KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Editora da Rocco, 2014. Resenha de ANDRADE, Antonio. A força ética de uma reflexão. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

O livro Literatura e ética: da forma para a força, de Diana Klinger – lançado pela coleção Entrecríticas (coordenada por Paloma Vidal) – situa, a meu ver, os leitores e pesquisadores da literatura contemporânea diante da problemática mudança de paradigmas que o declínio de valores éticos e estéticos da modernidade provoca. A passagem do campo da autonomia da obra de arte – do objeto literário, ficcional ou poético – para o “pós-autônomo” – termo utilizado por setores da crítica dedicados à reflexão sobre a produção contemporânea que se afasta das ideias de literariedade e autorreferencialidade do texto literário para aderir a um modo de escrita que se faz “em continuidade com os dados da realidade” (KLINGER, 2014: 41) – implica, para esta ensaísta, a necessidade de se repensar pressupostos teóricos que instrumentalizam o estudioso da literatura, com vistas a estabelecer uma rede de conceitos e estratégias de leitura capazes de funcionar como critérios de escolha e positivação de autores e textos.

Esse movimento do discurso crítico-ensaístico de modo algum é simples. Na verdade, constitui no texto de Diana um profundo empenho de ressubjetivação que se produz por meio de mecanismos de endereçamento, haja vista a mescla do gênero epistolar com o ensaio nas três cartas à amiga Luciana Di Leone, que marcam momentos fundamentais do livro: pela forte presença do autobiográfico na escrita crítica, configurada pela articulação da narrativa memorialística com a argumentação teórica ou analítica; pela construção de um lugar de autoria que joga, de maneira proposital, com referências dialógicas de ordens distintas ao desdobrar, por exemplo, reflexões em torno de poemas ou estudos críticos produzidos por amigos, alunos e colegas, ao lado de citações e discussões sobre Nietzsche, Adorno, Benjamin, Deleuze, Blanchot etc. Tal empenho não se produz, sem dúvida, isento de contradições. Ao buscar uma espécie de tom “menor” para seu ensaio, incorre na negação (psicanalítica) daquilo que se é, ou se deseja: “Os textos sobre esses autores não são de crítica literária nem têm essa pretensão. São anotações de pensamentos suscitados por essas leituras” (KLINGER, 2014: 14 – grifos meus). Não à toa, em alguns momentos centrais do texto, a autora não se vexa em assumir a enunciação assertiva, e até certas construções de caráter prescritivo, no afã de conduzir/persuadir seus leitores/destinatários: “A literatura não é uma força, mas é preciso transformá-la numa força” (ibidem: 191); “O que a poesia de Tamara encena é […]” (KLINGER, 2014: 107 – grifos meus). E, decerto, devido à percepção dessa contradição, enxerga a necessidade de modalizar suas formulações, que, se por um lado, “apostam” na recuperação ressignificada da ideia de resistência da literatura, por outro compreendem a relatividade do alcance da potência discursiva do literário – a qual parece advir de sua própria fragilidade: “Talvez seja possível, no entanto, apostar numa forma de resistência mais ‘fraca’ ou sutil” (KLINGER, 2014: 162).

Buscando através dessas sutilezas uma forma de expressão crítica que se coadune à ideia de crise, Diana tenta em seu texto configurar, retomando Barthes, o lugar tensivo de uma meia distância, isto é, de um distanciamento crítico “que não quebre o afeto” e que seja atravessado pela “delicadeza” (KLINGER, 2014: 118). Isso significa, em outros termos, ruptura com os valores de objetividade e frieza que tanto o estabelecimento de critérios de correferencialidade e padrões esteticistas canônicos da arte autônoma quanto os parâmetros generalistas da aparente “chave de leitura” concebida pela perspectiva pós-autônoma parecem projetar. Em oposição a eles, seu olhar crítico mobiliza-se em torno das ideias de singularidade, diferença e excepcionalidade, locupletando, por sua vez, o forte anseio por modos “singulares” de expressão e de subjetivação configurados pelos discursos teóricos relacionados às questões do contemporâneo. Cito, como exemplo, sua justificativa para a eleição dos autores focalizados no livro (a saber: Cortázar, Barthes, Kamenszain e Bolaño): “Trago Bolaño aqui não apenas porque ele me ajuda a pensar a vivência do medo. Também porque ele, como os outros autores a que me referi antes, sugere em sua obra uma aproximação com a própria vida que não tem nada a ver com propostas performáticas e autoficcionais de sua geração” (KLINGER, 2014: 134).

Nota-se, então, que nesse recorte está embutida certa “queixa” – a meu ver, também, bastante necessária – em relação à replicação de modelos estéticos que se tornaram hegemônicos na literatura atual. Entretanto, não se pode negar que suas escolhas, pelo menos as mais aprofundadas, se assentam sobre nomes consagrados do passado e do presente, cujo valor já constitui uma espécie de “indubitável”. Desse modo, não haveria já um forte processo de singularização desses autores e de seus textos? Se concordamos que sim, é possível compreender, então, que a tarefa crítica é menos a de desvelar singularidades camufladas em meio ao “semsentido” – para usar um termo empregado pela ensaísta -, e mais a de mediar a relação de seus interlocutores com essas vozes “singulares”.

Outro ponto que se explicita na construção de seu critério eletivo é a importância da relação literatura e vida, que fomenta e atravessa toda a discussão em torno do afeto e da ética no livro. Tal relação serve-lhe de base para pensar a escrita “como uma prática ou ritual, uma forma de estar no mundo” (ibidem: 49), concebendo-a assim fora do modelo estético da representação. E, também, para pensar a leitura, ou melhor, o modo como o sujeito pode ser afetado pelos textos, aproximando pois literatura e leitor no complexo processo de procura do sentido da vida. A condição paradoxal, no entanto, dessa busca é que ela se faz justamente negando tudo aquilo que se considera banal, tudo que estaria submetido à ordem do capitalismo cultural, ou preso às diretrizes da “sociedade de controle”, para usar um conceito deleuzeano discutido pela autora. Nesse sentido, a afirmação da vida, bem como a inscrição da ética no âmbito da imanência – de acordo com os pressupostos filosóficos que engendram aí a articulação entre Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari – interpelam intelectuais como Diana a assumir um posicionamento contradiscursivo, avesso ao funcionamento comum da linguagem e aos dispositivos habituais de produção dos sentidos – sobretudo os que se ligam ao poder midiático.

“Da forma para a força” é a formulação postulada já no subtítulo da obra para sinalizar o movimento de passagem de uma instância de reflexão sobre o biopoder para a proposição de uma biopotência afirmativa: força de resistência não imobilizada pelo espectro das representações, e sim propulsora de “práticas alheias aos modos de subjetivação estatal” (KLINGER, 2014: 81), com o intuito de “construir um plano de consistência para afetos que não estejam atravessados pela axiomática da troca” (KLINGER, 2014: 71). O trajeto argumentativo de Literatura e ética é, portanto, o de afirmação desse lugar singular da potência: o que seria, em si mesmo, já uma atitude ética. Contudo, não só o fato de tal atitude ser pensada a partir da dicotomia entre gestos especiais, repletos de “intensidade”, e práticas cotidianas, ainda mais esvaziadas de sentido se vistas com as lentes desta ótica filosófica, mas também a consciência de um iminente fracasso da literatura nesse intento de criar e difundir práticas que liberem o desejo, os afetos e as relações dos aparatos culturais e discursivos que os (re)capturam a todo instante, deslocam qualquer grau de certeza em relação à noção de ética para o espaço de um interrogante: o que é ético? Esta atitude é realmente ética?

Percebe-se, em diversos momentos do texto de Klinger, a dimensão problemática dessa dúvida. Não à toa, no capítulo “O remorso da literatura” assinala-se a questão da culpa como aporia constitutiva tanto da arte autônoma quanto da pós-autônoma. Já em “O sentido da escrita”, a ensaísta trata de dar sustentação teórica à afirmação da ideia de potência e à aposta na literatura como forma de promessa, que, conforme demonstra sua releitura de Benjamin, deve ser contínua e simultaneamente desauratizada e apropriada como meio de busca do sentido em face do vazio e da banalidade. A construção dessa perspectiva, que para alguns leitores pode soar como demasiado positiva, é dialetizada pelo capítulo “Em nome próprio”, em que, por meio da incursão no terreno autobiográfico, tensamente relacionado à leitura de Tamara Kamenszain, Diana produz uma interessante reflexão a respeito das noções de fuga, esquecimento e sobrevivência, chamando a atenção para as possibilidades de proposição de novos agenciamentos políticos a partir da perda.

Todo o desenvolvimento dessa discussão parece impelir Diana a endossar uma visão filosófica negativa da ideia de comunidade, na clave de Bataille, Nancy e Blanchot. Isso é bem perceptível em “A comunidade em suspenso”, capítulo que, se por um lado revela grande fôlego teórico da autora/pesquisadora, não obstante conduz, por outro, a um fechamento da leitura, na medida em que desinveste os traços identitários que constituem os diversos tipos de arranjo comunitário de qualquer potencialidade possível, chegando a realizar afirmativas como: “o que os seres compartilham é a diferença que os singulariza” (KLINGER, 2014: 111). A meu ver, este tipo de frase tende a certa clicherização na esfera crítico-acadêmica. É preciso, portanto, ler nas dobras da contradição que esse discurso deixa escapar a produtividade da tensão entre fuga e pertencimento: note-se que, embora a ensaísta seja uma argentina radicada no Rio de Janeiro, suas escolhas afetivas de leitura nesse livro revelam a priorização de escritores também hispânicos – dois argentinos (Cortázar e Kamenszain) e um chileno (Bolaño) que, como ela, viveu durante muito tempo fora de seu país natal. E é justamente em “Queime os livros!”, capítulo onde analisa a obra de Bolaño, que o texto de Diana alcança grande capacidade de captura do leitor: após belo momento autobiográfico sobre a violência e o medo que ocupam suas memórias de infância e juventude na Argentina, a autora desenvolve a seguinte reflexão no bojo de sua leitura do romance 2666: “A literatura está imersa nesse território da violência, nesse deserto onde só cabe desaparecer; por outro lado, a literatura é o único território” (KLINGER, 2014: 140), reafirmando assim sua aposta no literário como espaço de potência ética.

Essa perspectiva ainda se desdobra no capítulo “Spinoza e a potência da literatura”, no qual se oferece ao leitor um bom estudo sobre os modos de recuperação e reverberação do pensamento spinoziano na filosofia contemporânea (Negri & Hardt, Deleuze & Guattari, sobretudo), e em “Uma pequenina luz”, capítulo em que chama a atenção para o caráter dúplice que o poder de resistência da literatura enceta: “força ambígua, ao mesmo tempo desmesurada e desesperançada. Essa frágil força do desejo” (KLINGER, 2014: 183-184). Porém, é sob essa luz pequenina, sob essa força frágil, que Diana ensaia o risco de uma escrita original e instigante, que, em vez de partir do prognóstico apriorístico da impotência do discurso literário na contemporaneidade, investe na indagação dessa potencialidade problemática, perguntando-se, ao longo de todo o percurso: “o que pode a literatura?” (KLINGER, 2014: 135).

Antonio Andrade – Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como docente permanente do programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de análise do discurso, formação de professores e literatura contemporânea. Publicou diversos artigos em livros e revistas acadêmicas, dentre os quais se destacam “Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy” (Gragoatá, v. 31) e “Literatura e comunidade na formação de professores de Espanhol/LE (Abehache, v. 4). E-mail: antonioandrade.ufrj@gmail.com.

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Itamar Freitas

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