Repensar a memória dos acontecimentos marcantes da História constitui um exercício de rever os “lugares”, onde ela efetivamente se materializou, por meio de indivíduos, processos e práticas que se compuseram como seus símbolos e representações mais marcantes.7 Portanto, todas as datas que definem grandes comemorações devem ser pensadas não apenas como a celebração de uma efeméride, mas como a possibilidade de um novo desafio para a sua revisitação à luz dos estudos historiográficos do presente, possibilitando o surgimento de novas abordagens e perspectivas de análise.
Nesse sentido, insere-se o dossiê Liberalismo, constitucionalismo e Parlamento: a revolução de 1820, trazendo à tona temas que possibilitem analisar um período que foi fundamental para a entrada do Império português na política moderna.8 Justifica-se tal afirmativa porque foi naquele contexto da revolução liberal, iniciada no Porto em agosto de 1820,, continuada em Lisboa em setembro e propagada no Brasil em 1821, que se produziu uma grande mudança política, conhecida pela historiografia ibero-americana como Triênio Liberal (1820-1823)9 . Apesar de não ser uma conjuntura plenamente vitoriosa, ela possibilitou o surgimento de novas linguagens, novos vocabulários e imaginários que anunciavam um tempo de rutura e de aceleração10, indicando a proposta de uma ordem liberal e constitucional, legitimada na vontade e na soberania da nação e dos povos e, não mais, na “figura simbólica do rei” ou em uma ordem imemorial sancionada por Deus11. Os atores históricos, que vivenciavam aquele momento, preocupavam-se com um imaginário político e social que não se ancorava nas experiências e nos ensinamentos do passado, que davam sentido ao seu mundo, mas vislumbravam a possibilidade de uma perfectibilidade do homem e de uma crença no progresso.
Esses anos da vida política adquiriram particularidades e relevância, em que novas chaves de leitura afloraram para explicar novidades das quais se revestia a vida política por meio de práticas e símbolos que se traduziam nas ruas, na imprensa, nos panfletos políticos, nas associações patrióticas, nas músicas, nos teatros, em suma, na intervenção do público no espaço privado, exclusivo até então, da política de Corte. As personagens daquela época descobriam novos “lugares” em que podiam se expressar, atuar, conquistar seus objetivos e sonhos.
A Revolução de 1820, ao ser incluída nos anos do Triênio Liberal, possibilita a ampliação de análise de um grande movimento revolucionário que varria a Europa de leste a oeste e ainda a América do Sul, com repercussões até em Goa12. Assistia-se aos primeiros abalos no edifício do Antigo Regime, inaugurando-se o nascimento de um futuro, que permitisse um outro relacionamento do indivíduo e da sociedade com o poder da Coroa. Era um processo, voltado não apenas para as fronteiras do Império português, mas que se constituía em um diálogo que encontrou no Atlântico o ponto de união e de suas ideias e ações13.
Considerando essas premissas, a proposta do dossiê, aqui apresentado, é procurar trazer à tona estudos recentes na historiografia luso-brasileira que analisem, por diferentes perspectivas, as tradicionais análises do movimento liberal, iniciado em 1820 em Portugal, mas que encontrou ecos no Reino do Brasil no ano seguinte. Estudos que demonstram existir novas experiências políticas no mundo luso- -brasileiro a partir dessa explosão de propostas inéditas que traziam os ideais de liberalismo e constitucionalismo como uma realidade a ser vivenciada ao longo dos primeiros anos do Oitocentos.
Nessa abordagem, o estudo do político, como já afirmou Pierre Rosanvallon, é compreendido em seu sentido mais amplo, como o lugar de ação de toda a sociedade e não apenas dos espaços destinados tradicionalmente à política, como a Corte e o círculo restrito do soberano14.
O presente dossiê reúne cinco artigos de historiadores de ambos os lados do Atlântico, buscando fornecer uma dimensão mais global dos acontecimentos inéditos de 1820 e esmiuçando as perspectivas próprias de cada espaço político que, em síntese, forjava as aspirações de um mundo inédito que se expressava por novas linguagens e práticas políticas.
O primeiro texto, de autoria de José Luís Cardoso, propõe uma leitura, a partir de fontes impressas e de novas perspectivas de abordagem, da Revolução Liberal de 1820. Demonstrando os motivos de sua eclosão na cidade do Porto, o autor recorre minuciosamente aos inúmeros manifestos, proclamações e ofícios que vieram à luz desde agosto de 1820 até setembro, quando do êxito do movimento na cidade de Lisboa, sede do governo da Regência. Apesar de seu caráter inovador e de sua proposta de quebrar os grilhões do despotismo, o autor justifica a aparente contradição permanente na Revolução de, por um lado, pôr fim às estruturas políticas do Antigo Regime e, por outro, não conseguir alterar as estruturas econômicas e sociais daquela política antiga. Sua contribuição fundamental é abandonar esquemas tradicionais da historiografia de uma revolução burguesa ou colonizadora a fim de demonstrar que este processo bruscamente interrompido em 1823, pela contrarrevolução absolutista, não se completou justamente por seus avanços no plano constitucional, que inviabilizaram o pleno êxito em outras esferas de intervenção, especialmente, no campo econômico e social ao longo do triênio vintista. A “revolução inacabada”, na expressão do autor, trouxe, porém, expectativas que acabaram por consolidar as modernas instituições do Estado liberal, anos mais tarde, com a Carta de 1826 e a legislação revolucionária do início dos anos 30 do século XIX.
Em seguida, a ação política e a inserção social das sociedades patrióticas de Portugal, durante o triênio liberal, são abordadas por Ana Cristina Araújo e Diana Tavares da Silva. Buscando uma comparação entre as sociedades patrióticas de Portugal com as da Espanha, abordam também os pontos que estas instituições tiveram em comum com a maçonaria, importante instituição de sociabilidade daquela época. Demonstram ainda seu papel na propagação das ideias e práticas do liberalismo e constitucionalismo e destacam a pedagogia cívica que tais instituições desenvolveram junto a diversas camadas sociais, em especial, entre os cidadãos anônimos, seja pela realização de assembleias públicas ou pela imprensa periódica. Nesse sentido, tais sociedades transformaram-se em lugares que se impuseram como novos marcos simbólicos na apreensão das memórias e dos rituais daquele tempo de regeneração da vida política.
Por outra perspectiva, encontra-se o artigo de Marcelo Cheche Galves que aborda a Revolução de 1820 no lado de cá do Atlântico. Como fontes, o autor analisa a profusão de impressos sobre a Revolução de 1820, em especial, aqueles que revelavam horizontes de expectativas distintos sobre o futuro do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tanto em seu todo quanto em suas distintas partes que o compunha. Marcelo Cheche Galves pretende dar um novo significado aos desdobramentos que o movimento liberal aqui conheceu, chamando a atenção para as discrepâncias de sua assimilação nas províncias do Norte, mais especificamente, no Maranhão. Conhecida região que aderiu ao movimento liberal a às Cortes de Lisboa, pelo período do triênio liberal, em nítida oposição ao governo do príncipe regente D. Pedro no Rio de Janeiro, o Maranhão possui lugar fundamental para se entender o processo de separação do Brasil de Portugal. Como principal registro dessas “expectativas impressas”, o autor escolheu o trabalho de João Antonio Garcia de Abranches – português nascido em 1769, mas radicado no Maranhão desde o final do século XVIII – Espelho critico-politico da provincia do Maranhão, demonstrando como este foi representativo das demandas de proprietários da província do Maranhão, suscitadas pela Revolução Liberal. Inclusive preocupando-se com a questão agrária enquanto suas particularidades na porção americana do Império português no que tange à escravidão. Para finalizar, Marcelo Cheche analisa como o impresso selecionado foi ressignificado em 1922, pelo neto do autor – Dunshee de Abranches. Este procurou incorporar seu antepassado aos grandes nomes saudados por ocasião do centenário da Independência do Brasil. Objetivo difícil e trabalhoso, uma vez que aquele era uma personagem acusada por uma historiografia de orientação nacional de ser português, em sentido político, tendo sido, inclusive, deportado, em 1825. Numa perspectiva mais ampla, o historiador buscou demonstrar que tal obra estampada no calor da revolução liberal de 1820, transformava-se 100 anos mais tarde em mais um escrito que contribui para um imaginário historiográfico que fazia a Revolução de 1820, por seu caráter recolonizador, um antecedente da Independência do Brasil. Eram as contradições inerentes da memória histórica que se fazia do Maranhão, província que resistira ao projeto comandado pelo Rio de Janeiro e que só foi incorporada ao Império do Brasil em julho de 1823. O Maranhão transformava-se em um novo espaço que se unia à entidade política, ora denominada Brasil, por meio do centenário do fato que se consagrou por uma historiografia nacionalista como um dos mitos fundadores da nação.
Os dois últimos artigos revelam outras facetas a respeito do movimento de 1820 nas duas margens do Atlântico. Miguel Dantas da Cruz revisita a ideia, aceita pela historiografia, de que um dos desdobramentos da vida política da Revolução de 1820 foi o processo de parlamentarização. Para o autor, o movimento peticionário sem precedentes na história do país, ocorrido entre 1820 e 1823, desempenhou papel importante na a conversão das Cortes como principal fórum político da época. A cultura peticionária, tradicional da monarquia portuguesa, ganha novos contornos e significados, mas, principalmente, um novo interlocutor privilegiado. Embora outras instituições, como tribunais e conselhos régios, continuassem a receber petições e requerimentos, muitas pessoas preferiram encaminhar suas demandas às novas Cortes, espaço no qual a população depositava grandes expectativas. Ao comparar as petições do triênio liberal àquelas formatadas no arcabouço do Antigo Regime, o autor destaca como uma das novidades do movimento peticionário da década de 1820 sua contribuição no debate público. Se por um lado os debates políticos que ganhavam espaço na arena pública serviam como repertório para o conteúdo das petições, por outro, o processo também podia ser inverso, isto é, as petições contribuírem para promover o debate em praça pública. Outra inovação do movimento peticionário do triênio liberal configurou-se na adoção generalizada de uma linguagem de direitos civis e político. A retórica fundamentada nos princípios de igualdade civil e liberdade eram amplamente utilizados pelos peticionários, mesmo que empregados na defesa de interesses e grupos tradicionais. Com efeito, o autor argumenta que uma das respostas para o súbito protagonismo parlamentar das novas Cortes na vida política portuguesa pode residir no enquadramento legal da nova instituição, em especial no regimento interno adotado pelas Cortes, que não introduzia grandes obstáculos na interação com a população. Segundo o autor, outras soluções regulatórias não aprovadas na época, como a proposta por Joaquim José da Costa Macedo, teriam possivelmente repercutido negativamente nos graus de interação do Soberano Congresso com a população e até mesmo impactado no protagonismo político da nova instituição, isto é, na parlamentarização da vida política portuguesa.
O último texto, escrito por Flávio Gomes Cabral, desloca seu espaço para outra província que apresenta suas peculiaridades ao longo do processo de constitucionalização e separação do Brasil de Portugal – Pernambuco. Analisando os efeitos da Revolução de 1820, o autor explora um cenário político de novidades ocorridas entre as pessoas que foram criadas em uma sociedade do Antigo Regime. Para além destas, observa os acirramentos das questões vivenciadas no contexto dos anos de 1821 e 1822. Em um primeiro momento, a proposta liberal desejava afastar o representante do despotismo – o general Luís do Rego Barreto, governante da província. Já em 1822, os embates deram-se entre a Junta eleita, graças às determinações das Cortes de Lisboa, e os dois principais centros de poderes: o Rio de Janeiro, sede da regência, e Lisboa, sede das Cortes. Nos dois momentos, a proposta sublinha as manifestações de rua, onde não apenas as elites tomaram parte, mas também os populares e escravizados. O trabalho demostra, assim, que “as massas” não estavam totalmente excluídas desse cenário político iniciado pelos ecos da Revolução de 1820 no Brasil.
Pode-se afirmar, por conseguinte, que os trabalhos apresentados propõem leituras inovadoras e distintas da Revolução de 1820 e suas reverberações nos dois lados do Atlântico. Além disso, analisam a capacidade de mobilização política propiciada por este movimento, demonstrando um novo grau de politização de amplos setores da sociedade do Império português, bem como os novos “horizontes de expectativa”15 que se anunciavam, por meio da reinvenção de um inédito vocabulário político, na constituição de uma monarquia constitucional e representativa.
Notas
7 Pierre Nora (dir.). Les lieux de mémoire. Tomo I: La Repúblique. Paris: Gallimard, 1984.
8 François-Xavier Guerra, Annick Lempèriére (coords.). Los espacios públicos en Iberoamérica. Ambigüedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1998. p. 109-139.
9 Para uma análise do triênio Liberal no mundo hispânico, ver RÚJULA, Pedro e FRASQUET, Ivana (coords.). El Trienio Liberal (1820-1823). Una mirada politica. Granada: Colmares, 2020.
10 Para o conceito de aceleração do tempo, ver KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo. Estudos Sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2014.
11 FURET, François; OZOUF, Jaques. Trois siècles de métissage culturel. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, Paris, v. 32, nº 3, mai-jun. 1977, p. 488-502.
12 CARDOSO José Luís. A Revolução Liberal de 1820 [The Liberal Revolution of 1820]. Lisboa: Clube do Colecionador dos Correios, 2019. ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993.
13 ALDEMAN, Jeremy. Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton: Princeton University, 2006.
14 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 65-101.
15 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro. Contaponto/PUC Rio, 2006, p. 305-327.
Referências
ALDEMAN, Jerem. Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton: Princeton University, 2006.
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do imperio: questao nacional e questao colonial na crise do Antigo Regime portugues. Porto: Afrontamento, 1993.
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RUJULA, Pedro; FRASQUET, Ivana (coords.). El Trienio Liberal (1820-1823). Una mirada politica. Granada: Colmares, 2020.
Organizadores
Lucia Maria Bastos P. Neves – Professora titular de História Moderna do departamento de História da UERJ. Bolsista 1 A do CNPq, Bolsista Faperj – Cientista do Nosso Estado e integrante do programa Prociencia da UERJ. Entre outros trabalhos, publicou Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (2003); Guerra Literária – os panfletos políticos da Independência (2014), em colaboração com José Murilo de Carvalho e Marcello Basile; e Oliveira Lima e a longa história da Independência (2021) em colaboração com André Heráclio do Rego e Lucia Maria Paschoal Guimarães. É autora de diversos artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros especializados.
Adriana Pereira Campos – Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Associada do Departamento de História. Bolsista 2 do CNPq, Coordenadora do Núcleo de estudos sobre tribunais Superiores: as experiências romana, ibérica e brasileira financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado do Espírito Santo – FAPES. Publicou, entre outras, coletânea Perspectivas da cidadã no Brasil Império em colaboração com José Murilo de Carvalho (2011), vários artigos em periódicos estrangeiros e especializados.
Kátia Sausen da Motta – Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Professora Substituta de História do IFES, Campus Vitória. Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Bolsista CAPES/Brasil e apoio financeiro da FAPES. É pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES), participa do Núcleo de Estudos sobre Tribunais Superiores: as experiências romana, ibérica e brasileira e do grupo de pesquisa Opinio Doctorum. Publicou Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império, em colaboração com Adriana Pereira Campos e Andrea Slemian; e O espelho negro de uma nação: a África e sua importância na formação do Brasil, em coorganização com Adriana Pereira Campos e Gilvan Ventura da Silva.
Referências desta apresentação
NEVES, Lucia Maria Bastos P.; CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA Kátia Sausen da. Liberalismo, constitucionalismo e parlamento: a Revolução do Porto de 1820. Almanack. Guarulhos, n. 30, ed00122, 2022. Acessar publicação original [DR]
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