L’histoire des jésuites en Haïti aux XVIIIe et XXe siècles (1704-1763 – 1953-1964) | François Kawas
A Companhia de Jesus teve e ainda tem tido uma decisiva presença na história da América. Este fato, para ser avaliado de modo mais adequado, deve ser considerado juntamente com a ação política, catequética e pedagógica desses padres. Além disso, é necessário lembrar os freqüentes conflitos com as demais ordens religiosas, com os colonizadores, com as autoridades civis, além, é claro, dos protestantes. Esses conflitos, em várias ocasiões, determinaram expulsões ou escaramuças localizadas. Assim, a discussão sobre o papel desempenhado pelos jesuítas na colonização da América torna-se não só um atrativo acadêmico, mas também uma necessidade de atualização do próprio debate acadêmico. Esse debate pode esclarecer vários pontos dessa história, não só os aspectos catequéticos ou religiosos, mas também os políticos e administrativos. No entanto, o acesso às fontes primárias é difícil para a maior parte dos pesquisadores e os deslocamentos para os lugares onde elas podem ser encontradas são custosos. Além disso, é comum a precariedade da conservação e da organização de boa parte dos documentos existentes, o que também dificulta a pesquisa.
Como fazer então para executar uma pesquisa histórica com fontes sobre o tema? Não podemos nos deixar levar pelas facilitações das simples glosas ou dos comentários superficiais. É necessário enfrentarmos as dificuldades e concentrarmos os esforços no trabalho de localização e seleção de fontes para revermos alguns temas já explorados e assim realizarmos novas pesquisas. Em vista de tais dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores, devemos louvar os esforços daqueles que localizam, organizam e disponibilizam importantes documentos de nossa história. É o caso do padre haitiano François Kawas, um jesuíta que oferece aos pesquisadores da história da América, do Haiti e da Companhia de Jesus, um conjunto de fontes essenciais ao estudo do tema. O autor desse livro é Mestre em Sociologia Política pela Universidade Iberoamericana, da cidade do México, e também em Sociologia das Religiões pelo Instituto Católico de Paris. Seu doutorado, em Sociologia, é dessa mesma instituição. O padre François Kawas é diretor do Centro de Reflexão e Pesquisa Interdisciplinar dos Jesuítas e professor de sociologia na Universidade Pública do Haiti, em Porto Príncipe. Sua área de pesquisa é nucleada na religião e na história haitiana, além, é claro, da história da Companhia de Jesus.
O Haiti é um pequeno país, com pouco menos de 28.000km2 de área, e ocupa cerca de um terço da ilha de Hispaniola, onde Cristóvão Colombo aportou pela primeira vez em 1492. A presença dos jesuítas se tornou significativa na região a partir de 1704, quando os Capuchinhos foram expulsos dessa colônia francesa. O restante da ilha constitui a República Dominicana. Foi o primeiro território da América a ficar livre da escravidão. Isso ocorreu em 1794, após um grande levante. A independência veio logo a seguir, em 1804. Toussaint l’Overture foi o grande líder da revolta que conseguiu acabar com a escravidão. No século XIX, o Haiti representou, por um lado, um sonho de liberdade para todos os escravos da América – e, por outro lado, foi um país duramente atacado e invadido várias vezes. Dos 20 governantes que teve o país na segunda metade do século XIX, 16 deles foram depostos ou assassinados. Tropas norte-americanas ocuparam o país entre os anos de 1915 e 1934. A localização estratégica, a fertilidade de seu solo, a mão-de-obra abundante e barata e a miséria de povo serviram como base para as ocupações e espoliações que sofreu o país.
O livro apresenta e disponibiliza importantes fontes documentais da história dos jesuítas no Haiti. São 41 documentos públicos cujas datas vão desde o século XVII até o século XX, seguidos de quatro cartas escritas por padres jesuítas entre os anos de 1725 e 1743. Esses documentos são precedidos de uma introdução histórica, que traça uma descrição dos mais marcantes momentos da presença dos jesuítas no Haiti (páginas 11 a 75).
A terceira parte do livro mostra a origem dessas fontes e mais algumas sugestões de leitura sobre o assunto. Nessa parte são indicadas seis fontes primárias e 46 títulos de livros que tratam do tema. O objetivo do autor do livro é facilitar o acesso às fontes primárias e aos textos de apoio à pesquisa. As fontes manuscritas que são transcritas no livro foram localizadas pelo padre François Kawas nos seguintes locais:
– Arquivos da Província dos Jesuítas no Canadá Francês, em São Jerônimo e em Montreal, no Quebeque;
– Arquivo Nacional da Espanha, em Madri e Arquivo das Índias, em Sevilha;
– Arquivo Nacional da França, em Paris, Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Paris, e Arquivo dos Jesuítas da Província da França, em Vanves;
– Arquivos da Diocese de Porto Príncipe e também da Arquidiocese de Cabo Haitiano, no Haiti;
– Arquivos da Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, em Roma, na Itália, e os Arquivos da Companhia de Jesus, também em Roma.
O primeiro documento transcrito no livro é o edito de março de 1685, exarado pelo rei da França, o qual é chamado de Código Negro, de 1685 (p. 81-96). O edito é composto de 60 artigos e foi registrado no Soberano Conselho da Corte de Santo Domingo em 6 de maio do mesmo ano. Sua validade se estendia às possessões francesas na América, especialmente as caribenhas. Essa ordenação real proibia qualquer religião não-católica (artigos II a VIII). Definia o âmbito da jurisdição dos curas nas ilhas de possessão francesa na América, em detalhes. Por exemplo, os artigos X e XI estabeleciam normas sobre o casamento entre escravos. Os padres eram proibidos de oficiar matrimônios entre os escravos sem a autorização expressa dos senhores desses escravos (p. 84 e 85). Trata-se de um documento-chave para a compreensão e a discussão das formas jurídicas de estabelecimento e de sustentação da escravidão.
Além disso, o papel da Igreja Católica e seus ofícios no âmbito do suporte ideológico do escravismo mercantil podem ser detectados nas páginas desse documento, quando devidamente contextualizado. Mostram a indissociabilidade entre a religião católica e a coroa francesa naquele período, parceiras que eram no projeto colonial. É importante lembrar que a França só tomou posse do território que hoje constitui o Haiti em 1697, como resultado de um acordo com a Espanha. Depois, durante o século XVIII o Haiti foi a colônia mais próspera da França na América, com a economia sustentada pela exportação de café, açúcar e cacau.
O documento 3 (p. 97-100) é uma permissão real para o estabelecimento dos jesuítas na parte norte da Ilha, também chamada de Santo Domingo (Haiti). É datado de outubro de 1704. Essa presença durou até 1762. Em 1763 os bens dos jesuítas foram tomados, conforme podemos verificar no documento 6 (p. 101). Alguns documentos posteriores tratam da destinação desses bens, como, por exemplo, os documentos 7, de 1768 (p. 102) e 8, de 1771 (p. 102-107).
Merece menção o documento 20 (p. 135-150), de 13 de dezembro de 1762. É uma determinação do Conselho Superior do governo da Ilha de Santo Domingo. Nele os jesuítas são retratados como moralmente condenáveis, devido aos seguintes erros: defesa do probabilismo, pecado filosófico, simonia, blasfêmia, sacrilégio, magia, irreligião, idolatria, impudicícia, perjúrio, falsidade, falsos testemunhos, prevaricação em julgamentos, roubo, compensação oculta, homicídio, suicídio, e, o pior de todos os erros: a defesa do regicídio (p. 135-136). São acusações que despertam grande curiosidade, e isso se deve ao fato de que, na mesma época, na França, a Companhia de Jesus era atacada e perseguida pelos iluministas e pelos partidários da Revolução como defensores e beneficiários da monarquia e dos privilégios dela oriundos. Isso merece, certamente, estudos mais aprofundados.
O documento 24, datado de 28 de março de 1860 (p. 159-164), é uma concordata celebrada entre o papa Pio IX e o presidente da República do Haiti, e trata de algumas disposições políticas e privilégios à Igreja. Por exemplo, a República do Haiti, no artigo terceiro desse documento, assume o compromisso de manter os bispos e arcebispos com fundos públicos (p. 160). A cooperação se deu, certamente, com benefícios para ambos os lados.
Destacamos também o documento 34, transcrito no livro do padre François Kawas (p. 198-199). É o Comunicado da Embaixada do Haiti em Otawa a respeito da expulsão dos jesuítas, de 13 de fevereiro de 1964. O comunicado, de quatro artigos, refere-se a um “complô urdido pelos jesuítas para derrubar o governo haitiano” e declara apreço desse governo às demais ordens religiosas e especialmente aos religiosos de origem canadense. O governo em questão era a cruel e sanguinária ditadura de Papa-Doc (François Chevalier), de sinistro registro na história do Haiti e da América. Essa ditadura na só perseguiu e eliminou os políticos e líderes religiosos que denunciavam suas atrocidades; ela também espoliou o povo haitiano. A polícia política dessa ditadura, personificada nos tonton-macoutes (bichos-papões), prendeu, torturou e matou indiscriminadamente no Haiti. Esse governo assolou o Haiti entre 1957 e 1971, quando foi substituído pelo seu filho, Jean-Claude Duvalier, chamado Baby-Doc, que governou também de forma ditatorial, até 1986, quando teve que fugir da revolta e da ira de seu próprio povo.
O documento 42, de 31 de março de 1986 (p. 215-216), uma Declaração do Conselho Nacional de Governo, anulou o decreto de expulsão dos jesuítas de 1964 e autorizou o restabelecimento da Ordem no território haitiano. Isso mostra a importância da presença dos jesuítas nesse país. Era a tentativa desesperada do governo ditatorial de se manter no poder e de conter as revoltas populares, que se alastravam pelo país. No entanto, quando retornaram ao país, os jesuítas estiveram resolutamente à frente dos protestos e das denúncias à ditadura. Quando finalmente o governo ditatorial foi abolido e o ditador fugiu do país, foi eleito um padre jesuíta, Jean-Bertrand Aristide, para o cargo de presidente da República. Seu governo não durou, mesmo tendo apoio expressivo da Organização dos Estados Americanos (OEA). Os herdeiros dos tontons-macoutes não aceitaram a perda de poder e de privilégios. Eles não aceitaram a democracia! Hoje o país tem sua soberania supervisionada por tropas da Organização das Nações Unidas (ONU).
É curioso que a coletânea não inclua nenhum documento relativo à educação. É sabido que os jesuítas atuaram de forma decisiva na área de educação em todos os lugares onde estiveram. Isso nos leva a uma reflexão sobre a escolha dos documentos que foi feita pelo padre Kawas. Ela destaca os aspectos políticos e religiosos que, no caso, assumiram uma maior dimensão nesse universo.
Esses documentos transcritos no livro do padre François Kawas, quando lidos à luz dos acontecimentos globais da América, nos indicam o exemplo da interligação entre política e religião, governo e Igreja no continente, e especialmente na história haitiana. O livro oferece uma boa oportunidade de acesso a uma discussão acadêmica pouco conhecida no Brasil, que é a presença (e expulsões) dos jesuítas no Caribe. Ele pode despertar o interesse para novas áreas de pesquisa sobre a América, sobre o Haiti e sobre a Companhia de Jesus. Sua leitura pode nos aproximar de um universo político pouco conhecido.
Enfim, a recomendação da leitura do livro reforça a idéia da pertinência das pesquisas documentais sobre a história da América, especialmente daqueles tópicos sobre os quais há grande lacuna nos meios acadêmicos brasileiros. A publicação dos documentos vem prestar assim, um grande serviço às pesquisas acadêmicas sobre as temáticas ligadas à história do continente.
Resenhista
Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Professor no Departamento de Fundamentos da Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (PR), líder do Grupo de Pesquisas sobre Política, Religião e Educação nos Tempos Modernos. E-mail: caatoledo@uem.br
Referências desta Resenha
KAWAS, François (S.J.). L’histoire des jésuites en Haïti aux XVIIIe et XXe siècles (1704-1763 – 1953-1964). Paris: Harmattan, 2006. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de. Diálogos. Maringá, v.12, n.1, 229-233, 2008. Acessar publicação original [DR]