Junho de 2015, programas televisivos e notícias na internet trazem as últimas manchetes policiais do dia: polícia “desfila” em carro aberto com suspeitos de matar PM na Paraíba. Nas imagens, a população local se aglomera neste “ato público” de punição aos “delinquentes”. A impressão é que todos se sentem empoderados pela “justiça”. Numa das cenas, um dos participantes, após esboçar uma careta, desfere um “cascudo” em um dos indivíduos já detido e, portanto, sobre a tutela da polícia – e do Estado. Talvez esses “delinquentes” jamais seriam devidamente processados, assim a “justiça popular” precisaria ser minimamente garantida, pelo menos constrangendo o sujeito.
Casos semelhantes, cada vez mais comuns em nosso país, embasaram o estudo do sociólogo José de Souza Martins em sua mais recente obra “Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil” (Editora Contexto, 2015), na qual o autor se debruça sobre relatos de 2028 casos de linchamentos, comprovados ou tentados, nos últimos 60 anos, além do aprofundamento de dois estudos de caso. O livro é dividido em três partes: na primeira oferece uma análise sociológica quantitativa e qualitativa dos dados levantados com riqueza de detalhes; na segunda enfoca a relação dos linchamentos com a simbologia da morte; e na terceira oferece uma visão crítica de sua fonte de dados.
Martins aborda o linchamento sob a ótica da violência coletiva, decifrando o emaranhado social que possibilita essa prática que remonta aos tempos arcaicos de inflição da dor no corpo do “ser punido”, da forma mais pública possível. Sua proposta, a nosso ver, mescla a análise foucaultiana do suplício e das antigas formas de punição (FOUCAULT, 2002) com a simbologia da punição corporal tratada por Caldeira (2000) em sua definição de “corpo incircunscrito”.
A obra denuncia a existência de uma sociedade que, embora moderna e globalizada, manifesta-se frequentemente pela via da intolerância e da criação de um ciclo de utilização de violência para fins de punição, algo que Adorno (1996) já indicava na década de 1990 como um movimento mundial de “obsessão punitiva crescente”, argumentando que o problema da violência na contemporaneidade é que tudo converge para um único propósito e anseio popular, qual seja, o de punir cada vez mais.
Segundo o autor, trata-se de um tipo de justiçamento com base no direito de vingança e numa confusão de conceitos e sentimentos, ou seja, “trata-se de impor ao criminoso expiação e suplícios reais ou, no caso do que já está morto, expiação e suplício simbólicos, como é próprio dos ritos de vingança e sacrifício. E, além disso, eliminá-lo simbolicamente como pessoa” (MARTINS, 2015, p. 81).
O aspecto quantitativo explorado pela pesquisa contribuiu para delimitar o público mais frequente dos linchadores, a identificação dos próprios grupos de linchadores, suas motivações e justificações diversas, além de viabilizar uma compreensão do fenômeno que retrata mais que índices de violência. Desvendou, ainda, os métodos, práticas, rituais e o caráter simbólico dos atos que caracterizam os linchamentos no Brasil.
No próprio ato de linchar, no modo como se dão o ajuntamento dos linchadores e a formação da multidão, na sucessão dos momentos fragmentários a partir do instante em que se define um quadro de linchamento iminente até sua consumação, nos instrumentos e gestos empregados nos justiçamentos. Enfim, o instante do linchamento é em tudo igual nos diferentes tipos de grupos de ação e é em tudo igual ao modelo de comportamento irracional da massa (MARTINS, 2015, p. 78).
Em termos do comportamento dos linchadores, por um lado verifica-se, no ato de linchar, o imediato e súbito da multidão e, por outro, uma estável sociabilidade da vizinhança e do bairro, típica da comunidade. Em todos, um instantâneo e provisório sentimento de pertencimento ao grupo, criando laços comunitários breves e transitórios que retratam uma descrença nas instituições oficiais de controle social.
Relevante também o fato de os linchamentos se constituírem num fenômeno caracteristicamente urbano, ainda que sua prática negue esse espaço, evidenciando sobrevivências do mundo pré-moderno no inconsciente coletivo e nas estruturas sociais profundas. Nessa linha de raciocínio, é salutar a interpretação de Martins de que os justiçamentos ocorrem diante de uma “insuficiente constituição do urbano”. Isso porque os dados evidenciam uma “predominante ocorrência nos bairros de periferia, lugares de migrantes e populações adventícias ainda sem tradição e sem raízes nas localidades de adoção. A cidade, cada vez mais, recebe mas não acolhe” (MARTINS, 2015, p. 86).
Ao se propor estudar essa arcaica forma de punição, é inevitável que Martins traga à memória nossa raiz cultural, que de certa forma interfere nas práticas “modernas”. Afirma, nesse sentido, que as “diversas características dos linchamentos atuais são heranças claras dos procedimentos de tortura e punição que foram característicos da Inquisição, além da herança colonial de um período em que vigeu as Ordenações Filipinas” (MARTINS, 2015, p. 94).
Vale ainda ressaltar a interferência da força punitiva herdada da própria escravidão no Brasil, que privilegia a punição privada do escravo, ao contrário do sentido contemporâneo de justiça. Após elaborar esse traçado histórico, o autor trata de averiguar sua inter-relação com o presente, afirmando que a punição com enfoque na vingança, como “ato de justiça popular antijurídico”, encontra solo fértil na descrença das atuais instituições sociais e dos institutos jurídicos, o que define como ceticismo, ou seja, “essa fragilidade generalizada das instituições cria as condições sociais favoráveis ao revigoramento de formas arcaicas de direito, cujas evidências podem ser observadas em vários campos da realidade” (MARTINS, 2015, p. 93).
Cria-se, assim, uma “cultura da justiça popular”, que utiliza o linchado como bode expiatório social (p. 108), que recebe a expectativa e a frustração dos que não se sentem respaldados pela justiça formal do Estado. Esse viés contextual é ricamente explorado por Martins, que em diversos trechos do livro sugere a existência de um estado social anômico, com novos elos comunitários formados em prol da punição, uma visão que sugere, em certo sentido, a referência à teoria durkheimiana da anomia, embora o próprio autor alerte para a insuficiência dessa vertente explicativa:
É o que reforça a hipótese central desta pesquisa, a de que as estruturas sociais profundas e o inconsciente coletivo que abrigam e que nelas têm sua referência tornam-se dominantes e ativas nos momentos de anomia, como esses, e nas manifestações de violência coletiva. Os linchadores seguem uma regra que não conseguem explicar, mas que é regra viva e não regra morta, referida a uma estrutura igualmente viva, porém submersa na dominância de regras atuais. Constatação que, neste caso, contraria as formulações de Durkheim relativas tanto aos estados de anomia quanto aos fatos patológicos, o que sugere que a estrutura social de referência de condutas e relacionamentos é uma estrutura “em camadas”, sem dúvida de épocas históricas descontínuas, de datas historicamente definidas (MARTINS, 2015, p. 84).
Nesse sentido, sua metodologia proporcionou um leque de levantamentos capazes de averiguar a motivação e os rituais presentes nos atos de violência coletiva, criando um valioso banco de dados. Com ele, identificou, por exemplo, que o ímpeto de linchamento pode não estar adstrito ao momento em que ocorre, mas pode perdurar pelo mesmo prazo em que existir o sentimento de ódio por alguém, partindo de determinada pessoa ou grupo, indicando uma temporalidade para além do instante do ato punitivo, e que varia de acordo com o tipo de crime que pretende rechaçar.
Ainda sob o aspecto metodológico, deve se ressaltar suas reflexões acerca da trajetória na obtenção dos dados, o que contribui para o indicativo de uma sistemática na abordagem dos linchamentos e outras formas de violência coletiva. Tendo baseado sua pesquisa no que denomina de “reciclagem sociológica das notícias” (p. 173), argumenta que essa “foi a fonte escolhida porque não há outra fonte de informação regular e consistente sobre o tema” (p. 174). Tais questões fazem com que a terceira parte do livro revele-se de fundamental importância, sobretudo para aqueles que desejam trilhar semelhante perspectiva de pesquisa. Isso porque o amplo período e o detalhamento dos passos galgados até o presente para a construção do seu trabalho contribuem para uma visão mais apurada no tratamento de semelhantes fontes em projetos de pesquisa futuros, elencando até mesmo as possíveis dificuldades enfrentadas e a técnica mais apropriada, sem, contudo, estabelecer um tipo ideal.
Diversas e ricas são as análises sociológicas que os dados coletados por Martins possibilitam, muitas delas para além da compreensão da violência punitiva caracterizada pelos linchamentos. Exemplo disso é a sua suposição relacionada aos jovens:
Minha análise se baseia na hipótese de que não só o ceticismo explica os linchamentos, mas ele se constitui numa dimensão mais intensa ou menos intensa dessa modalidade de violência coletiva, dependendo de um conjunto de fatores envolvidos na ocorrência. Com base nela, verifiquei a corrente suposição de senso comum no Brasil de que vem aumentando a indisposição e mesmo o preconceito contra os jovens. Há no país um difuso ceticismo quanto à possibilidade de que os jovens de determinadas condições sociais estejam no “rumo certo”, de se tornarem adultos válidos como gostariam aqueles setores da sociedade mais identificados com a precedência da ordem e do trabalho. […] Com isso, a sociedade ficou sem referências alicerçadas na tradição para aceitar e compreender os jovens num marco de referência que para muitos parece mais opção pela ociosidade do que preparação para a vida (MARTINS, 2015, p. 97).
Outra questão de fundo abordada no texto refere-se ao insistente preconceito racial no País, uma vez que “mesmo crimes graves de brancos podem ser julgados com relativa brandura em comparação ao rigor que os linchadores esperam pelo mesmo crime praticado por um negro” (p. 98).
Todas essas perspectivas demonstram a amplitude, as interconexões e a complexidade das questões relacionadas às formas contemporâneas de violência coletiva no Brasil, dentre elas os linchamentos. Seu trabalho é um pontapé inicial e uma provocação intelectual aos que desejam continuar nessa linha de pesquisa, contribuindo substancialmente nesse sentido. Por isso é uma tarefa hercúlea analisar, em poucas páginas e sem a profundidade necessária, todas as suas contribuições nesse livro que tenta desvendar essa nova reorganização social e as dinâmicas pela qual a sociedade brasileira vem passando.
Estando o Brasil entre os países que mais lincham no mundo, a análise de tal forma punitiva certamente esclarece a existência de um sentido para além da sua definição, bem como das razões que tornam aceitável esse tipo de barbárie. Talvez possibilite ainda refletir sobre as dificuldades inerentes aos recortes jornalísticos incapazes de abordar o tema de forma ampla e responsável. Evidencia, assim, a persistência de uma sociedade conservadora e violenta, incapaz de se desligar de suas raízes culturais e de se enxergar criticamente, enfrentando suas mazelas e reestruturando seus valores e crenças arcaicos. Nas palavras de Martins, uma sociedade que “não é moderna, é apenas caricatura do moderno” (p. 130).
Referências
ADORNO, Sérgio. A Gestão Urbana do Medo e da Insegurança: violência, crime e justiça penal na sociedade brasileira contemporânea. Tese (Livre Docente em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.
MARTINS. José de Souza. Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2015.
Resenhistas
Rosiane da Cruz de Freitas – Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFGD. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal – LFG. Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá – Campo Grande / MS.
André Luiz Faisting – Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor Associado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), onde exerce atualmente a função de Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS).
Referências desta Resenha
MARTINS. José de Souza. Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015. Resenha de: FREITAS, Rosiane da Cruz de; FAISTING, André Luiz. Fronteiras: Revista de História. Dourados, v.17, n.29, p.219-224, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]
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