A obra “Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso” (2021) é uma coletânea composta por 14 textos de divulgação científica, organizados por Luciana Saddi e Maria de Lourdes S. Zemel, ambas psicólogas com experiência no estudo da relação entre família e abuso de drogas, dentre elas, o alcoolismo. Diferente de seu predecessor (Fumo Negro: a criminalização da maconha no pós-abolição), “Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso” chega em um momento social e histórico marcado por diversos processos de flexibilização dessa substância em todo continente americano, assim como pela adesão de parte da sociedade civil brasileira a esse debate. Essa mudança de conjuntura amplifica o seu potencial como objeto de informação a ser agregado a essas discussões.
Na condição de historiador, abordamos a obra a partir de dois aspectos que estão diretamente associados ao tema: a ousadia na escolha do tema, sua abrangência e direcionamento a um público não especializado, e a relação que o conjunto de textos constrói com a historicidade do tema. Também registramos o impacto das teses do livro. Embora não exista um momento de síntese, ponto negativo da obra, é possível concluir que o objeto não é a planta ou substância designada “maconha”, mas as formas com as quais nos relacionamos com ela (de ordem pessoal, familiar, comunitária ou institucional). Cabe apontar que determinados modos de lidar não são as melhores alternativas. Elas devem ser revisadas, principalmente as que retiram a autonomia dos indivíduos no tratar com essas substâncias, como é o caso da política de guerra às drogas, pouco eficiente e baseada em lógica coercitiva. Outra conclusão possível é a de que a comunicação e a informação se configuram como as melhores saídas para lidar com os problemas de abuso, implicando, inclusive, em questões-chave como a prevenção e a redução de danos.
A obra quer compartilhar informações científicas para além da bolha acadêmica. Nesse sentido, foi composto por textos objetivos com linguagem de fácil compreensão, educando por meio de conhecimento racionalmente constituído, orientando novas práticas sociais frente à maconha. Seus textos podem ser classificados em dois grupos. O primeiro toma como centralidade as relações que se desenvolvem entre os usuários e as suas comunidades de pertencimento, demonstrando os estigmas normalmente mobilizados e as suas consequências. Assim é escrito o texto “As famílias e o uso de maconha”, de Silva Brasiliano. A autora propõe uma série de novas formas de agir que colocam o indivíduo e a sua subjetividade como alvo das comunicações, a fim de amplificar o diálogo entre os pais e seus filhos, evitando a sua marginalização a partir do lar. Não se trata de achar culpados, mas de estabelecer uma lógica de cuidados a partir do núcleo familiar.
Em “O uso da maconha por adolescentes: entre prazeres e riscos, 1o barato que sai caro!'”, Maria Fátima Olivier Sudbrack observa as relações estabelecidas entre os adolescentes e os grupos integrados por eles como forma de compreender quadros de abuso de substâncias. A autora chama atenção para a necessidade voltar o olhar para os motivadores desse contato e de seus possíveis abusos, partindo de questões como a produção do desejo em torno da maconha, assim como necessidades de alívio rápido, característicos das estruturas do Capitalismo. A autora afirma que essas questões devem ser tratadas pelo viés da educação, a fim de constituir autonomia, levando aquele que faz uso a se posicionar frente aos seus comportamentos, e não pela via da criminalização.
No texto “O uso da maconha e a prevenção“, Maria de Lurdes de Souza Zemel, atesta que as soluções de caráter moralizante não são suficientes nem capazes de acabar com as drogas. A autora propõe a constituição de ações preventivas que levem em conta as vulnerabilidades sociais, econômicas e culturais dos indivíduos, base da sua aproximação às substâncias psicoativas. É nesse sentido que aponta para a necessidade da constituição de suas ações educativas, de caráter contínuo, pautadas nas vulnerabilidades a que os grupos estão expostos.
Em “Vulnerabilidade no uso da maconha“, Marcelo Sodelli demonstra que a dependência em relação às drogas não é apenas uma questão de vontade, mas perpassa as relações estabelecidas entre os indivíduos e o mundo com o qual se relacionam, assim como os significados que se desenrolam a partir desse processo. Ele apresenta os diversos tipos de vulnerabilidades (individual, social e programática), sendo a ausência de informações a que mais atinge os indivíduos. Nesse sentido, aponta a escola e as ações educacionais de caráter preventivo como mais potentes, distanciando-se das medidas que são da ordem da proibição e do controle.
No texto “Maconha e vulnerabilidades sociais: o que sabemos?”, Eroy Aparecida da Silva e Yone Gonçalves de Moura demonstram que, antes de estabelecer um julgamento moral a respeito do uso da maconha, é necessário observar os aspectos de ordem psicossocial e da própria existência de uma subcultura da maconha. Essa subcultura tende a marginalizar os grupos de usuários menos favorecidos (negros e pobres) que, historicamente, estiveram na base dos argumentos proibicionistas. Os autores afirmam que as pesquisas científicas são ferramentas de ruptura em relação a esse estigma historicamente constituído.
No texto “Redução de danos, maconha e outros temas polêmicos”, Vera Da Ros aborda os indivíduos que fizeram o uso precoce da maconha, apresentando estratégias para a construção de práticas de redução de danos, diante da impossibilidade de ter um mundo livre de drogas. Essas práticas se configurariam como uma busca por diminuir os riscos e problemas associados ao consumo e teriam como principal elemento a disseminação de informação científica, potencialmente livre de interesses econômicos, políticos e morais. A estratégia comunicada é pôr os indivíduos diante das práticas de uso e das suas consequências, estimulando o desenvolvimento de sua autonomia. A autora finaliza seu texto apresentando algumas práticas de redução de danos que levam em conta as formas de consumir e até as práticas culturais coletivas que se desenvolvem em torno da maconha, como a partilha de cigarros.
“A questão legal”, de Luís Francisco Carvalho Filho, trata dos problemas de elaboração da lei 11.643/2006, dentre eles, a inexistência de critérios objetivos que caracterizem consumo e tráfico, concedendo ao dispositivo um caráter draconiano. Para o autor, a lei reforça uma falsa liberalidade de costumes, a exposição dos usuários a constrangimentos burocráticos relacionados às esferas policiais e judiciais, assim como o encarceramento de jovens negros e pobres.
No texto “O uso terapêutico de cannabinoides: novas perspectivas e informações clínicas”, Dartiu Xavier da Silveira Filho e Rodrigo Nikobin apresentam a maneira pela qual nosso corpo, fisiologicamente, reage a diversidade de cannabinoides, ao tempo em que chama atenção para o emprego dessas substâncias no tratamento de doenças como Alzheimer e Parkinson. Esses autores também alertam para o perigo do consumo precoce e do uso dos cannabinoides sintéticos – mais potentes que os in natura. Por fim, os autores reafirmam seu endosso à regulamentação do uso da maconha, uma vez que essa medida possibilitaria o controle da qualidade e disposição das substâncias, assim como do desenvolvimento de ações educacionais, de prevenção, de acesso ao sistema público de saúde e o fim da guerra às drogas que tanto mata e encarcera.
Em “Os usos terapêuticos da maconha”, Renato Filev aborda tardia regulamentação da maconha medicinal no Brasil (2016) em relação ao cenário internacional, demonstrando que a demanda local é superior aos produtos disponíveis no mercado, tornando esse produto caro e pouco acessível. Esse autor também demonstra que o modelo de regulamentação brasileiro opta por utilizar a maneira mais burocrática que existe, se recusando a reconhecer a maconha e seus derivados como fitoterápicos tradicionais. Tal fato estaria associado à inclusão da maconha em restrições internacionais, tornando a regulamentação uma questão de cunho político e não medicinal ou científico. O autor também sinaliza os benefícios de caráter medicinal que poderiam ser extraídos do uso dessa planta e os malefícios associados ao uso precoce e abusivo.
No texto “Os usos religiosos e espirituais da Cannabis”, Edward MacRae declara que a criminalização da maconha afetou a utilização dessa planta para fins ritualísticos, na medida em que passou a marginalizar grupos que dela se utilizam. O autor também aponta para uma descaracterização desse tipo de uso, posto que o debate sai do religioso para o uso lúdico e é adotado pelos movimentos de contracultura, nos anos 60. Naquele período, atrelou-se o uso da substância alteradora de consciência a grupos brancos de classe média, renegando o passado vinculado às comunidades afro-brasileiras. Nesse sentido, MacRae aponta para as incoerências entre usos ritualísticos e proibição, como a renegação de grupos negros e indígenas a incorporarem o uso da maconha em rituais tradicionais no presente ou a prisão de lideranças religiosas locais, enquadradas no tráfico de drogas.
No capítulo “A internação em caso de dependência de maconha”, Valéria Lacks discute os casos em que a internação relacionada à dependência de maconha deve ser utilizada, a saber: a necessidade de diagnósticos e a piora de prognóstico. Ela enfatiza a necessidade de colocar o processo de afastamento da substância o mais perto possível da autonomia dos indivíduos, evitando longos quadros de internação, sendo preferível a intervenção ambulatorial e somente em último caso a internação em hospital psiquiátrico. A autora finaliza por chamar atenção aos perigos que o uso pode implicar em pessoas com quadro psiquiátrico.
“A polêmica psicose canábica”, de Marta Ana Jezierski, desmente a existência de uma relação direta entre o uso de canabis e esquizofrenia, de maneira a demonstrar que essa se daria mediante a somatória de uma série de fatores, como genética, eventos traumáticos, a forma pela qual o indivíduo fora criado, dentre outras. Para ela, a tentativa de constituir uma patologia a partir dessa substância está relacionada à carga cultural e aos preconceitos que dos pesquisadores, afirmando, assim, a necessidade da constituição de uma neutralidade a fim de evitar resultados tendenciosos. Jezierski entende que os estudos a respeito da psicose da maconha foram inconclusivos e contraditórios e alerta para o problema do uso de substâncias psicoativas durante a adolescência, momento em que o cérebro passa por muitas mudanças, podendo desencadear quadros pré-existentes.
Em “Maconha: origem e trajetória”, Lilian da Rosa historiciza a relação maconha/humanidade a partir de sua origem na Ásia e posterior passagem aos demais continentes. Para a autora, essa trajetória denota um longo rol de usos e práticas que só se tornaram ilegais recentemente, no início do século XX, a partir de um movimento internacional encabeçado pelos Estados Unidos. Ela afirma que, no Brasil, este veto está associado à perseguição de culturas subalternas, negros e pobres, tornados, discursivamente, socialmente perigosos. A autora aponta que só recentemente o debate tem reabilitado a planta em seus diversos fins.
Por fim, no texto “A questão econômica”, Taciana Santos de Souza aborda a maconha a partir de seu valor de mercadoria, por meio da identificação de sua cadeia de produção. Para ela, a maconha faz parte de um mercado que possui produtores, consumidores e demanda, mas carece de agência reguladora, na medida em que o Estado se escusa desse papel. Essa produção não se daria de maneira fechada em si mesma, se mantendo apenas nos mercados ilegais, mas aqueceria também uma série de setores legais que garantem insumos para a produção, gerando renda e empregos. Ao mesmo tempo, afirma que a ilegalidade e a guerra às drogas tendem a inserir a violência nessas relações de produção. Para a autora, a legalização/regulamentação estariam na base da redução dos prejuízos sociais decorrentes da ilegalidade.
Observa-se que a obra cumpre com a sua função de divulgar diversas interpretações e temas que gravitam em torno da maconha, na medida em que se aporta em textos escritos por especialistas de diversas áreas que articulam elementos teóricos, da ordem conceitual, e questões práticas. O livro tem a qualidade de questionar os argumentos que fundamentam a proibição, assim como seu resultado para as populações que se relacionam com essa substância. Apresenta, também, possíveis saídas para lidar com a maconha a partir de uma perspectiva social que não culpabiliza a planta, mas chama a atenção para o peso das questões de ordem social e emocional que atravessam os indivíduos e que os levam ao consumo, seja para fins farmacológicos, seja para fins abusivos. Essa interpretação não é excepcional ao caso da maconha, mas pode ser facilmente direcionada às drogas legais como o álcool e os medicamentos ansiolíticos.
Do ponto de vista social, cumpre afirmar que a obra produz impacto nas formas pelas quais interpretamos e lidamos com a maconha, incitando-nos a nos posicionarmos sobre o nosso comportamento individual, coletivo ou institucional em relação à maconha. Tal fato implica em afirmar a necessidade de mais obras de ampla divulgação que tratem de temas diretamente relacionadas a interesses do presente.
No que diz respeito aos seus aspectos de produção, ressalvo aqui a dimensão interdisciplinar que o tema recebe, oferecendo a possibilidade de vê-lo em sua complexidade, na medida em que se apresentam olhares diversos a partir de diferentes ciências. Nesse sentido, aqueles que se apropriarem da obra e da discussão que ela oferece, seja essa para fins pessoais, seja para fins acadêmicos, terão muito a ganhar com a leitura, já que os autores não apresentam a maconha como benéfica ou maléfica, fazem um panorama das diferentes questões e modos de abordá-las, incitando-nos a romper com perspectivas do senso comum, preconceitos e tabus historicamente constituídos e socialmente reproduzidos ao longo de décadas.
Referências
CASTRO, Marcos Vinicius. A Marcha da Maconha no Brasil: uma possível luta por reconhecimento e inclusão. Revista Eletrônica de Ciências Sociais. Juiz de Fora, n.25, p.188-206, 2017.
SADDI, Luciana; ZEMEL, Maria de Lourdes S. (orgs). Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso. São Paulo: Editora Edgard Blücher. 2021.
HENMAN, A.; PESSOA JR., O. (org.). Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986.
Sumário de Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso
Live de lançamento de Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso (Link)
Resenhista
Para citar esta resenha
SADDI, Luciana; ZEMEL, Maria de Lurdes de Souza. (Org). Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso. São Paulo: Blucher, 2021. 184p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Quebrando tabus: a maconha, ciências humanas e sociedade. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.4, p.17-22, mar./abr. 2022. Consultar publicação original.
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