Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit | Katharina Stegbauer

Angela Kaiser, Daniela Rutica e Katharina Stegbauer |  Foto: fhm

Contextualização

A obra aqui analisada foi composta, originalmente, como uma tese doutoral na Fakultät für Geschichte, Kunst und Orientwissenschaften – Universität Leipzig. Após a publicação da tese, em 2010, o texto passou por incontáveis revisões bibliográficas e atualizações conceituais até a publicação do livro em seu formato final. Uma vez procedida a atualização da obra, ela veio inaugurar uma nova série acadêmica: “Ägyptologische Studien Leipzig”, que se dedica à publicação de estudos monográficos sob as regras do regime “Open Access”, via Propylaeum-ebooks1.

Graças à sua estruturação acadêmica original, a obra fornece ao leitor uma importante contextualização temática e conceitual sob a forma de um estado da arte sintetizando um século de desenvolvimento dos debates sobre a magia egípcia. Desse modo, a autora apresenta uma discussão historiográfica sobre como a antropologia cultural exerceu e exerce influência sobre o debate egiptológico.

O título da obra, em tradução livre, informa: Magia como arma contra serpentes na Idade do Bronze egípcia. Logo, a cronologia abordada abrange o Reino Médio e o Reino Novo, cobrindo a história da civilização egípcia, desde o final do terceiro até o final do segundo milênios a.C.

O ponto de partida da autora é a análise dos encantamentos contra serpentes e a sua peçonha. Embora a língua egípcia possua uma rica variedade de sinônimos para designar o “mago”, o termo normalmente empregado para definir a força sobrenatural que manifesta e/ou instrumentaliza as virtudes criativas divinas é “heka”. Dito isto, a obra estabelece a análise de um corpus temático de textos epigráficos e papirológicos sobre os feitiços/encantamentos-heka.

Um corpus textual é entendido como a codificação de padrões propostos por uma tradição cultural (PARKINSON, 1996, p. 298). Um corpus de encantamentos-heka revelou-se surpreendentemente heterogêneo e abrangente. Com base nessa análise de fontes a obra debruça-se sobre a sua questão central: “Por que a cultura egípcia desenvolveu práticas e textos mágicos?”.

Geralmente, os egiptólogos alternam-se entre duas linhas de reflexão para a abordagem do pensamento mágico egípcio. Pode-se buscar uma proposta a partir da teoria ritual (TAMBIAH, 19902002) e daí analisar-se o fenômeno segundo a noção do “poder das palavras” na mentalidade egípcia. Uma alternativa a essa abordagem é lidar com o caráter performático das palavras, onde um ritual mágico promoveria certa influência positiva através de algo similar ao “efeito placebo” (WESTENDORF, 1999).

Todavia, ao se estabelecer que os heka são, essencialmente, uma forma de comunicação, a obra propõe uma abordagem inovadora, baseada na análise das dramatis personae envolvidas no processo de realização de um encantamento. Assim, constrói-se uma correspondência segundo o modelo “falante” e “ouvinte” (MEGGLE, 2010), caracterizada pelas ações e relações entre três agentes: “Aktant” – ou seja, aquele que evoca o poder mágico; “Adressant” – ou seja, a potência espiritual evocada pelo encantamento, e que também é o “ouvinte” da relação falante-ouvinte; e o “Patient” – ou seja, o “objeto” a que se refere o discurso do encantamento, referindo-se ao motivo/propósito da evocação.

A argumentação da obra foi estruturada a partir de capítulos independentes, isto é, recortes temáticos que possuem as suas próprias conclusões. São, ao todo, sete secções, subdivididas em tópicos auxiliares. Os três primeiros capítulos são bastante concei­tuais. O primeiro apresenta um estado da arte sobre o estudo do pensamento mágico pela antropologia e o seu impacto na egiptologia desde o início do século XX. O segundo capítulo aborda aspectos da intertextualidade dos encantamentos, propondo também uma análise ontológica dos textos mágicos. O terceiro capítulo ocupa-se inteiramente das funções da historíola egípcia, ou seja, todo um contexto legitimador de origem mitológica e as suas respectivas referências, subentendidas nas entrelinhas de um dado encantamento (FRANKFURTER, 1995).

O quarto capítulo estuda a percepção da serpente no cotidiano egípcio, de modo a elencar as suas características positivas e negativas. Busca-se com isso reconhecer um embasamento social e cultural a ser refletido na “construção” das tipologias existentes no discurso simbólico dos encantamentos. O quinto capítulo complementa o anterior e debate o simbolismo da peçonha da serpente na sociedade egípcia. Há aqui uma analogia interessante entre os sintomas do envenenamento pela picada de uma serpente e a ação de um encantamento (STEGBAUER, 2019, p. 136).

O sexto capítulo apresenta o corpus e descreve o catálogo das 52 fontes trabalhadas. Do Reino Médio, são 27 encantamentos provenientes do Texto dos Sarcófagos e de papiros diversos. Segue-se a eles uma lista com outros 25 encantamentos provenientes de fontes epigráficas e papirológicas do Reino Novo. O último capítulo é um apêndice, contendo tabelas e listas de referências para a identificação apropriada das fontes primárias traduzidas e analisadas. Essa parte é concluída por uma bibliografia das obras citadas e consultadas.

Impacto historiográfico

A egiptologia, enquanto disciplina consolidada entre os séculos XIX e XX na Europa moderna, industrializada e cristã, herdou a visão de mundo particular do seu meio. A separação entre magia (irracional) e ciência (racional) ocorrida na Europa entre os séculos XVII e XVIII foi determinante para o modelo tradicional de abordagem do pensamento mágico pelos acadêmicos. A premissa cultural eurocêntrica estabelecera que “magia” descreve algo falso (segundo o discurso cristão) ou um universo de possibilidades fantasiosas (segundo todo um folclore e uma literatura ficcional).

Ao longo do século XX a egiptologia limitou-se a abordar o pensamento mágico egípcio de modo superficial e etnocêntrico. Os paradigmas tradicionais defendiam a magia como uma prática “infantil” que visava encorajar ou amedrontar as massas (BUDGE, 19001901GARDINER, 1915). Essas abordagens tentavam reproduzir anacronicamente a separação entre magia e uma racionalidade tipicamente europeia no modelo civilizacional egípcio.

Contudo, no antigo Egito não se questionava a legitimidade da magia, ou mesmo a necessidade de distingui-la de conhecimentos técnicos, como a medicina, por exemplo (LOPES; PEREIRA, 2020). Portanto, os egiptólogos tradicionalmente não reconheciam a importância cultural e conceitual do “heka”, seja como poder mágico ou como forma de conexão com a esfera divina. Por outro lado, já se reconhece que indivíduos capazes de realizarem “heka” eram socialmente valorizados (PINCH, 1994, p. 50).

Segundo o pensamento religioso egípcio, a ligação individual com a divindade estava constantemente em jogo. Aquilo que chamamos de “magia” estava permeado nas diversas esferas sociais e culturais egípcias. Portanto, é simplesmente impossível, ou mesmo incoerente, tentar isolar a magia das suas demais práticas cotidianas.

A “magia” é um tema recorrente na egiptologia desde a criação da disciplina. Em linhas gerais, o debate egiptológico sempre acompanhou o desenvolvimento do debate antropológico. Assim, a teoria da magia na egiptologia está influenciada pelos modelos etnológicos e religiosos emprestados da antropologia. Autores influentes do século XX trataram a magia como um fenômeno diacrônico e universal (FRAZER, 1922MAUSS, 1950). Essa percepção “evolucionista” da magia, enquanto estágio preliminar do pensamento racional/científico ou do surgimento da religião, influenciou o modo como a egiptologia abordou o tema.

A premissa da obra analisada assume que a magia é um “Denkstil”, ou seja, uma forma de pensamento particular a um grupo na organização da sua visão de mundo. Isso contesta a abordagem egiptológica tradicional, pois assume que magia é um conceito variável e dinâmico, posto que está sujeito a particularidades culturais e cronológicas. Portanto, a análise do pensamento mágico egípcio é tratada como uma faceta da própria especificidade da cultura egípcia. Consequentemente, através de uma abordagem êmica, articulou-se um diálogo entre a antropologia e a linguística em busca da compreensão dos aspectos culturais da magia egípcia.

Foi demonstrado ao longo da argumentação da obra, que para se entender a magia, ou qualquer outro aspecto cultural egípcio, é necessário um estudo conjunto da cultura e da língua egípcia. Sem essa transversalidade é impossível de se perceber corretamente a carga de significação e significado que certos termos e respectivos sinônimos carregam consigo. Trata-se de uma contribuição importante para uma sistematização de uma epistemologia sobre o pensamento mágico do antigo Egito.

Apreciação crítica

Nos países de língua portuguesa, especificamente Portugal e Brasil, a egiptologia é uma disciplina ainda em processo de consolidação. Uma das suas carências mais evidentes é a dificuldade de acesso à uma bibliografia recente e atualizada, capaz de auxiliar no desenvolvimento de pesquisas inovadoras do estado da arte das suas temáticas.

Se somarmos a isso a ausência de uma bibliografia significativa produzida em língua portuguesa, percebe-se a necessidade de importação de obras estrangeiras, sendo que, muitas delas são traduções inglesas e francesas de obras ainda mais antigas, produzidas noutras línguas, como o alemão.

Tomemos, a título de exemplo, a obra Egyptian Religion (MORENZ, 1992). A obra, que ainda é reimpressa atualmente, é uma tradução inglesa, originalmente produzida em 1973, a partir do original Ägyptische Religion, de 1960. Embora a obra mereça ser lida e permaneça pertinente para o conhecimento do estado da arte, ela propõe separações tradicionais entre magia e religião, refletindo ainda influências evolucionistas (ERMAN, 1934).

Consequentemente, os pesquisadores portugueses e brasileiros correm o risco de se extraviarem em meio a discursos obsoletos e discussões superadas, se não lidarem com essa bibliografia proativamente. Isso é bem evidente quando se adota acriticamente paradigmas reproduzidos por autores defasados, como Budge, Erman e Gardiner, insistentemente republicados, principalmente, devido ao seu status comercial de “obras de domínio público”.

A obra analisada chama a atenção para como se pode reconstituir uma cronologia de discursos antropológicos presentes em momentos específicos de produção acadêmica egiptológica. Ela oferece um enorme potencial para uma atualização teórica e metodológica da produção egiptológica lusófona. Os seus capítulos conceituais são particularmente úteis para a discussão de temáticas ligadas à religião, magia e intertextualidade no antigo Egito.

Seria interessante promover a tradução da obra ou, pelo menos, de alguns dos seus capítulos, sob a forma de uma coletânea de ensaios.

Nota

1 Pode-se obter uma cópia do livro através do link da plataforma Propylaeum-ebooks, da Universität Heidelberg: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529

Referências

BUDGE, Ernest A. W. Egyptian Magic London: Kegan Paul, 1901.

BUDGE, Ernest A W.. Egyptian Religion London: Kegan Paul , 1900.

ERMAN, Adolf Die Religion der Ägypter Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1934.

FRANKFURTER, David Narrating Power: The Theory and Practice of the Magical Historiola in Ritual Spells. In: MEYER, Marvin; MIRECKI, Paul(orgs.). Ancient Magic and Ritual Power Leiden: Brill, 1995. p. 455-576.

FRAZER, James G. The Golden Bough: a Study in Magic an Religion New York: Abridged, 1922.

GARDINER, Alan H. Magic (Egyptian). In: HASTINGS, J. (org.). Encyclopaedia of Religion and Ethics. V. VIII Edinburgh: T&T Clarc, 1915. p. 262a-269a.

LOPES, Maria H. T.; PEREIRA, Ronaldo G. G. The Gynecological Papyrus Kahun London: Intech Open, 2020(no prelo).

MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie Paris: PUF, 1950.

MEGGLE, Georg. Handlungstheoretische Semantik Berlin: De Gruyter, 2010.

MORENZ, Siegfried. Egyptian Religion Ithaca – NY: Cornell Press, 1992.

PARKINSON, Richard B. Types of Literature in the Middle Kingdom. In: LOPRIENO, Antonio(org.). Ancient Egyptian Literature. History and Forms Leiden: Brill , 1996. p. 297-312.

PINCH, Geraldine. Magic in Ancient Egypt London: British Museum Press, 1994.

WESTENDORF, Wolfhart. Handbuch der Ägyptischen Medizin Leiden: Brill , 1999.

STEGBAUER, Katharina. Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit Ägyptologische Studien Leipzig, Band 1, 2019. Disponível em: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529
» https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529

TAMBIAH, Stanley J. Eine performative Theorie des Rituals. In: WIRTH, Uwe(org.). Performanz. Zwischen Sprachphilosophie und Kulturwissenschaften Frankfurt: Suhrkamp, 2002. p. 210-242.

TAMBIAH, Stanley J. Magic, Science and Religion, and the Scope of Rationality: The Lewis Henry Morgan lectures 1984 Cambridge: Cambridge University Press, 1990.


Resenhista

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira – Pesquisador da Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa/LX – Portugal. E-mail: ronaldo.gurgel@yahoo.de. ORCID: https://orcid.org/0000- 0002-8457-6220


Referências desta Resenha

STEGBAUER, Katharina. Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit. Leipzig: Ägyptologische Studien, 2019. Resenha de: PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel. Um debate egiptológico sobre o pensamento mágico. Topoi. Rio de Janeiro, v. 23, n. 49, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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