O novo livro de Beth Brait possui a qualidade de transitar das questões teóricas que circundam os debates acerca dos papeis e funções da linguagem, passando pelos comentários exemplificadores dos conceitos em exame, indo aos depoimentos dos envolvidos nos fazeres textuais: linguistas, romancistas, poetas, gramáticos, cronistas, críticos, professores, usuários. Estudiosos da linguagem, como Maingueneau, Carlos Vogt, Sírio Possenti, José Luiz Fiorin, Ingedore Koch, apresentam ensaios/depoimentos em que falam de suas experiências com o texto literário. Por seu turno, Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Chico Buarque, relatam suas vivências nas passagens entre a produção ficcional e as operações sobre a língua. É estimulante acompanhar as reflexões de autores do porte de Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa acerca dos múltiplos desafios que a eles foram reservados pelos códigos da linguagem escrita. Cabe verificar, ainda, como as aulas de gramática entraram na vida de futuros professores dedicados à pesquisa com a leitura e a escrita, a exemplo de Marisa Lajolo e Regina Zilberman.
A dança animada pelo texto de Beth Brait prossegue segundo o andamento dos cortes e superposições, lembrando uma montagem desdobrada em várias vozes, desde aquelas que adensam com a sua experiência determinadas reflexões propostas pela Autora, passando por outras que permitem ao leitor discutir modelos teóricos fornecidos pelas diferentes visões acerca do texto, até a inflexão sistematizadora/problematizadora derivada das interrogantes e proposições da Autora elle-même. Essa exposiçãomontagem, sustentada por uma escrita clara e elegante, possibilita ao leitor apreender os tópicos em desenvolvimento ativando uma série de questões presentes, de uma ou outra forma, quando o assunto diz respeito aos mecanismos de produção, circulação e recepção das estruturas linguageiras, dos compósitos discursivos.
É oportuno dizer que, ao cruzar diferentes vozes discursivas – o que amplia para o leitor conceitos como os de literatura, língua, leitura, escrita – , o livro em exame intensifica os procedimentos polifônicos, permitindo não apenas identificar visões, entendimentos e diferenças quanto aos fazeres da linguagem, mas facilitando a compreensão do modelo teórico que enseja as próprias opções teóricas de Beth Brait. Existe um evidente diálogo com a obra de Mikhail Bakhtin, o autor que ampliou os estudos sobre a linguagem, concebendo-a como fenômeno semiótico, conquanto em dimensão não naturalizada, pois envolvida diretamente com as dinâmicas sociais, culturais, estéticas. Tal abertura permite aprofundar reflexões atinentes aos vínculos entre literatura e outras linguagens, facultando ao mesmo tempo a reconsideração do conceito de gênero e o reconhecimento da quebra ou superação dos diferentes dispositivos e formas que pareciam enclausurar as áreas de produção do sentido. As linguagens estão no texto impresso, na oralidade, na telenovela, no anúncio publicitário, sempre forçando limites, agindo de maneira desabusada, refazendo percursos, permitindo que a prosa contamine a poesia, a poesia derive do anúncio publicitário, a publicidade adentre o romance, o romance se transforme em roteiro cinematográfico ou televisivo, o jornal misture informação e ficção: eppur si muove.
Literatura e outras linguagens persegue intensamente esta questão central: saber quais são os vínculos, desdobramentos, cruzamentos, expansões entre a língua e a literatura. E mais, avança na ideia segundo a qual o problema da produção dos sentidos, abrangidos os literários, diz respeito a um variado conjunto de signos e códigos que, ganhando a forma-valor de tipo verbal, espalha-se por sequências não verbais. Daí a preocupação da Autora em arrolar exemplos que poderiam ser pensados como classicamente afeitos ao discurso literário, pois advindos dos planos verbais, com outros, nascidos das páginas dos jornais, dos livros de culinária, das letras de música, em um espetáculo de sons e imagens que evidencia múltiplos cruzamentos verbovisuais. Daqui deriva a categoria das outras linguagens, modos de operar tipos distintos de signos, mas que colaboram na conformação geral dos campos de sentidos.
Tendo esta problemática como pano de fundo, Beth Brait promove algumas provocações sobre as quais convém refletir. Uma delas aponta a confluência permanente nas relações língua/literatura: a “parceria inquestionável”, “sem álibi”.
A assertiva reenvia este resenhista ao ano de 1968. Em uma sala de aula, o professor Antonio Candido ministrava palestra – cujo título se perdeu na claudicante memória de quase 40 anos – aos jovens ingressantes no curso de Letras versando sobre as venturas e desventuras reservadas aos textos literários diante dos desafios apresentados pela então ascendente e galopante cultura de massa. A certa altura, o palestrante fez um parêntese para revelar a sua discordância de um tipo de discurso que apontava serem a língua e a literatura dois fenômenos a correrem em raia própria. O senão possuía alvo e estava claramente dirigido a uma crítica em voga no meio acadêmico e que misturava ao estruturalismo tropical uma linguística de poucas aventuras analítico-discursivas, aparentemente satisfeita em contar sílabas e mensurar a quantidade de informação gerada, digamos, em poemas de Baudelaire ou Mallarmé.
Tal questão é retomada por uma das depoentes/autoras de Literatura e outras linguagens, Ingedore Vilaça Koch. Conquanto longa, vale a pena reproduzir a passagem: “Houve uma ocasião em que, em virtude do afastamento da colega que na época era responsável pelas aulas de literatura no colégio de 2º. grau onde eu então lecionava língua portuguesa e técnicas de redação, fui instada a assumir a disciplina. Aceitei com o máximo prazer, mas nada me deixava mais irritada do que quando os alunos me perguntavam se deviam fazer as anotações no caderno de português ou de literatura; ou ainda quando reclamavam de eu tirar pontos na prova de literatura devido aos ‘erros de português’ ou de utilizar, nas aulas ou provas de língua portuguesa, textos literários. Tentava fazê-los entender que tanto gramática como literatura brasileira faziam parte do estudo de uma língua, quando entendida como atividade interativa de sujeitos sociais, que nela se constituem e são constituídos, de modo que não fazia sentido separá-las como se fossem duas ‘matérias’ estanques”.
A lembrança da passagem de Antonio Candido, corroborada pela prática da então jovem professora Ingedore Vilaça Koch, diz respeito a uma das ideias-chave presentes em Literatura e outras linguagens, e que reitera estarem língua e literatura na mesma estrada, malgrado possam cada uma das áreas desenvolver pesquisas, análises e crítica segundo procedimentos metodológicos próprios. Considerar a particularidade não implica, contudo, tratá-las como fenômenos isolados, como dois times em que os estudiosos de literatura podem afirmar desconhecimento dos fenômenos da língua e ao contrário, infeliz do professor de gramática que diz nada entender de literatura. O problema de fundo é que estamos, epistemologicamente, no interior de um mesmo processo de significação, ou de uma maneira interdependente de articular os campos de sentidos. Tais relações são apresentadas de modo instigante em conhecida passagem de Roland Barthes, posta em A aula (São Paulo: Cultrix, 2007, p.16): “Mas a nós, que não somos nem cavaleiros de fé, nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo quanto a mim: literatura”.
Certamente o conceito de outras linguagens, suscitado por Beth Brait, possui espectro amplo, tendo sido explorado em algumas de suas vertentes. Entretanto, ao posicionar o discurso literário – marcado por certos elementos canônicos – e as outras linguagens, é admissível ampliar o campo especulativo acerca destas. A se lembrar, neste caso, que as outras linguagens circulam por variados planos expressivos, permitindo a constituição de textualidades marcadas por inúmeras dimensões multimídias e multissígnicas.
Pretende-se dizer, com isto, que estamos diante de um universo de produção de informações, conhecimentos, saberes, conforme o caso, nascido em espaços descentrados, que tendem a fugir da circunscrição imposta por instituições tradicionais como a escola, podendo afirmar-se, por exemplo, na televisão, no rádio, na publicidade, no twitter, no MSN, enfim nos dispositivos, muitos deles tecnológicos, cada vez mais referidos ao conceito de pós-mídia de massa. Desnecessário lembrar que se estabelece outra relação entre suportes, por exemplo, digitais e arranjos sígnicos, trazendo como consequência novos compósitos de linguagem. Este ponto parece importante e permite entender porque Beth Brait analisa o jornal, a placa de trânsito, a receita de bolo, vendo- os como continuidades sígnicas nascidas de codificações próprias, mas capazes tanto de dialogar entre si como de remeter a campos significativos passíveis de apreensão por parte dos destinatários. Em nossos termos, surgem discursividades pouco afeitas ao que tradicionalmente se proclama como literário ou praticado com maior constância na escola, mas que consignam a capacidade de expressar valores, conceitos, ideias, sentimentos, transitando entre planos objetivos e subjetivos, conquanto em cruzamentos pouco canônicos de signos e códigos.
E precisa ser deste modo. Tratar do assunto da linguagem e da língua, tendo em vista o aluno, o professor, o usuário de modo geral, desconsiderando o que chamamos acima de novos arranjos sígnicos, é como pretender o congelamento do tempo.
Aliás, é imperioso ter em mira, quando se trata de pensar as outras linguagens, uma série de autores que sobre elas estão se dedicando em áreas que promovem a fusão de literatura, imagem, som, ou tudo isto ao mesmo tempo. Em 2009, dois holandeses, Win Veen e Ben Vrakking, publicaram um livro instigante chamado Educando na era digital, em que desenvolvem o conceito de homo zapiens. A metáfora é reveladora não apenas de uma extensão tecnológica que permite o processamento de operações a distância, mas inclui uma mudança de perspectiva na maneira como se decompõe/compõe discursividades. Falamos, portanto, de gerações que cresceram utilizando computadores, telefones celulares, promovendo circulação de textos via twitter, MSN, blogs, entrando com certa naturalidade no universo hipertextual. São os nativos digitais, sobre os quais discorre o americano Marc Prensk, em Don’t bother me mom. I’m learning. O título, ele mesmo irônico, pois se trata da resposta que um filho dá à mãe quando é por ela indagado acerca do que está fazendo frente a um videogame, indica a existência de sujeitos nascidos no interior da revolução digital e que se tornam, quase imperativamente, leitores de narrativas multissígnicas. E isto, de certa maneira, já nos obriga a rever conceitos discursivos tradicionais com os de gênero – mister, ademais, para o qual a teoria bakhtiniana fornece importante contribuição.
Compreende-se, conforme posto no livro de Beth Brait, que venha acontecendo um alargamento na própria ideia do que é o fazer literário, segundo trabalhado, entre outros, por Katherine Hayles, em Eletronic literature: new horizons for the literary, livro publicado pela editora da Universidade de Indiana, em 2008. Aqui se acompanha uma forma de produção literária distribuída pela rede – lugar ou não lugar, como quisermos, alternativo às bibliotecas físicas – , em permanente deslocamento por diferentes terminais de computadores, capaz de dispor, associar, combinar signos diversos em tempo real. Textos com feições e tamanhos diferentes, dos microcontos, às narrativas partilhadas, até a epistolografia processada via email, que convida tanto a escritas como a leituras multimídia feitas sob circunstâncias codificadoras variadas. A exemplo das produções que migram por veículos de comunicação com formatos e sintaxes próprias em desdobramentos sinergéticos capazes de levar o capítulo da telenovela para as revistas dedicadas a acompanhar o desenvolvimento das tramas folhetinescas, ou reconverter a história em quadrinhos para o cinema, e mesmo disponibilizar no youtube a sequência audiovisual capturada pela câmera do celular.
Importa, nesta digressão acerca das outras linguagens, permitida pela leitura do livro de Beth Brait, reconhecer que estamos frente a sensórios promotores de novas formas de ver, compreender, perceber. Processo, ademais, largamente trabalhado por Walter Benjamin, que identificou nas mudanças dos instrumentos de produção o desenvolvimento de novas relações de produção e, consequentemente, do conjunto das relações sociais.
O livro em exame instiga-nos, enfim, a pensar como se elaboram as relações entre língua, literatura e novas linguagens. E o faz no pressuposto de que a construção dos sentidos resulta não apenas da enorme flexibilidade nas passagens entre diferentes sistemas de codificação, mas também na montagem das cadeias interlocutivas – em sua gama de experiências afeitas às apropriações das linguagens – e para as quais acorrem diversificadas vivências com o fenômeno mais geral dos signos e das estruturas discursivas. É nesta direção que parece ocorrer a travessia entre uma forma particular de estruturar os afetos, o conhecimento, a sensibilidade, chamada de literatura, as manifestações da língua, e as outras linguagens.
Adilson Citelli – Professor da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; citelli@uol,com,br
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