Língua, texto, sujeito e (inter) discurso – BRUNELLI et. al. (B-RED)
BRUNELLI, A. F.; MUSSALIM, F.; FONSECA-SILVA, M. C. (org.). Língua, texto, sujeito e (inter) discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, 226 p. Resenha de: MACHADO, Ida Lucia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.1, São Paulo, Jan./July 2014.
Uma das primeiras coisas que nos chamou atenção neste livro foi sua lista de autores: por que doze professores e pesquisadores de diferentes universidades brasileiras e apenas um professor/pesquisador francês? Mas, apenas a leitura iniciada, a razão desta seleção tornou-se evidente e logo percebemos que a escolha dos autores foi judiciosa. Beth Brait, Raquel Salek Fiad, Carlos Alberto Faraco, Maria Irma Hadler Coudry, Maria da Conceição Fonseca-Silva, José Luiz Fiorin, José Borges Neto, Fernanda Mussalim, Roberto Leiser Baronas, Anna Flora Brunelli, Luciani Ester Tenani, Luciana Salazar Salgado e Dominique Maingueneau não figuram neste livro apenas para mostrar pontos de vista vindos do Brasil ou da França sobre a obra de um intelectual brasileiro: há um algo a mais que ultrapassa qualquer pertencimento a esta ou aquela universidade e que liga todos eles a Sírio Possenti: a voz do apreço.
Gostaríamos, pois, de felicitar as três organizadoras do livro pela ótima ideia que tiveram ao prestar uma homenagem a Sírio Possenti por meio desta Coletânea. Parabenizo-as pelo cuidado e delicadeza que mostraram para compor e reger esse conjunto de vozes vindas de colegas do Professor objeto da homenagem. É fácil notar que os onze capítulos da obra relatam momentos em que os autores se sentiram mais próximos de Possenti, seja por pesquisas realizadas em comum (em algum de seus Projetos), seja pela leitura de um de seus livros, seja por terem em comum a mesma paixão por algum corpus ou o mesmo interesse por certos conceitos discursivos, ou ainda por participar dos mesmos grupos de pesquisa.
Simpática e importante homenagem esta! Já lemos muitos livros em “homenagem a” cujos autores parecem se esquecer de que estão ali para falar do homenageado; já tivemos contato com outros em que o excesso de louvores apagou as virtudes teóricas e o saber difundido pelo homenageado… Existem livros e livros de homenagem. Alguns bons, outros nem tanto.
Ora, Lingua, Texto, Sujeito e (Inter) Discurso, no entanto, não se encaixa em nenhuma das classificações supracitadas. O livro é bom. Os textos são bons. O todo é harmonioso. Há nele um raro equilíbrio entre autores que, ao discorrer sobre o saber científico do intelectual, não escondem sua admiração e simpatia pelo ser humano. Mais que um livro de “homenagem a” o que vemos aqui é uma publicação de excelente conteúdo teórico que celebra a amizade que une um pesquisador a outros. As vozes que no livro – pelo viés teórico – testemunham amizade a Sírio representam também vozes de muitos outros professores/pesquisadores/alunos que conhecem sua produção (ou parte desta) e que também, em um momento ou outro de suas vidas, já tiveram ocasião de comprovar que grandes pesquisadores são pessoas simples e simpáticas, como ele.
Língua, texto, sujeito e (inter) discurso é um livro saboroso, que se lê quase como uma narrativa de vida (teórica) feita por treze locutores; catorze com Sírio, voz que perpassa por todos os capítulos. Aqui a teoria explica a vida, uma se imbrica na outra, com graça e leveza.
Embora cada um dos autores da obra tenha uma opinião, um estilo para falar sobre diferentes temas ligados aos estudos discursivos e às contribuições de Possenti, em todos os capítulos palpita um mesmo objetivo: o de fomentar um diálogo a respeito desse instigante objeto de estudos que é a linguagem e sua prática. Diálogo este que deve ser visto no sentido crítico e positivo da palavra, ou seja: aquele que visa a oferecer ao leitor material para reflexões e trocas construtivas, a exemplo do que é o trabalho do homenageado.
O livro mostra diversas facetas teóricas de Possenti. Quem pouco sabe de sua atuação e produção científica ficará surpreso ao ver as dimensões de seu trabalho e como este pesquisador luta pela efetivação não só dos estudos discursivos, mas também para uma melhor e mais atual aplicação didática destes. Todos sabem que trabalhar com a linguagem é algo complicado; mas poucos sabem que a grande virtude está em descomplicar a complicação. É o que Possenti tem feito e é o que os autores da coletânea mostram em seus escritos.
O livro começa com uma detalhada Apresentação feita pelas organizadoras. Elas não só explicam o “porquê” da homenagem como também apresentam o intelectual, o professor e autor Possenti. Mas, deixemos ao futuro leitor o prazer de descobrir a descrição sintética, porém bem elaborada, de cada autor e de cada capítulo do livro dessa primorosa Apresentação.
Como homenagear alguém cuja produção tem um aspecto tão amplo, como a de Possenti? Embora o livro não tenha imposto temas precisos – o que é bom, pois tal atitude é libertária e sem dúvida estimulou a inspiração dos autores – para melhor resenhá-la, reagrupamos por nossa conta e risco a coletânea em cinco pontos: (i) Estilo, autoria e AD; (ii) Análises e comentários de livros de Possenti; (iii) O cômico e o humor; (iv) Estudos sobre conceitos linguísticos diversos (línguas naturais, ethos, cenografia) e, finalmente (v) O FEsTA. Comentaremos, rapidamente, cada um desses reagrupamentos, seguindo a ordem.
A questão do Estilo, cujo enfoque na análise do discurso atual se torna cada vez mais premente, é abordada por Beth Brait, com sua maestria de sempre. Destacamos, nesse primeiro capítulo, a tão necessária volta ao passado, operada pela autora, para poder melhor abarcar seu tema, no presente. É sempre agradável ver que existem pesquisadoras como Beth Brait que não se esquecem das aquisições de precursores dos estudos discursivos. É essa viagem ao passado por ela efetuada que nos faz lembrar ou nos ensina que a célebre frase o estilo é o homem vem de um francês que viveu no século XVIII, George-Louis Leclerc, conde de Buffon. Para tecer seu tema e sua trama, a autora parte de um enunciado do Presidente dos EUA Barak Obama dirigido ao então Presidente do Brasil, Luiz Ignácio Lula da Silva: Esse é o cara. Os segmentos consagrados a Estilo e análise do discurso e a Estilo e pensamento bakhtiniano ajudarão mais de um pesquisador em estudos discursivos a ampliar ou a fortificar seus pensamentos. Eis um capítulo essencial para todo analista do discurso e um belo modo de se homenagear Possenti.
Ainda no item (i) teremos, no segundo capítulo, as considerações de Raquel Salek Fiad sobre estilo e autoria na aquisição da linguagem escrita. A autora apresenta o diálogo que manteve com Sírio Possenti sobre o tema em pauta. Seu texto tem o mérito de discorrer sobre o assunto, do ponto de vista teórico e, além disso, mostrar também sua aplicabilidade na prática didática: aquela que irá ajudar professores de crianças e jovens a valorizar os escritos de seus alunos e a encorajá-los a escrever cada vez mais, sem receio, deixando-os seguros de sua autoria. Salek Fiad fecha o capítulo com algumas “orientações básicas” (op.cit., p.47) bastante úteis para os professores.
No item (ii), reunimos dois artigos. O capítulo 3, de autoria de Carlos Alberto Faraco, já anuncia em sua epígrafe que o texto do autor foi inspirado no livro de Possenti (1996) intitulado Por que (não) ensinar gramática na escola. Faraco reflete sobre a (não) interação entre linguistas com o ensino do português e os esforços que os primeiros têm empreendido para colaborar com o ensino da língua. A teoria já deveria ter sido colocada na prática, mas Faraco lembra que, apesar de livros tão inovadores como o já citado livro de Possenti, pouca coisa mudou na prática escolar. Este capítulo é escrito com uma emoção apenas contida, que reflete os sentimentos do autor, sua indignação para com aqueles que afirmam erroneamente que linguistas se recusam a dialogar com colegas professores de português. “Talvez minha miopia esteja se acentuando com o passar da idade”, diz Faraco (op.cit., p.51), em um belo uso irônico, pois a miopia é de outros e não sua. Nem de Possenti.
Ainda dentro da questão levantada no ponto (ii) temos o capítulo 8, concebido a quatro mãos, por Fernanda Mussalim e Roberto Leiser Baronas. A proposta dos pesquisadores é ampla: comentar todos os artigos da coletânea Questões para análise do discurso (2009) de Sírio Possenti, catorze ao todo. Trabalho árduo! Porém, em apenas 26 páginas, os dois autores conseguem este feito. O que se vê nessas páginas é um belo desfile de importantes noções caras à análise do discurso, enriquecidas pelos comentários dos autores do capítulo. Para melhor explicar seus procedimentos, Mussalim e Baronas estabelecem um reagrupamento dos assuntos apresentados no livro, operando um recorte eficaz, que enfatiza questões que preocupam o dia a dia do analista do discurso. Sem dúvida de modo inconsciente, o capítulo assume as formas de uma bela construção em mise en abyme: ele forma um pequeno livro dentro de um livro que por sua vez está contido em outro (a coletânea).
No item (iii) de nosso reagrupamento estão os artigos sobre o cômico e o humor, ou seja, os capítulos 4 e 5, escritos, respectivamente, por Maria Irma Hadler Coudry e Maria da Conceição Fonseca-Silva. A primeira mostra que, em um trabalho realizado com Possenti, conseguiu a façanha de, pelo humor, desdramatizar algo tão grave e triste como a fala dos afásicos. O humor aparece assim no que tem de mais belo e humano: ele não zomba do outro. Assim, embora para uns isso possa parecer paradoxal eis um belo caso de transgressividade discursiva em seu sentido mais positivo: o encontro feliz da afasia com o humor.
Já a segunda autora, também profunda conhecedora desse fenômeno linguageiro que é o Humor, mostra que, por trás do riso que causam as tirinhas de Maitena, centradas nos problemas das mulheres de hoje que trabalham, cuidam da casa, do marido e dos filhos e ainda têm que ser bonitas, talentosas, sedutoras, etc. há a parte social, não tão sorridente desta vida, imposta por uma sociedade machista. São assim ressaltados os dois lados do humor: o seu caráter jubilatório e também a sua tragicidade. Tomando por base conceitos discursivos entre os quais a da memória discursiva, bem como o caráter ético-político do humor, Fonseca-Silva reencontra assim o caminho traçado por Possenti que considera o humor na perspectiva da análise do discurso.
No item (iv) reagrupamos capítulos que tratam de temas diversos. Por exemplo, o capítulo 7: nele José Borges Neto discorre sobre e comenta as línguas naturais, tais como o Português, objeto de estudos que sempre interessou a Possenti. Trata-se de um texto que – não sem uma deliciosa ponta de humor irônico – fala de um assunto nosso, de todos os dias: como encaramos o mundo e suas representações através da língua. O olhar lançado pelo autor sobre o assunto é bem atual: para ele as palavras não podem sempre ter um significado fixo, livre do contexto e de seus falantes e das situações de comunicação. E é assim que ele (op.cit., p.140) consegue explicar, de modo claro, questões que nos tocam a todos, ao destacar certos “pecados originais” que ainda hoje vigoram, ou seja, os “equívocos terminológicos”.
O capítulo 6, escrito em homenagem a uma paixão que seu autor – José Luiz Fiorin – mantém em comum com Possenti, é delicioso. Trata-se de um texto concebido sobre um tema do dia, o futebol brasileiro e seus hinos & discurso. A análise realizada pelo autor tomando por base hinos de diversos clubes de futebol, embora seja séria e pertinente, não pode nos impedir o sorriso face à descrição da profusão de elogios, amor, sentimentos pátrios, guerreiros, luta e sangue se preciso for! que difundem tais hinos. O leitor tem a sensação de estar ouvindo ecos dos romanos da Antiguidade, assistindo a lutas romanas no Coliseu… Mas que isso não o iluda: a análise das letras dos hinos é muitíssimo pertinente ao desvelar seus explícitos e implícitos, por meio de um cuidadoso trabalho que examina as artimanhas de um léxico bem empregado, nos hinos em questão, com o fim de suscitar, entre tantas outras coisas, paixões viris e o desejo guerreiro de combate.
No antepenúltimo capítulo tomam a palavra duas pesquisadoras, Anna Flora Brunelli e Luciani Ester Tenani, que irão fornecer explicações bem pontuadas sobre a noção de ethos discursivo. Mas, antes disso, em uma oportuna Introdução, as autoras lembram algo simples, mas que, no entanto, alguns analistas do discurso teimam em esquecer… Para tanto, elas se apoiam em ditos de Possenti. Trata-se do seguinte: no afã da busca da descoberta do sentido, dá-se muitas vezes uma importância exagerada aos fatores extralinguísticos e uma importância menor à materialidade linguística… ora, na busca dos sentidos, uma coisa não vai sem a outra e elas provam isso ao propor uma análise linguística do discurso da Amway. Nesta aparecem os entornos que tais enunciados carregam e isso leva enfim ao ethos da instância analisada.
No penúltimo capítulo, Dominique Maingueneau apresenta três questões que interessam a Possenti: a do discurso político, a da cena de enunciação e a do ethos. Em vez de mostrar uma das muitas propagandas eleitorais dos candidatos da esquerda ou da direita francesa (eleições presidenciais de 2007), Maingueneau inova: o leitor vai conhecer José Bové, candidato ativista-altermundialista. O texto analisado é a profissão de fé do candidato francês. Para melhor explicar seus ditos, o autor se baseia em conceitos discursivos que lhe são caros: a cena da enunciação, a questão da identidade & espaço, as propriedades do enunciador… Neste último item é proposto um quadro bem instigante que mostra o “termo modificador” que caracteriza o ethos que Bové vai construir enquanto candidato. O autor lembra que o grande desafio de um político é fazer com que o eleitor entre no mundo por ele anunciado e construído pela sua enunciação.
O livro se encerra com um capítulo que fizemos entrar em nossa categoria (v). O leitor poderá estranhar nossa divisão em grupos, pois o último tem apenas um capítulo a representá-lo! Ora, se concedemos ao capítulo 11 um lugar privilegiado é porque ele trata da criação de um Centro de estudos, coordenado por Possenti, que reúne diversos pesquisadores, Centro este cujo nome – FEsTA – nós parece ser um clin d’oeil da relação que este pesquisador entretém com o trabalho acadêmico que, em meio a tantos problemas e dores de cabeça, proporciona também momentos de júbilo. Segundo o relato da autora Luciana Salazar Salgado, FEsTA é a sigla do Centro de Pesquisa Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise. É um núcleo que reúne ex-alunos, alunos e colegas de Possenti. A autora mostra alguns dos ecos do trabalho deste Centro; eis uma bela maneira de se fechar a Coletânea.
Como já dissemos, o livro é excelente. No entanto, sentimos a ausência de um fio condutor da leitura em sua capa. O título ali apresentado é amplo e, ao ler o livro, entendemos que ele buscou retraçar os caminhos percorridos por Possenti. Mas, o fato de não se mencionar – talvez como subtítulo, nesta capa, que a Coletânea presta uma homenagem a Sírio Possenti, deixou algo vago no ar. Evidentemente, trata-se apenas de uma observação que não tira o brilho nem a utilidade da obra.
Ida Lucia Machado – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; idaluz@hotmail.fr.