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Machado de Assis – abordagens históricas da literatura / História Revista / 2019

Neste seu terceiro número de 2019, publicado, contudo, em meio à pandemia do novo Coronavírus, a História Revista acolhe, pela primeira vez, um dossiê dedicado a um escritor. Os 180 anos de Machado de Assis e a própria figura do escritor contribuem para que essa novidade não suscite grandes reparos. Mas o(a) leitor(a) há certamente de se surpreender – esperamos que positivamente – com os artigos que compõem o dossiê Machado de Assis – abordagens históricas da literatura.

Contando com a participação de pesquisadores da área de letras, nele não se encontram as figuras habituais de uma história literária familiar: nenhuma história desencarnada das grandes obras de um gênio nacional, nenhuma sucessão de escolas ou estilos literários, nenhum privilégio aos romances e contos mais consagrados de Machado de Assis. Em seu lugar, surge aqui a figura inesperada do historiador literário que investiga papéis velhos, que adentra o espaço por excelência do historiador tout court, na busca por respostas para um questionário novo, mais complexo, mais atento à historicidade das condições de produção, circulação e recepção das obras literárias. Para o século XIX, para Machado de Assis, isso significa, entre outras coisas, levar em consideração as relações estreitas entre literatura e imprensa, em suas mais diferentes articulações. Contra o desprezo em relação aos gêneros ditos “menores”, encontramos aqui a investigação de parte da volumosa e variada produção machadiana publicada em periódicos do Rio de Janeiro. Contra a imagem do gênio incomparável, encontramos aquela, histórica, do Machado de Assis escritor em formação (na certeira descrição de Lúcia Granja), para quem os jornais ofereceram laboratórios de práticas de escrita. Contra a ideia de meras influências inglesas, encontramos a consideração do impacto do suporte na elaboração e na transformação da poética machadiana.

Assim, em um diálogo explícito com nossa própria realidade desoladora, Lúcia Granja apresenta-nos, em “Jornalismo e atualidade em Machado de Assis: das crônicas ao Quincas Borba”, um escritor perturbadoramente atual, em suas crônicas do terceiro quartel do século XIX e em seu romance de 1891. Explorando de maneira inesperada as relações entre literatura e imprensa, Granja demonstra que Machado de Assis não apenas buscou nos jornais do dia os temas de suas crônicas; ele se debruçou cotidianamente sobre o discurso jornalístico, empenhando-se em desmontar suas falsas aparências, em evidenciar sua manipulação para fins políticos ou individuais, em assinalar seu pouco compromisso com os interesses públicos. Desse modo – e em um contraponto revelador, que a autora enfatiza de bom grado – a abordagem dessa faceta da produção machadiana não pode deixar de iluminar o fechamento do nosso presente: no século XIX, as vozes dissonantes eram acolhidas no interior mesmo do sistema midiático, ao passo que, atualmente, elas precisam se submeter a “esquemas alternativos de sobrevivência, principalmente nos meios digitais”.

Espaço aberto para o exercício da fina crítica social, inclusive aquela dirigida contra si mesma, a imprensa foi mais do que um suporte para a produção literária do autor de “O alienista”. Em “O Cruzeiro e a reinvenção de Machado de Assis”, Jaison Crestani demonstra que o jornal, para o qual o escritor colaborou ao longo do ano de 1878, atuou também como mediador de exercícios experimentalistas decisivos para a transformação da prática criativa. Enfrentando um tema clássico da fortuna crítica machadiana – a explicação para a passagem de uma primeira para uma segunda fase -, Crestani rejeita os termos habituais em que ela foi discutida, porque rejeita, mais fundamentalmente, os próprios pressupostos da história literária mais tradicional. Machado de Assis não se fez sozinho, nem de um dia para o outro. Sua incontestável grandeza é inexplicável se não se levar em consideração este dado, que fomos acostumados a negligenciar: fazer literatura, no século XIX, é produzir para os jornais, é habitar o solo coletivo da publicação periódica. Uma inscrição plena de ricas potencialidades criativas – e não, como também fomos acostumados a pensar, de simples e penosa sujeição ao ritmo frenético do entretenimento de massa.

Mas não se esgotam aí as surpresas deste dossiê. Nos artigos dos historiadores, não encontrará o leitor mais uma defesa da utilização da literatura como fonte. E isto não somente porque se trata de uma questão sobejamente resolvida – já há bastante tempo gozam as obras literárias de inquestionável legitimidade enquanto documento para o historiador (lembremonos de Lucien Febvre, em 1933: “Os textos, sem dúvida; mas todos os textos. E não somente os documentos de arquivo […]. Mas um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana”.). Tampouco faz aqui sua aparição a figura clássica do “Machado de Assis, romancista do Segundo Império”, forjada por Astrojildo Pereira em 1939 e normalmente evocada quando se trata de ler a literatura machadiana de um ponto de vista histórico. Não é questão, para os historiadores que colaboram com este dossiê, de evidenciar o esforço do escritor de retratar a estrutura social ou a história do Brasil da segunda metade do século XIX. Não se espere, assim, que estes artigos suscitem as velhas diatribes sobre a relação entre texto e contexto ou que seus autores sejam acusados de negligenciar a complexidade da literatura, de perder de vista o essencial – a capacidade, que as obras literárias têm, de escapar à história – e de insistir no acessório, isto é, sua vinculação ao seu momento de produção.

Distante desse universo de questões habitual e, deve-se reconhecer, legitimamente esperado, os historiadores deste dossiê tampouco comparecem, por outro lado, com análises sobre o que se poderia chamar, com Judith Lyon-Caen em La griffe du temps (2019), de “o entorno” do texto literário. Não se dedicaram a estudar as condições de exercício da atividade literária ao tempo de Machado de Assis, não tomaram por objeto as instituições ou os meios literários – o nascimento da Academia Brasileira de Letras, no final da década de 1890, ou o grupo da Petalógica, reunido em torno da livraria de Paula Brito, na Praça da Constituição, no Rio de Janeiro da década de 1850. O público leitor – esse carapicu, tão raro e tão difícil de pescar, na bela imagem de Machado, muito bem evocada por Hélio Guimarães em seu Os leitores de Machado de Assis (2004), também se encontra ausente. Não se trata aqui da recepção e dos usos das obras, da história social ou política de seu autor ou das condições de publicação e leitura. Em seus artigos sobre a literatura de Machado de Assis, os historiadores deste dossiê escolheram ultrapassar limites tradicionalmente auto-impostos e adentraram o texto machadiano, arriscaram-se no exercício da interpretação e propuseram análises de procedimentos propriamente literários.

Nesse sentido, as estratégias de disfarce da natureza ficcional do texto literário são o tema de Lainister Esteves, em “A dissimulação da ficção nos contos de horror de Machado de Assis”. Esteves descortina, em seu artigo, esta dimensão interessantíssima e pouco estudada tanto da literatura do século XIX em geral quanto da obra machadiana em particular: a literatura de terror. Abordando a produção machadiana nesse gênero, o autor analisa o manejo muito bem-sucedido de um procedimento literário chave para a circulação de textos de terror, desde o século XVIII. Foi a dissimulação, segundo demonstra Esteves, o que tornou possível a participação dos contos de terror no movimento mais amplo de popularização e de redefinição, no século XIX, da própria literatura – indissociável, então, da publicação periódica e de sua recepção como entretenimento.

E é também um procedimento literário o meu tema em “O problema do nome próprio e o projeto literário machadiano”. Em meu artigo, detenho-me neste elemento aparentemente banal, mas que jamais deixa de chamar a atenção dos leitores de Machado de Assis: os nomes de suas personagens. Procuro defender que, analisados à luz de uma história da onomástica literária, os modos de nomeação das personagens são reveladores, de um lado, da própria historicidade do regime literário e de sua poética da indistinção entre ficção e realidade. Por outro, eles iluminam a singularidade e as transformações do projeto literário machadiano: se, ao longo da década de 1870, Machado de Assis procurou ser simultaneamente fiel e infiel ao legado do Romantismo, como uma espécie de “inimigo de dentro”, as Memórias póstumas de Brás Cubas significaram o abandono sem volta desse projeto.

E last, but not least, este dossiê conta ainda com a contribuição de um sociólogo, em mais um sinal da vitalidade da obra machadiana e de sua capacidade sempre renovada de suscitar o interesse de pesquisadores das mais diversas áreas das ciências humanas. Mas tampouco aqui se esperem termos habituais. Pois, ao invés de tomar a literatura de Machado de Assis como representação da estrutura social do Brasil oitocentista, na esteira da influente e seminal interpretação de Roberto Schwarz, Marcelo Brice o que faz é se debruçar sobre a análise e, sobretudo, as críticas que essa interpretação recebeu da parte de seu mais importante adversário, Abel Barros Baptista. Em “O verdadeiro Machado de Assis? O confronto crítico de Abel Barros Baptista”, Brice recupera os termos da discussão do estudioso português, em sua densa obra Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis (1998; ed. bras. 2003), com sua perspectiva francamente derridiana e anti-intencionalista da literatura machadiana.

Com este diverso e rico elenco de textos, a História Revista busca trazer para seus leitores e leitoras parte da intensa produção acadêmica sobre Machado de Assis, em uma celebração – esperamos – à altura de seu aniversário de 180 anos. Que este dossiê possa também convidar a uma (re)leitura da literatura do “Bruxo do Cosme Velho”, nestes tempos tenebrosos de peste e desesperança. Afinal, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, nesta outra homenagem, inigualada:

“Uma presença, o clarineta, vai pé ante pé procurar o remédio, mas haverá remédio para existir senão existir? E, para os dias mais ásperos, além da cocaína moral dos bons livros?”

Os dias não poderiam ser mais ásperos. Boas leituras a todos e a todas!

Raquel Campos – Universidade Federal de Goiás. E-mail: raquelmgcampos@gmail.com


CAMPOS, Raquel. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 24, n. 3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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