OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA, Beatriz. Linguagem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 166 p. Resenha de: ANDRADE, Daniela Negraes Pinheiro. Questões linguísticas envolvendo gênero, sexualidade e interação social. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos,1 no seu artigo primeiro, diz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” e que, portanto, “dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Partindo do pressuposto, elaborado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, de que o ser humano é, primordialmente, fruto daquilo que a educação faz dele, é plausível pensar que a construção de uma sociedade livre, fraterna e igualitária passa pelo acesso ao conhecimento. É sabido, contudo, que não todo e qualquer tipo de conhecimento se põe a serviço do respeito à diversidade em amplo aspecto como fator preponderante para a humanização das relações sociais de modo a assegurar o convívio livre, fraterno e igualitário entre as pessoas.
Se o conhecimento é a chave para o entendimento e o aprimoramento das relações sociais dos seres de natureza humana, independentemente de raça, etnia, credo, opinião política, orientação sexual etc., toda obra que contribua para a construção do saber nesse sentido é digna de elogio. O livro Linguagem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos, sendo assim, merece ser celebrado. A obra presta um grande serviço à comunidade acadêmica leitora do português brasileiro e aos demais públicos interessados em prol do fortalecimento dos estudos voltados para a construção de um saber humanizador no tocante à questão da diversidade de gêneros e à questão da sexualidade no âmbito das interações sociais. Organizada por Ana Cristina Ostermann, ph.D. em Linguística (Universidade de Michigan, EUA), e por Beatriz Fontana, Doutora em Letras (UFRGS, Brasil), a publicação traz a compilação, competentemente traduzida, de artigos acadêmicos escritos por pesquisadores e pesquisadoras estadunidenses e britânicos/as considerados basilares dentro do escopo compreendido por gênero, sexualidade e interação social, abordado sob o viés da linguística interacional.
O capítulo que abre a obra, escrito por Ostermann e Fontana, auxilia leitores e leitoras a se situarem em relação às pesquisas voltadas para as questões interacionais envolvendo homens e mulheres e realizadas no espaço temporal que compreende as décadas de 1970, 1980 e 1990. Conforme esclarecem as organizadoras, a coletânea oferece para o público leitor estudos de diferentes perspectivas que marcaram a trajetória da sociolinguística dedicada à investigação das interações dessa ordem.
Os artigos estão dispostos em uma sequência cronológica que se inicia com os textos escritos dentro das perspectivas teóricas de déficit, dominância e diferença que orientaram os estudos relacionados a linguagem, gênero e sexualidade até o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 e termina com os textos escritos a partir da década de 1990, que, por outro lado, são guiados pela perspectiva da diversidade. Estes, segundo Ostermann e Fontana, se apresentam como uma “contestação às relações essencialistas entre linguagem e gênero social defendidas pelas abordagens anteriores” (p. 10).
“Linguagem e lugar da mulher”, escrito por Robin Lakoff (1973) e traduzido por Adriana Braga e Édison Luis Gastaldo, inaugura a leitura proposta. Marco referencial na área, a obra de Lakoff ainda hoje serve de fonte de inspiração para pesquisadores e pesquisadoras que desejam avançar nos estudos que problematizam as relações homem/mulher sob o viés linguístico. No extrato escolhido para compor o livro, Lakoff defende, entre outras coisas, que “às mulheres é sistematicamente negado acesso ao poder” (p. 17) por conta da (má) educação linguística a elas passada desde a infância e pela qual elas são chamadas a responder na idade adulta, sob pena de serem excluídas das discussões importantes da vida pública ou do trabalho. Desse modo, a fala da mulher, segundo Lakoff, seria deficitária para os propósitos conversacionais ‘que importam’, vistos sob uma perspectiva masculina.
Diferentes do trabalho de Lakoff, “O trabalho que as mulheres realizam nas interações”, escrito por Pamela Fishman (1978) e traduzido por Viviane M. Heberle, e “Pequenos insultos: estudo sobre interrupções em conversas entre pessoas desconhecidas e de diferentes sexos”, escrito por Candance West e Don H. Zimmerman (1987) e traduzido por Ana C. Ostermann e Mariléia Sell, são artigos que procuram evidenciar a dominância da fala masculina em eventos que envolvem interações entre homens e mulheres. A pesquisa de Fishman, baseada em análise feita sobre interações entre parceiros heterossexuais íntimos, aponta como fator de empoderamento masculino o uso de algumas estratégias conversacionais feito pelas mulheres no sentido de oferecer suporte à fala dos homens. A autora defende que enquanto os homens, geralmente, selecionam o assunto a ser discutido e tendem a não prover material interacional de forma a dar sustentabilidade aos assuntos propostos pelas mulheres, elas, por sua vez, “fazem um trabalho de apoio enquanto os homens estão falando e geralmente trabalham ativamente para a manutenção e continuação da conversa” (p. 45). Fishman também pondera que as mulheres tendem a utilizar estratégias interacionais observadas nas falas das crianças para conseguir atenção dos homens e “garantir a interação e também os direitos diferenciais dos participantes” (p. 39). A pesquisa de West e Zimmerman, por outro lado, enfatiza a interrupção feita pelos homens às falas das mulheres como razão preponderante para o domínio masculino nas conversas entre casais.
Escrito por Deborah Tannen no início da década de 1990, o artigo “Quem está interrompendo? Questões de dominação e controle”, traduzido por Débora de Carvalho Figueiredo, é uma crítica aos trabalhos anteriores que olham para o fenômeno da interrupção sem levar em conta o contexto em que ele acontece. Em seu texto, Tannen argumenta que as pessoas possuem estilos conversacionais diferentes e que as rusgas interacionais se dão, em parte, em razão da diferença cultural na maneira de interagir existente entre os/as participantes. Tannen separa os estilos conversacionais dos/as participantes em dois tipos: o estilo de fala cooperativa, que, segundo a autora, seria a fala típica das mulheres, e o estilo de fala relato, mais propensa a caracterizar a fala dos homens. Essa maneira diferente de falar própria de cada sexo seria uma das razões pelas quais os homens são percebidos como interruptores da fala feminina. Mais do que investigar o fenômeno da interrupção de forma descontextualizada, Tannen diz que é preciso olhar para aquilo que os/as interagentes “estão tentando fazer ao falarem uns com os outros” (p. 74) antes de afirmar que toda interrupção é sinal de uma tentativa de dominação conversacional.
Em oposição aos estudos que apresentam uma divisão binária para descrever as implicações da relação gênero e interação social, o artigo “Comunidades de práticas: lugar onde co-habitam gênero e poder”, escrito por Penélope Eckert e Sally MacConnell-Ginet (1992) e traduzido por Branca Falabella Fabricio, oferece uma nova perspectiva para pesquisadores e pesquisadoras que pretendem escrutinar tal relação de modo não essencialista. Eckert e MacConnell-Ginet propõem um olhar holístico sobre as pessoas e suas atividades dentro das várias comunidades de prática2 às quais elas pertencem como arcabouço para a investigação das possíveis implicações existentes na relação gênero e interação social. As autoras entendem que a identidade de gênero é um “valor simbólico da forma linguística que está sendo constante e mutuamente construído” (p. 105) e, portanto, não deve ser abstraído das práticas sociais e transformado em um objeto estanque de estudo. As autoras asseveram ser preciso “pensar praticamente e observar localmente” (p. 96) para entender como as pessoas performatizam gênero, além de outros valores, tais como categorias sociais, relações de classe e raça, nas diversas comunidades de práticas pelas quais transitam. O entendimento de gênero como performatização através da interação social foi, na verdade, introduzido por Judith Butler, cujo pensamento, aliás, é o fio condutor que agrupa esse e os dois últimos artigos da coleção sob um mesmo guarda-chuva.
O mote sexualidade constante no título do livro é discutido no artigo “É uma menina!: a volta da performatividade à lingüística”, escrito por Anna Lívia e Kira Hall e traduzido por Robrigo Borba e Cristiane Maria Schnack. Lívia e Hall avançam na problematização das questões de gênero na medida em que discutem a teoria queer, que propõe “o estudo da linguagem com base nas perspectivas combinadas de gênero e sexualidade, considerados como categorias separadas, mas intrinsecamente ligadas” (p. 113). Tida como a “volta à performatividade”, a teoria queer, portanto, se distancia dos modelos essencialistas abordados pelas perspectivas de déficit, dominância e diferença e se aproxima da perspectiva da diversidade por considerar que os estudos preocupados em debater gênero e sexualidade à luz da linguística devem levar em conta outros parâmetros sociais em suas investigações e devem entender “gênero como um processo ao invés de um estado” (p. 127).
Na mesma linha de pensamento está o artigo “Desempenhando identidade de gênero: conversa entre rapazes e construção da masculinidade heterossexual”, escrito por Deborah Cameron e traduzido por Beatriz Fontana. Ao analisar a conversa entre um grupo de amigos heterossexuais, Cameron defende a existência de um “trabalho performativo de gênero” realizado através da linguagem que é responsável pela “constituição de pessoas enquanto sujeitos generificados” (p. 144).
Ao disponibilizar aos leitores e às leitoras do português brasileiro uma coletânea de textos que podem ser utilizados para amparar as reflexões que levam em conta a construção do gênero e da sexualidade através da fala em interação, a obra se torna indispensável para os/as profissionais, estudantes e interessados/as no assunto. Lingua-gem, gênero, sexualidade: clássicos traduzidos é, sem dúvida, uma publicação que agrega um saber em prol do alargamento das fronteiras do conhecimento, ao mesmo tempo, humano e humanizador, o que, em última instância, auxilia a fundamentação de uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária.
Notas
1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1993.
2 Jean LAVE e Etienne WENGER, 1991.
Referências
LAVE, Jean; WENGER, Etienne. Situated Learning. New York: Cambridge University Press, 1991. [ Links ]
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Declaração Final e Plano de Ação”. In: CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS, 1993, Viena. [ Links ]
Daniela Negraes Pinheiro Andrade – Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
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