A obra Letramento Histórico-digital: ensino de História e tecnologias digitais, é fruto da dissertação de mestrado de Danilo Alves da Silva, a partir das reflexões junto ao Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Ensino de História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A publicação pretende conceituar o letramento histórico-digital, no intuito de sistematizar uma coligação entre o Ensino de História e a cultura digital.
O capítulo primeiro, “O espaço, o tempo e o caminho da pesquisa”, se propõe a trazer de forma bastante ampla a relação do autor com o espaço escolar escolhido bem como a turma com a qual decidiu trabalhar sua produção, denominada: letramento histórico-digital. No geral, essa parte do capítulo ficou bastante resumida. O autor se mostrou muito efetivo em mostrar os valores morais, sociais e pedagógicos do colégio confessional em que aplicou o seu estudo e prática docente. Os apontamentos do caminho da pesquisa, conforme o título enuncia, não ganharam tantos holofotes.
Há demorada análise em todo o aporte curricular e nos documentos que emulam os princípios educacionais da escola. Talvez fosse necessária uma correlação mais efetiva entre os Parâmetros Curriculares ou a Base Nacional ou mesmo as legislações estaduais de educação para o ensino fundamental, anos finais. Nesse sentido, fazemos uma leitura menos estimulada, pois buscamos chegar no pertinente tema proposto nessa parte da obra, qual seja, mostrar sua jornada profissional e reflexão enquanto pesquisador e docente em busca de transformação no chão da escola.
Mesmo quando se percebe o esforço do autor, no sentido de se posicionar de uma maneira crítica aos princípios e parâmetros do colégio onde atua, nota-se a dificuldade, sempre vindo após alguma sinalização negativa, um contraponto elogioso. Ainda que afirme no capítulo que não tinha a intenção de historicizar sobre o colégio onde atuou para a pesquisa, ele, no mínimo, historiou de forma destacada sobre a instituição.
Por outro lado, os tópicos primeiro e último deste capítulo trazem uma boa noção do percurso e das experimentações/observações que o professor-pesquisador estava realizando em sala de aula, o que gerará a justificativa de sua trajetória reflexiva no livro. Nessa parte, ele sinaliza uma definição do letramento histórico-digital: uma metodologia, em primeiro lugar. No mesmo lugar do pódio (baseado na investigação própria da área), ele coloca o letramento histórico para que, em segundo plano, apareça o letramento digital, sempre associado à História e suas formas de pesquisa e de narrativa. Portanto, para o autor, é primordial que haja, por parte de seus alunos e alunas, prioritariamente, a orientação sobre como se faz pesquisa (ou como se pesquisa na ciência histórica). Posteriormente, haveria uma coligação entre esses saberes com as TDICs, gerando possibilidades de narrativas no ciberespaço.
Caso a pessoa leitora siga essa lógica (priorizando o letramento histórico), encontrará diversas leituras, amparadas pelo campo do Ensino de História, que confirmam tal assertiva. Ela será, aliás, a base da obra de Silva. A reflexão que se faz, nesse ponto, é sobre esse movimento secundarizado em que o letramento digital aparece nessa primeira sistematização anunciada pelo autor. O letramento digital é tão elementar quanto qualquer outro processo de conhecimento e aprendizagem. Portanto, aqui deixamos a reflexão que os escritos do autor nos proporcionaram: não seria necessário que o indivíduo trouxesse ou adquirisse uma alfabetização sobre as TDICs para que, assim, pudesse concomitantemente experimentar o conhecimento histórico-digital?
Ademais, cabe ressaltar que a importância do letramento digital, em diversos níveis, é algo vital para entender o que é educação no século XXI. A falta de habilidade em lidar com novos aplicativos, com as possibilidades que os softwares oferecem, a movimentação dos algoritmos em busca do consumidor cidadão, a moeda virtual bitcoin, enfim, um novo universo, literalmente, se abre para todos nós. É preciso que a sociedade da informação, como denominou Castells (2013), entenda minimamente essa dinâmica. Uma alfabetização digital é, sim, necessária para que outros letramentos ocorram, e os letramentos, digital e histórico podem e devem ocorrer juntos nesse processo, sem hierarquização.
Faz-se aqui uma pequena ressalva quanto o seguinte trecho: “[…] na esteira disso [da importância de que discentes produzam e tenham narrativas históricas], utilizar as tecnologias digitais talvez seja uma alternativa para aproximar os estudantes de um conhecimento que para eles tem se tornado cansativo e chato” (p. 61). Ele parece reforçar a questão da centralidade do histórico ao invés da paridade com o digital, nos letramentos, chegando a correr o risco de a tecnologia ser significada como um entretenimento para a sala de aula. A grande inquietação e reflexão é: se usamos lápis, quadro branco, massa de modelar, recortes de revistas e podemos desenvolver o letramento histórico, em que medida um letramento histórico-digital seria distinto, lançando mão das TDICs, do letramento apenas histórico? O que o tipifica?
No capítulo seguinte, Cultura Digital e o Ensino de História, o autor traz uma compreensão mais clara, logo no início do capítulo, sobre a necessidade de letramento digital dentro dessa nova cultura de acesso mais amplo ao ciberespaço. Ele admite que é vital o uso crítico das tecnologias digitais, porém, aliando ao conhecimento histórico. A ideia é conectar a ciência histórica na escola como uma prática essencial para desenvolver essa criticidade no uso dos ambientes digitais.
O argumento principal é que haja, por parte do ensino escolar de História, “[…] uma formação de sujeitos que aprendam a pensar historicamente, apropriando-se das tecnologias digitais de modo simultâneo” (p.69). Esse fim deveria ser sempre nosso foco quando utilizamos as TDICs no espaço escolar, do ensino básico à universidade. É fundamental entendermos que não há apenas as fontes digitalizadas dos grandes arquivos disponibilizados para o público, no ciberespaço. Há fontes que nasceram no digital e só são explicadas e entendidas se respeitado o território que justifica sua existência.
Além disso, há algo fundamental a ser refutado. O autor afirma que “a transição de uma cultura analógica para uma cultura digital é um movimento dinâmico e complexo […]” (p.69-70). É importante ressaltar que o analógico não está sendo sobrepassado por outro movimento cultural. Talvez, nunca o será. As culturas estão coexistindo e se relacionando em um ritmo que inclusive desafia as próprias noções temporais que a humanidade usa para se organizar, como dias, meses, horas, etc. Mas, não estamos rumo à extinção do analógico. O movimento de digitalização, como mais uma possibilidade de acesso e divulgação de documentos oficiais ou acervos de memória, pode provar que precisamos e vivemos do analógico, no qual se afirma a cultura digital.
O que seria uma rede social ou um e-mail ou direct se não fosse a coexistência de grupos de amigos presenciais, das cartas e bilhetes, dos anúncios em jornais impressos ou na rádio? No espaço escolar experimentamos situação idêntica, dado que ali temos a nossa cultura replicada de muitas formas. Então , não sóé importante não ignorar o digital e a sua produção para a História e para o ensino, como também é vital que não pensemos que é um momento de transição para outra cultura como se houvesse uma obsolescência programada para o analógico.
Feita essa ressalva, o capítulo traz, em seu primeiro apartado, uma boa síntese que aproximará a pessoa leitora de como a computação e a informática foram sendo parceiras dos profissionais da História, ampliando discussões, pensando em formas de otimizar o trabalho de pesquisa, sobretudo, com poucos debates e, ainda, relacionando TDICs ao ensino em nosso campo. O autor se ampara bastante em três historiadores, entre os quais Anita Lucchesi é a mais referenciada. Nesse sentido, pode-se perceber que a argumentação dele sobre a ideia transicional de uma linguagem para outra, ou seja, do analógico para o digital, tem como mote o que a historiadora sustenta em sua dissertação de mestrado, de 2014. Nesse sentido, é preciso reiterar que, além de uma transição, temos uma inclusão de novas linguagens, mediadas por novas tecnologias. Não perdemos a oralidade, nem ganhamos a linguagem audiovisual, por exemplo, porque temos a internet. Ao revés, são estas formas de comunicar que dão bastante sentido para a atuação no ciberespaço. Ademais, isso que estamos a experimentar, desde os anos 2000, mais ou menos, é em parte novidade e, em parte, a relação dialética dessas linguagens já existentes com o que temos de novo, como a linguagem de programação, alfabetização digital e comunicação nos ambientes virtuais.
Essa seção da obra foi sucinta, se comparada ao tópico seguinte, em que o autor busca mostrar a importância da didática da História para o ensino. Nesse viés, talvez, o título do capítulo, que indica a cultura digital em primeiro plano, pudesse dar lugar ao Ensino de História, dado que é o argumento mais justificado no capítulo, tendo a cultura digital ou a relação com as TDICs ficado em um plano complementar. A discussão sobre o tema do capítulo dois está bem consubstanciada, sobretudo o tópico segundo, dando bastante dinamicidade ao texto e construindo uma linha argumentativa com relevante bibliografia e sustentando seu ponto de vista. Fica evidente que o autor está decidido a incorporar a sua experiência com as tecnologias em sala, como algo que se oponha ao campo epistemológico da Educação. Portanto, seu olhar é sobre a aprendizagem histórica dentro da Didática da História, preconizada por Rüsen (2010) e desenvolvida por Saddi (2012). Ainda que use muitas outras referências, estas são fundamentais para entender os rumos que ele dá para sua explanação sobre a importância do ensino de História e da operação historiográfica para construção de sua produção didática, que será desenvolvida no último capítulo.
Aqui, há uma nomenclatura que se faz necessário pontuar. É a expressão “nativos digitais”, usualmente incorporada nos meios acadêmicos e jornalísticos. Ainda que o próprio criador do termo (Marc Prensky) tenha dado menor importância à categorização aos nascidos entre os anos 1980 e 1990, ele continua a ser trazido de forma naturalizada nos textos acadêmicos. O mais importante é que entendamos que não existe obviedade na associação do ano de nascimento das pessoas com o surgimento de uma tecnologia, sobretudo em um país onde as desigualdades são a regra e não a exceção. Sendo assim, é proibitivo que se catalogue as gerações dentro de uma terminologia sobre a qual, basicamente, não se tem evidência (Kennedy, et al, 2007), muito menos quando associada ao espaço escolar (Benini; Murray, 2013; Bennet et al., 2008).
Neste tópico do capítulo segundo, vale ressaltar que o autor retoma o seu letramento histórico-digital. Para ele, desenvolvendo este método, espera-se que o alunado consiga usar o espaço digital de forma hábil, para alcançar noções temporais, consciência histórica e que veja significado do saber histórico para suas vidas.
No último tópico, o mais focado na questão do letramento histórico-digital, aparecem, várias vezes, definições que demonstram com clareza a posição do autor em relação a uma experiência em sala de aula que valorize a didática própria da História e, ao mesmo tempo, se utilize do digital para capacitar, dentro do conhecimento da área, sobre o seu uso e ocupação do ciberespaço. Nesse sentido, a questão do digital está em plano secundário, inclusive na pouco expressiva bibliografia sobre o tema, sendo um aspecto extra de interação e consonância com as demandas que ele percebe em sala e no perfil discente de seu espaço escolar. Importante é frisar, também, que não há uma discussão com autorias que já trouxeram o termo letramento histórico-digital e/ou aproximações em seus trabalhos científicos, como os S. Livingstone (2011), M. Soares (2012) e M. Costa (2015) e isso representa uma fragilidade que poderia ser sanada em uma provável segunda edição.
O autor avalia que o letramento histórico-digital ajuda os discentes a pensar historicamente e estimula “habilidades digitais ligadas à investigação histórica, capacitando os sujeitos a se orientarem e darem sentido ao tempo” (p.125-26). O capítulo tem a explanação do passo a passo do planejamento e execução da atividade proposta pelo docente. É um aprendizado para todas(os) que o lerem. Trata-se de uma execução muito boa com as avaliações das suas percepções, logo após cada passo de sua experiência. Há boa interlocução entre o que ele propôs e defendeu como prática docente durante os dois capítulos anteriores. O autor utiliza o que a escola privada, na qual trabalha, fornece, de forma criativa e interativa, a partir das bases do conhecimento científico do campo da História. Há atividades para que as(os) discentes elaborem fora da sala, como entrevistas utilizando dispositivos eletrônicos e há planejamento síncrono, em sala de aula, para construir e orientar a turma em cada etapa de sua metodologia para o letramento histórico-digital.
Interessa notar que, durante a narrativa e análise sobre os processos do letramento, o próprio autor evidencia algo já analisado aqui. Ele percebe que nem todos os alunos estavam aptos ao uso de dispositivos móveis ou conseguiam trazer alguma expertise sobre a própria técnica no uso de aplicativos. Essa insuficiência demonstra, assim como os relatos sobre o não reconhecimento de fontes digitais ou mesmo a dificuldade de encontrar os conteúdos e fazer qualquer análise, que o letramento digital é objeto de reflexão interdisciplinar fundamental. O consumo de dispositivos móveis, em uma turma com condições materiais confortáveis, em comparação à maioria da população em escola pública, mesmo naturalizado por aquele nicho, não garante uma relação diferente com a de qualquer pessoa, em qualquer idade, obrigada a se adaptar e aprender sobre o mundo digital. Logo, a ideia de nativos digitais, neste capítulo, resulta em uma terminologia que não resiste, sobretudo em um país que tarda em compreender que cultura digital não é ter dispositivos e internet (quando há), mas é saber como usar e se posicionar no ciberespaço.
Vale salientar, por fim, que a obra cumpre os objetivos primeiros, ou seja, conceituar o letramento histórico-digital e correlacionar Ensino de História e cultura digital. O autor é coerente em sua iniciativa, especialmente, porque apresenta uma base esquemática clara sobre o método e ensaia a sua aplicação, apontando dificuldades e experimentos no campo do Ensino de História, a partir do ambiente escolar. É um trabalho que suscita muitas reflexões e estimula nossa criticidade.
Referências
BENINI, Silvia; MURRAY, Liam. Critically Evaluating Prensky in a Language Learning Context: The “Digital Natives/Immigrants Debate” and its Implications for CALL. Eurocall 2013. Évora, Portugal, p. 25-30, 2013. [Link]. Acesso em 25 jun. 2021.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2013.
COSTA, Marcella. Currículo, História e Tecnologia: que articulação na formação inicial de professores? (Mestrado em Educação).Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Acesso em 25 jun. 2021.
LIVINGSTONE, Sonia. Internet literacy: a negociação dos jovens com as novas oportunidades on-line. Matrizes, São Paulo, ano 4, n. 2, jan./jun. 2011, p. 11-42. [Link] Acesso em 27 jun. 2021
PRENSKY, Marc. (2009). H. sapiens digital: From digital immigrants and digital natives to digital wisdom. Journal of Online Education, v. 5, n. 3, p. 1-9, 2009. [Link] Acesso em 25 jun. 2021.
PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants, part 1. On the Horizon, v. 9, n. 5, p. 1-6, 2001a. [Link]. Acesso em 25 jun. 2021.
PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants, part 2: Do they really think differently? On the Horizon, v. 9, n. 6, p. 1-6, 2001b. [Link] Acesso em 25 jun. 2021.
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, 2002. [Link] Acesso em 27 jun. 2021
Sumário de Letramento histórico-digital: Ensino de História e Tecnologias Digitais
Live de lançamento [Link]
Resenhista
Vanessa Spinosa – Doutora em História e docente do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Campus Caicó) e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de História, pela mesma instituição. Publicou, entre outros trabalhos, “Formação do futuro-presente: a docência em História no espectro da experiência digital no ensino remoto”, em co-autoria com Marcella Albaine Farias da Costa, em Formação docente e currículo: Conhecimentos, sujeitos e territórios, organizado por Carmen Teresa Gabriel e Marcus Leonardo Bomfim (Mauad X, 2021), “Ciberespaço, letramento e docência: experiência com TDICs no Ensino de História”, em História em jogo: as questões do tempo presente e os desafios do ensino de história, organizado por Airan dos Santos Borges de Oliveira e Maria da Conceição da Silva Costa (Desalinho, 2020) e, em co-autoria com Danilo Nogueira de Medeiros, “Ensino de História no ensino superior: práticas educativas para a emancipação discente no ciberespaço”, nos Anais do XI Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História (ABEH, 2021). E-mail: vanessa.spinosa@ufrn.br
Referências desta resenha
SILVA, Danilo Alves. Letramento histórico-digital: Ensino de História e Tecnologias Digitais. Rio de Janeiro: Autografia, 2020. 162p. Resenha de: SPINOSA, Vanessa. Alfabetização histórica . Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.3, jan./fev. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/letramento-historico-digital-ensino-de-historia-e-tecnologias-digitais-danilo-alves-da-silva/
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