Libertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil | Ana Gabriea Mota e Kauan William dos Santos

Desde seu início, o veganismo adotou uma ideologia abolicionista, revolucionária e interseccional. Porém, a lógica do capitalismo fez com ele o que sempre fez com qualquer movimento social: se apropriou, retirou sua base revolucionária, elitizou através dos altos preços de produtos veganos industrializados (criados pela própria indústria de alimentos com origem animal), e o vendeu como uma dieta sofisticada que só pode ser comprada por uma classe social com alto poder aquisitivo, restando para as classes menos abastadas os resíduos de alimentos de origem animal danosos à saúde dos indivíduos e à do planeta.

Não há como falar de libertação animal sem falar também de libertação humana. Não há como falar em antiespecismo sem falar de feminismo, de lutas por direito a terra, de inacessibilidade às classes marginalizadas e do movimento negro. É isso que o livro organizado por Ana Gabriela Mota e Kauan William dos Santos se propõe a (re)colocar em discussão. Através de oito textos escritos por diversos autores, representantes das causas acima citadas, o livro faz as conexões entre especismo e feminismo, racismo e exclusão social e de terras, conexões essas que muitas vezes passam desapercebidas ao olhar menos atento de quem vê por fora o movimento vegano.

No capítulo de introdução, os organizadores do livro já trazem essa perspectiva à tona. Definindo especismo e descrevendo brevemente a sua trajetória histórica, eles afirmam o carácter interseccional do movimento, que, apesar de sua apropriação pelo capital, ainda resiste e cresce cada vez mais como uma proposta que leva em consideração não apenas a luta de libertação animal, mas também, com mesma importância, a luta pela libertação humana.

A primeira parte do livro trata de política e veganismo classista. O capítulo que abre essa parte é um texto de Kiune Ribeiro sobre a luta por terras, mais precisamente no caso do MST, e sobre a libertação de animais humanos e não humanos. Vivemos hoje dentro de uma lógica que vê a terra como produto, como possibilidade de lucro. Essa lógica não se atenta ao uso sustentável dos meios do planeta nem à visão da terra como elemento fundamental da cultura dos povos e da relação de harmonia entre ela e os animais que a habitam. Essa lógica é a mesma que criou os latifúndios brasileiros, que são territórios de disputa por aqueles que se viram excluídos desse direito tão fundamental, que é o direito à terra. O caso do MST, citado no texto, estabelece uma ligação direta com a causa animal não humana. Ainda que essas comunidades não tenham uma dieta de todo vegetal, não é difícil notar em qual dessas sociedades, a que estabelece uma relação harmoniosa com a terra ou a que a explora desenfreadamente, a libertação animal se daria mais facilmente.

O segundo texto, de Kauan William dos Santos, trata da relação entre o anarquismo e o antiespecismo, usando como exemplo o caso do resgaste dos cães Beagles em São Paulo em 2013. O movimento anarquista sempre contou ao longo de sua trajetória com membros que pensavam sobre a causa animal. Um exemplo é Éliseé Reclus, militante da Primeira Internacional dos Trabalhadores, que estendia suas propostas abolicionistas também aos animais não humanos, estabelecendo relação entre a luta pela libertação animal e as lutas anticoloniais e anticapitalistas. No Brasil, podemos citar José Oiticica e Maria Lacerda de Moura. Essa última uma conexão do vegetarianismo fazia não só com o anarquismo como também com o feminismo. O exemplo do Band of Mercy, criado em 1973, na Inglaterra e que foi o embrião da Animal Liberation Front (ALF), criada em 1976, é trazido à tona para estabelecimento de um paralelo ao episódio do resgate dos cães que sofriam maus-tratos no Instituto Royal. Essas organizações, assim como foi o caso do fato ocorrido em São Paulo, tem um caráter insurrecional e de ação direta. A ALF tem como um dos objetivos principais a libertação de animais de centros de abuso, usando para isso táticas de violência contra objetos e expropriações. Lutas e ações como essas só seriam possíveis com essas características, já que os fins conseguidos jamais poderiam ter sido alcançados jogando pelas regras do próprio inimigo.

O próximo texto, escrito por membros do grupo Vegano Periférico, aborda o caráter popular do veganismo. A luta pela libertação animal, como já dito anteriormente, foi apropriada pelo capitalismo, que a fez parecer um simples modo de vida, limitado às camadas médias e sem propósito de caráter revolucionário e político. Passando essa imagem do veganismo, o capital consegue o afastar da classe trabalhadora, que continua tendo seu corpo dominado através de sua alimentação, e ainda lucrar com as classes mais abastadas, que compram sem pensar seus produtos industrializados a preços inflacionados. Muitas pessoas e grupos buscam mudar essa imagem que alguns tem do veganismo. Um desses grupos é o Vegano Periférico, que, através da internet, tenta mostrar que “não importa onde você mora. Importa como você pensa”. E que é possível pessoas da classe trabalhadora que vivem nas periferias adotar uma dieta vegana e lutar pela libertação de animais não humanos e humanos. O texto conta com o relato da transição do modo de vidas dos irmãos que compõe o grupo, que eram funcionários de um McDonald’s e terminaram como militantes veganos. O capítulo é finalizado ressaltando a importância da comunicação na transmissão dos ideais antiespecistas para um tipo de público específico e com uma crítica aos eventos elitizados, que não só não conseguem se comunicar com esse público, como também o afasta da discussão.

O último texto da primeira parte, escrito pelos organizadores do livro, trata ainda dessa apropriação do veganismo pelo mercado. Os autores iniciam retomando o caráter político e abolicionista do veganismo desde a criação da Vegan Society, em 1944, quando surgiu o termo vegan. Porém, essas ideias veganas abolicionistas remontam desde o fim do século XIX. Essa apropriação do mercado envolve, através de grupos que se chamam “estratégicos”, a propagação de produtos “veganos” de grandes empresas que testam em animais e que exploram o trabalho dos seres humanos, que defendem a relação de “bem-estar” dos animais nos abatedouros e que acham possível a libertação animal sem a libertação humana. A verdadeira estratégia para uma luta abolicionista animal é a fusão dessa luta com outras que defendem a emancipação humana de formas de opressão, como o movimento feminista, o movimento negro, a classe trabalhadora e o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), já que ambos, o movimento por terras e o antiespecista, possuem um inimigo em comum: os latifundiários. A causa pela libertação animal não pode lutar nessa guerra sozinha. É necessário se aliar àqueles que também são dominados por esse sistema.

A segunda parte do livro diz respeito à intersecção entre a luta pela libertação animal e o feminismo. O primeiro texto dessa parte é uma entrevista do Coletivo Feminivegan à Agencia de Notícias de Direitos Animais (ANDA). O segundo texto, escrito por Ana Mota, participante do Feminivegan, chama a atenção para a necessidade da intersecção entre as lutas de gênero e as lutas pela libertação animal e humana. O texto mostra a relação entre a opressão, dominação e marginalização das mulheres, da natureza e dos animais e, portanto, o paralelo entre o especismo e o machismo. Principalmente a partir do século XVIII, com o avanço do capitalismo, os corpos não humanos passaram a ser explorados de forma sistemática, sendo controlados desde seu nascimento, através de inseminação artificial, até o momento de seu assassinato. O estupro do corpo da fêmea é naturalizado pelo mesmo princípio que o machismo naturaliza a objetificação do corpo feminino. Além disso, no setor frigorífico brasileiro, as mulheres, que compõe 41% da força de trabalho, são as que mais sofrem assédio moral, controle de seus corpos, acidentes físicos, transtornos psicológicos e jornadas de trabalho exaustivas. Finalizando o texto, a autora cita Angela Davis, que propõe a reflexão entre a relação da alimentação a partir de produtos sem origem animal e a consciência de classe.

A última parte do livro trata de questões raciais e de segregação social. O primeiro texto, escrito pela jornalista Márcia Cristina do Nascimento, integrante do Movimento AfroVegano, expõe que antes da colonização, a base alimentar do povo africano era vegetariana. As pessoas tinham autonomia alimentar e eram saudáveis. Até o momento do encontro com os europeus. A partir de então, os africanos raptados e escravizados passaram a depender de uma lógica exploratória que os controlava e oprimia de várias maneiras, inclusive pela alimentação. Muitas doenças que acometem a população negra até os dias atuais surgiram nesse período. A proposta defendida pela autora é a da adoção, pela população negra e periférica, de uma dieta à base de vegetais, conquistando novamente, assim, sua independência alimentar e dando um importante passo para sua emancipação em relação à lógica capitalista que escraviza seus corpos até os dias de hoje. O texto que encerra o livro é o posicionamento do Movimento Afro Vegano a respeito do Recurso Extraordinário (RE) 494601, que permite o sacrifício de animais em ritos religiosos. Obviamente, o movimento é contrário a qualquer tipo de violência contra animais. Porém, nesse caso, a discussão é mais profunda. O texto traz à tona a incoerência em criminalizar o sacrifício de animais em religiões de matriz africana, mas normalizar o assassinato em massa de animais em uma celebração de Natal ou Páscoa, por exemplo. Defende que a desconstrução dessa cultura que usa da violência com os animais deve ser feita através de conversa e discussão. Qualquer tentativa forçada de resolver o problema resultaria na aversão. “Por isso não arrancamos o bacalhau de Páscoa da mão dos nossos parentes no meio do almoço”. Uma atitude que condena imediatamente a violência animal em uma tradição tipicamente negra, mas que fecha os olhos para uma violência praticada por uma tradição europeia, é preconceituosa, discriminatória e racista. A posição do movimento, portanto, não é a favor da RE, mas sim a defesa da discussão de um assunto complexo que não tem apenas sim ou não como resposta.

É dessa forma, ressaltando a complexidade da discussão, que o livro é encerrado. A luta pela libertação de animais não humanos é cercada por diversos fatores que nos levam a refletir e a repensar vários aspectos de nossa vida. O veganismo é não apenas uma dieta ou um modo de vida. É política. É luta pela abolição de todo e qualquer modo de dominação. O antiespecismo deve ser parte integrante de uma guerra que envolve diversas classes e grupos sociais oprimidos e não pode ser deixado de lado, como menos importante ou como um assunto a se tratar num futuro longínquo. Se queremos construir um mundo justo e igualitário, não podemos fechar os olhos para aqueles indivíduos que não têm voz para lutar ao nosso lado, a não ser os choros, lamúrias e gritos de dor esquecidos no fundo de um abatedouro.


Resenhista

Vitor Hugo de Araujo Rosa – Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). Pós-graduando em Filosofia (UNIPAM). Professor de História da rede básica de ensino do estado de Minas Gerais.


Referências desta Resenha

MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan William dos (Orgs.). Libertação animal, libertação humana: veganismo, política e conexões no Brasil. Juiz de Fora (MG): Editora Garcia, 2020. Resenha de: ROSA, Vitor Hugo de Araujo. Pergaminho. Patos de Minas, n.11, p.135-138, dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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