Um dos objetivos do dossiê é propor um resgate crítico de um período específico do contexto cultural italiano do século XX, a saber, o período que vai da década de 1960 à década de 1980. Trata-se de um interesse de fundo que contribui para a articulação das diversas contribuições aqui reunidas, propostas de leituras das obras de autores como Leonardo Sciascia, J. Rodolfo Wilcock, Goffredo Parise, Vittorio Sereni, Primo Levi e Elena Ferrante.
Embora seja sempre controverso apontar períodos mais ou menos conturbados na história, posto que problemas amiúde permanecem latentes na aparente calmaria da continuidade, os textos do presente dossiê encobrem um período bastante tenso. Estudálos e lê-los hoje em dia, quando não estamos exatamente navegando em mares tranquilos, é bastante desafiador. É quase inevitável pensar na “fusão de horizontes”, de Hans-Georg Gadamer, embora estejamos todos mais propensos à confusão e os horizontes estejam muito nebulosos ou quase invisíveis. De qualquer maneira, fica o desafio de pensarmos em uma encruzilhada no espaço, formada por Brasil e Itália, e, sobretudo, no tempo, pois, assim como hoje é intenso o debate sobre “as novas faces do fascismo”, para usar a expressão de Enzo Traverso (TRAVERSO, 2019), nas décadas de 60 e 70, a atmosfera política estava pesada, tanto lá como cá.
Por esta razão, como organizadores, ficamos especialmente gratos que este dossiê esteja sendo publicado em uma revista acadêmica cujos fundadores e até hoje editores sejam especialistas na cultura da resistência democrática brasileira no período da ditadura civil-militar. Assim, sabemos que são reais as chances de encontrarmos leitoras e leitores capazes de ver na literatura aquilo que disse Italo Calvino, na abertura de “Um assunto encerrado”: “A sociedade se manifesta como colapso, como desmoronamento, como gangrena (…) e a literatura sobrevive dispersa nas fissuras e nas desconjunções, como consciência de que nenhuma ruína será definitiva a ponto de excluir outras” (CALVINO, 2009). E não deixa de ser sintomático que essas palavras de Calvino tenham sido assinadas em março de 1980. Se temos nos textos a seguir momentos desta consciência é algo que caberá às leitoras e aos leitores decidirem. Cabe-nos apenas tentar fazer-lhes o convite da leitura.
Podem começar pelo ensaio de Domenico Scarpa sobre Primo Levi, denominado “O claro e o obscuro em Primo Levi”. Publicado originalmente em 1997 na revista Riga, em um número totalmente dedicado à obra de Levi, permanece muito atual, pois, como acontece com os bons ensaios, abre perspectivas de análise. Temos o prazer de publicar um texto de amplo fôlego, no qual o seu autor percorre tematicamente a obra de Levi a partir de um eixo nada evidente, mas muito fino: o claro e o obscuro. O ensaio de Scarpa é de grande elegância ao ressaltar, como ele mesmo diz, como a temporalidade da obra de Levi é a de um elástico. Quanto mais se tenta esticar e afastar, mais ele nos levará de volta. Como recurso, resta a complexidade, a complexidade em admitir as fissuras – expressão usada também por Calvino, como vimos – ou seja, de que nem tudo pode ser controlado e domesticado, mas nem por isso impossível de ser lapidado. Seria talvez a linguagem, em sua complexidade e clareza, a mão que puxa este elástico?
Em um livro como A Tabela Periódica, por exemplo, Levi cria seu própria elástico temporal. Aparentemente linear, este livro, publicado em 1975, apresenta idas e vindas entre o passado e o presente do escritor e sobrevivente, que, assim, escreve suas micro-histórias. É este o tema do artigo de Pedro Caldas, “A Micro-História de Primo Levi: Um estudo sobre A Tabela Periódica”, no qual se propõe uma definição de historiografia a partir de Levi, que faz uma micro-história antes mesmo de Carlo Ginzburg, também natural de Turim, torná-la uma prática internacionalmente reconhecida.
Micronarrativas também servem de tema para o artigo de Andrea Santurbano, “Um olhar oblíquo sobre crônica e sociedade: micronarrativas nos Anos de chumbo na Itália”, no qual acompanhamos um tratamento de autores como Juan Rodolfo Wilcock, Goffredo Parise e Giorgio Manganelli, aproximados a partir de uma perspectiva comparativa. Abrangendo os anos de chumbo, aqui as fronteiras são ultrapassadas, a saber, aqueles que separam intervenção e invenção, indivíduo e sociedade, e nas frestas deixadas pela violência, no espaço entre a Praça Fontana de Milão, em 1969, e a estação de trem de Bolonha, em 1980, muita coisa pode ser dita. A explosão do terror é acompanhada de perto por uma língua que se faz rumor para os três autores acima, e, neste sentido, se mantém viva.
Se a figura de Juan Rodolfo Wilcock surge de forma lateral no ensaio de Santurbano, a contribuição de Kelvin Falcão Klein, denominada “Literatura, Arquivo e Documento em Leonardo Sciascia e Juan Rodolfo Wilcock”, coloca esse autor de difícil classificação (nascido na Argentina e falecido na Itália, tendo escrito a primeira metade de sua obra em espanhol e a segunda metade em italiano) no centro, lado a lado com Leonardo Sciascia. O artigo em questão aborda as relações possíveis entre literatura, arquivo e documento a partir da análise de duas obras dos autores mencionados, La scomparsa di Majorana (publicada por Sciascia em 1975) e La Sinagoga degli Iconoclasti (publicada por Wilcock em 1972). A proposta do artigo é postular que, quando surge no texto literário, o arquivo leva consigo uma carga de ambivalência: oferece tanto a dimensão pesada daquilo que permanece (daquilo que é registrado e mantido ao longo do tempo) quanto a dimensão emancipadora daquilo que pode ser descoberto, de elementos que estão registrados mas que permanecem invisíveis ou recalcados.
A contribuição de Patricia Peterle, “Fazem-se versos pra tirar um peso”: as batalhas de Vittorio Sereni”, oferece uma análise detalhada da trajetória emblemática do escritor Vittorio Sereni (1913-1983), tenente de infantaria do exército italiano, poeta, professor, funcionário da Olivetti e diretor da editora Mondadori. O conflito da Segunda Guerra foi decisivo para Sereni, tendo sido preso pelos Aliados e levado para campos no norte da África, de onde sairá somente em 1946, não atuando, portanto, na Resistência. Patricia Peterle argumenta que esse conjunto de eventos leva Sereni a um sentimento de exclusão da história que atravessa sua poética, operando como uma lente singular sobre momentos da história individual e coletiva. Trata-se, portanto, de buscar “o gesto antropológico dessa escrita”, envolvida na complexa tarefa de dar conta das ausências latentes no discurso sobre o passado.
Por fim, o artigo de Luiza Larangeira da Silva Mello apresenta, em “Descida ao inferno: identidade, mobilidade e formação em A Vida mentira dos adultos, de Elena Ferrante”, uma leitura detida do último romance da autora que conheceu enorme sucesso mundial nos últimos anos com sua Quadrilogia Napolitana. O foco do ensaio recai sobre os temas da formação, identidade e mobilidade social, analisando suas figurações a partir das metáforas da catábase e da Queda, apropriadas às tradições poéticas clássica e judaico-cristã. Apesar de sua posição proeminente no cenário literário contemporâneo, o romance de Ferrante – segundo a hipótese de Luiza Larangeira – também parodia e subverte as formas do romance realista moderno e da tradição do Bildungsroman, de modo a levá-las ao limite, invertendo e rompendo seus pressupostos. E assim, o artigo de Luiza Larangeira sobre Ferrante fecha este conjunto de seis textos, que, esperamos, possa oferecer às leitoras e leitores a possibilidade de manterem e renovarem o contato com uma literatura que sempre tem e sempre teve algo a dizer quando se trata de descer ao inferno.
Referências
CALVINO, Italo. Assunto encerrado. Tradução: Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Londres: Verso, 2019.
Organizadores
Kelvin Falcão Klein – Professor Adjunto da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), atuando também no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da mesma instituição. E-mail: kelvin.klein@unirio.br
Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Associado do Departamento de História da UNIRIO. O presente artigo é resultado de uma pesquisa financiada com Bolsa de Produtividade do CNPq. Gostaria de agradecer a todos os colegas do Centro Internazionale di Studi Primo Levi, em Turim, em especial Domenico Scarpa e Cristina Zuccaro, assim como a todos os voluntários, diretores e funcionários da equipe. Sem a ajuda de todos este artigo seria impossível. E-mail: pedro.caldas@unirio.br
Referências desta apresentação
KLEIN, Kelvin Falcão; CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 18, n. 1, p.1-4, Jan./Jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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