricardo Soares de Oliveira, no mínimo, confunde “burguesia nacional” constante no discurso político oficial com “classe média”, argumentando que esta é “composta por cerca de meio milhão de angolanos para uma população total estimada em vinte milhões de habitantes onde se incluem funcionários públicos, elementos do aparelho de segurança e habitantes instruídos das cidades”(p.128). A noção que nos apresenta é, no linear, precária, pois não está fundamentada no texto. Para Soares de Oliveira, a dita “classe média angolana” é perdulária, ostensiva e almeja ou, pelo menos, manifesta a mesma voragem predatória que a “elite oligarca capitalista”.

No fundo, o autor sucumbe a uma avaliação ética e normativa da dita “classe média” sem lhe explicar com detalhes a composição, magnitude e a identidade classista ou, ainda, os laços que estabelece entre si. Onde Ricardo Soares de Oliveira visualiza ostentação celebrativa e vulgaridade, nós vislumbramos que os ritos com relevância social como “casamentos, batizados, aniversários e funerais” são mais do que marcadores do lugar social em que estes indivíduos estão inseridos e configuram, efetivamente, formas de reprodução social desse lugar, posição social, os laços que são tecidos entre as famílias que se estendem para os negócios e alargamento do grupo. Faltou ao autor de Magnífica e Miserável uma outra lupa e imaginação social para visualizar as interações socioculturais que são elas também definidoras de condutas sociais de grupos e indivíduos. Os funerais e casamentos, assim como batizados são meios a partir dos quais os angolanos asseguram lugares de pertencimento, de interação e de consolidação das relações sociais tecidas no cotidiano. Soa algo forcado e redutor ver nessas manifestações formas regressivas de ostentação de riqueza para caracterizar uma suposta “classe média”.

Onde Ricardo Soares de Oliveira visualiza uma atitude de rebaixamento da “classe média” contra a “classe baixa” sem explicar qual é a magnitude e composição social, nós vimos imbricamento, relações que se misturam no cotidiano, grupos que vivem os mesmos condicionalismos sociais independentemente do lugar ou da posição social que ocupam, que não significa dizer que não existam contradições, neste universo, marcadores de distinção e diferenciação social acentuadas em Angola, as cidades de Luanda, Benguela e Lubango são disso casos visíveis a olho nu. Em suma, a estrutura social e produtiva angolana vista com olhos de ver não confere plausibilidade a Ricardo Soares de Oliveira no que se refere à dita “classe média”. O recenseamento geral da população realizado em 2015 confirma esta alusão e reforça a ideia de que o surgimento de uma “classe média” angolana está longe de acontecer, ao menos que se altere profundamente e em muito pouco tempo a sua estrutura produtiva, que é maioritariamente camponesas de subsistência e produtora de bens e serviços ao nível de cinco cidades, três das quais referidas mais acima.

Mais do que explicar a complexa teia de relações sociais tecidas entre segmentos sociais angolanos variáveis e heterogêneos, e sem desmerecer o esforço investigativo do seu autor, Magnífica e Miserável arrisca-se a ser um livro mistificador, porque se inscreve numa epopeia sobre os de cima, sobre os poderosos, os que têm opinião relevante e fundamentada. É um retrato da consolidação da economia política do poder no período imediatamente a seguir ao fim da guerra civil, a conversão do capital político em econômico, o processo de enriquecimento centrado na figura paternal e omnipresente de José Eduardo dos Santos e toda uma sorte de cortesões seus colaboradores diretos e indiretos: altos funcionários do aparelho do Estado e uma franja do “lúmpen-empresariado nacional” ancorados no seio do partido MPLA cujos perfis são hipervalorizados pelo autor.

Apesar do que ficou acima exposto, Magnífica e Miserável tem o mérito de ter sistematizado um vasto leque de informações dispersas sobre Angola do pós-guerra procurando dá-lhe sentido.

Notas

1 Destacamos um primeiro conjunto de resenhas coordenado por Didier Peclard (em Politique Africaine, vol. 3, nº 139, 2015); Alex J. Marino (em International Social Science Review, vol. 91, n. 2, 2015); Jon Schubert (em African Spectrum, vol.50, n´.3, 2015); Sylvia Croese (em South Africa Journal of International Affairs, 2016); Cristina U. Rodrigues (em Journal of Southern African Studies, vol. 43, 2017); Justin Pearce (em The Journal of International African Institute, vol. 87, n.1, 2017) e.

2 MAMDANI, Mahmood. Citizen and subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: University Press, 1996, pp.9-11.

3 RUI, Manuel. Crónica de um mujimbo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1989.

4 SILVA, Osvaldo. “A guerra de posições de Jlo”. Texto apresentado na mesa-redonda do Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola, 2018.

5 HODGES, Tony. Angola – Do afro-estalinismo ao capitalismo selvagem. Lisboa: Principia, 2001.

Referência

HODGES, Tony. Angola – Do afro-estalinismo ao capitalismo selvagem. Lisboa: Principia, 2001.

MAMDANI, Mahmood. Citizen and subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: University Press, 1996.

RUI, Manuel. Crónica de um mujimbo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1989.

SILVA, Osvaldo. “A guerra de posições de Jlo”. Texto apresentado na mesa-redonda do Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola, 2018.


Resenhista

Gilson Lázaro – Doutorado pelo Instituto de Lisboa – ISCTE.


Referências desta Resenha

OLIVEIRA, Ricardo Soares. Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil. Lisboa: Tinta-da-China, 2015. Resenha de: LÁZARO, Gilson. Crônica de uma economia política do poder em Angola do pós-guerra? AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.02, n.02, p. 133 – 137, abr. 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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