Literatura e interartes, desdobramentos estéticos e culturais: entrelaçamentos e reverberações da memória, da história, da sociedade e as identidades | Literatura, História e Memória | 2020
As poéticas interartes oferecem profícuo terreno para evidenciar o encontro entre as diversas linguagens e expressões a partir de uma abordagem atenta aos diálogos até mesmo por meio dos possíveis conflitos oriundos dos entrelaçamentos que perpassam as fronteiras entre as expressões artísticas. Ainda assim, essas aproximações atrelam-se a questões universais que elevam a arte a potencialidades que se referem ao seu caráter, tanto criador quanto resistente às forças que se levantam contra os discursos conciliadores diante dos encontros paradoxais da própria existência.
Foram muitos os teóricos que se debruçaram sobre o dialogismo entre as manifestações artísticas que parecem sempre dispostas a propor métodos de ultrapassar as próprias fronteiras de expressão. Para citar alguns casos emblemáticos, podem ser retomadas, por exemplo, as contribuições de Paulo Emilio Salles Gomes. Entre suas incursões pelas veredas cinematográficas, sempre em consonância com a Literatura, erigiram-se muitas pontes a conduzir e corporificar caminhos de análise e leitura. Em Decio de Almeida Prado e Anatol Roselfeld, no Teatro, é possível perceber os olhares atentos para a formação de uma crítica realizada no país em diálogo com tendências originais de diversas culturas. Já Antonio Candido traz à tona as relações entre a Literatura, a História e a Sociologia, elevando os gêneros literários a suas possibilidades comparativas às demais expressões artísticas como manifestações da sociedade na dialética que permeia o local e o universal.
Desde a publicação de A Personagem de Ficção (1968) objetivou-se unir, para além das demarcações metodológicas do momento histórico, outras formas de transitar pelas fronteiras que, por vezes, exigiram – e exigem – soluções que, afeitas ao hibridismo e à multiplicidade de tons e possibilidades, apontam para uma certa revisão de classificações estanques de abordagem crítica dos objetos artísticos e literários. E aparentemente caminha-se intensamente rumo à superação de alguns fundamentos teóricos em busca de alcançar alternativas críticas de análise e fruição artística e literária.
Neste dossiê, tais questões se apresentam desde o primeiro artigo, “Memória e história em O fantasma de Luis Buñuel: uma análise crítica em ‘A noite do princípio’”, de Tallyson Tamberg Cavalcante Oliveira da Silva e Lucélia de Sousa Almeida, que salienta o crescente interesse pelas narrativas literárias de caráter histórico ao analisar o romance de Maria José Silveira, sob o ponto de vista ficcional e memorialista a dialogar com a História, aproximando o contexto da ditadura militar brasileira às trajetórias de um grupo apaixonado pelo cinema de Buñuel e o surrealismo. Já “Narrativas de corpos e identidades em documentários sobre mulheres latino-americanas”, de Meire Oliveira Silva, retrata por meio dos documentários Simplesmente Jenny (1977) e Meu corpo, minha vida (2017) duas fases do cinema de Helena Solberg em diálogos com a sociedade ao enfocar as opressões dirigidas às mulheres latino-americanas. Mônica Naiara Pereira da Silva Santos, no artigo “As reinvenções literárias da história e da memória: as impossibilidades do mito fundacional brasileiro em Desmundo, de Ana Miranda”, aborda questões em torno da ficção pós-moderna que refutam os contínuos processos de silenciamento engendrados pela historiografia literária. Em “O capitalismo e a sua influência na literatura simbolista: Baudelaire, Huysmans, Wilde e a estética da decadência no fim do século XIX”, Julio Marinho Ferreira promove uma análise sociológica entre as literaturas finisseculares do decadentismo ou simbolismo e o momento histórico no qual foram produzidas, bem como os consequentes embates referentes às artes em um mundo ancorado em profundas transformações que já sinalizavam a derrocada do modelo capitalista.
Em “Metaficção historiográfica e paródia Gótica em Alias Grace, de Margaret Atwood”, Jaqueline Bohn Donada e Carolina de Mello Guimarães abordam como a escritora canadense se apropria da metaficção para construir um romance calcado, principalmente, no território da literatura historiográfica, gótica e fantástica. À luz dos preceitos teóricos de Linda Hutcheon, as pesquisadoras analisam Alias Grace sob uma perspectiva fragmentada e descentralizadora, o que desafia as interpretações absolutas dos registros históricos e do passado literário. Ainda nas veredas da análise literária, encontramos o artigo “De oprimido a opressor: um estudo do ‘Habitus’, de Pierre Bourdieu nas obras Animal Farm, de George Orwell e São Bernardo, de Graciliano Ramos”, de Renata Kelli Modesto Fernandes. Com base nos preceitos sociológicos do Habitus, de Pierre Bourdieu, o texto analisa as relações sociais de poder e dominação que exercem os personagens Napoleão e Paulo Honório em Animal Farm e São Bernardo, respectivamente. A análise, além de traçar paralelos entre duas obras pertencentes a polissistemas literários distintos, corrobora a relação entre literatura e sociedade, tal como defendida por Antonio Candido.
O diálogo entre literatura e sociedade é explorado, também, no artigo “Moda e modos: a influência dos sapatos no comportamento das personagens Inês e Sabrina em Sapato de Salto, de Lygia Bojunga”, de Danielle da Silva Apolinario. A discussão proposta evidencia as representações e os comportamentos sociais que podem ser construídos a partir da elucidação física e psíquica das personagens nos enredos literários. Nesse texto, a pesquisadora explora o quanto os acessórios do vestuário feminino usados pelas personagens Inês e Sabrina e descritos no texto literário de Bojunga determinam os padrões femininos ideais defendidos pela sociedade patriarcal.
Na sequência, encontra-se o artigo “A representação docente em Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus”, de Lorena Ribeiro Melo. O enfoque da produção está na influência que determinado momento histórico exerce na construção e representação dos personagens em obras literárias. Diário de Bitita é uma obra autobiográfica, em que a autora, Carolina Maria de Jesus, perfaz suas memórias e mostra o quanto o momento histórico – Primeira República Brasileira – moldou sua representação enquanto docente. O artigo em questão apresenta o potencial transformador da literatura como forma de resistência e de memória.
Em “Resistir para existir: uma análise da obra Cangaceiros, de José Lins do Rego”, de Edvânio Caetano Silva, as reflexões analisam a construção dos personagens do romance brasileiro de meados do século XX e trazem a ideia da resistência como tema. A análise configura a narrativa como um documentário histórico e sociológico, o qual apresenta um retrato dos excluídos socialmente. Volta-se aos aspectos regionalistas ao refletir sobre fanatismo religioso, cangaceiros, coronéis falidos e loucos. Aponta as tensões de uma realidade de opressão e decadência onde a resistência vivida pelos personagens ocorre de diversas formas nas lutas diárias.
O pesquisador Marcos Douglas Bourscheid Pereira, em “Imagens e memórias da ditadura em Pontos de Fuga: Hatoum pensando o passado e o atual desastre político brasileiro”, analisa os regimes totalitários e as reverberações da opressão e violência ditatorial no governo de Jair Bolsonaro. O texto examina a face histórica do país a partir da narrativa literária e das entrevistas concedidas por Milton Hatoum para formular reflexões que interpretam movimentos ocorridos no Brasil em defesa do retorno dos militares ao poder. Num diálogo entre passado e presente conduz para a análise crítica da história brasileira, da ditadura militar ao golpe ocasionado pelo impeachment de Dilma Rousseff. O artigo conclama a crítica e ressalta a postura do escritor e a contribuição do romance na luta e resistência frente aos regimes de opressão.
O texto “Vozes de um golpe’: uma análise da representação da ditadura militar em Mãe Judia, 1964, de Moacyr Scliar”, de Francisca Luana Rolim Abrantes e José Edilson de Amorim, parte da literatura para formular questionamentos sobre a histórica e a política do Brasil, principalmente no que se refere ao golpe ditatorial de 1964. O artigo apresenta a compreensão de que a literatura tem a capacidade de lançar novos olhares e reflexões sobre a realidade e analisa os traumas da experiência brasileira, a opressão, os crimes, a violência e as mazelas decorrentes da ditadura com intuito de ressignificação, haja vista a tentativa do sistema de apagamento e impunidade dos opressores e responsáveis pela tortura. As implicações do contexto são estudadas a partir do comportamento dos personagens do conto de Moacyr Scliar.
Nas veredas das relações entre literatura, história e memória situa-se o texto de Suzane Morais da Veiga Silveira, “Exílio, utopia e polifonia em O Bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira Neto”. A narrativa literária trata a questão da Guerra do Contestado e compõe um painel de análise que passa pela Segunda Guerra Mundial e chega a Ditadura Militar brasileira. Ao abordar a experiência do levante popular, manifestação utópica por uma sociedade mais justa, o artigo traz as questões do luto e do trauma problematizadas pelo romance, examina a experiência traumática do exilado e o papel do Estado enquanto agente violador e opressor.
Por fim, pode-se afirmar que O Dossiê Literatura e interartes, desdobramentos estéticos e culturais: entrelaçamentos e reverberações da memória, da história, da sociedade e as identidades configurou-se a partir de olhares atentos para as urgências do instante, a fim de estabelecer diálogo em relação a este momento histórico tão conturbado para as produções artísticas e acadêmicas de modo a extrapolar possíveis barreiras de interlocução em meio à diversidade de experimentações. Nesse sentido, a atenção ao contexto latino-americano e, especialmente, à atual conjuntura brasileira norteou a seleção aqui proposta por transitar pelas muitas culturas e linguagens em Literaturas, Artes, História e Memória, a fim de enfatizar a potência de suas interdiscursividades como possibilidades inesgotáveis de resistência.
Organizadores
Camila Paula Camilloti – UTFPR.
Cleiser Schenatto Langaro – UNIOESTE.
Meire Oliveira Silva – UNIOESTE.
Referências desta apresentação
CAMILLOTI, Camila Paula; LANGARO, Cleiser Schenatto; SILVA, Meire Oliveira. Apresentação. Literatura, História e Memória. Cascavel, v. 16, n. 28, p. 4-7, 2020. Acessar publicação original [DR]