ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. Resenha de: GUIMARÃES, Marcella Lopes. Alea, Rio de Janeiro, v.16 n.2, july/dec. 2014.

Les Troubadours. Une histoire poétique é o último lançamento de Michel Zink, Professor de Literatura Francesa do Collège de France, secretário perpétuo da Académie des inscriptions et Belles-Lettres, dentre outras inúmeras distinções e atividades docentes, literárias e de pesquisa. No Brasil, o seu artigo “Literatura” do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt talvez seja o seu trabalho mais lido, mas é possível também conhecê-lo em outra tradução, O Jogral de Nossa Senhora, publicado pela Editora Quadrante. Na verdade, diante de uma carreira notável, o leitor brasileiro não francófono tem acesso a ainda muito pouco do seu trabalho… Esperamos que isso possa mudar!

Qual é o sentido de voltar ao tema dos trovadores, a partir de suas vidasrazos 112 em sintonia com a poesia? O Professor Zink não esconde suas motivações. Para ele, ainda que a investigação possa reconstituir o universo da poesia medieval e o sentido que ela teve para seus contemporâneos, ela descortina a nossa distância desse mundo…, mas uma distância que não impede a comunicação – lembremo-nos de Georges Duby, é com as diferenças que aprendemos mais* e convida mesmo a uma compreensão continuamente renovada de seus temas e de sua complexidade. Um dos mais eficazes vieses pelos quais essa comunicação é possível na contemporaneidade, segundo Zink, é o da autorreflexão, pois a poesia medieval é uma poesia que “não cessa de voltar a ela mesma e à ideia que ela faz de si mesma”.* 113

Espera-se de uma obra intitulada Les Troubadours que ela resgate a poesia dos mais importantes trovadores occitanos, ou seja, dos criadores de um lirismo novo no Ocidente Medieval. Mas a obra tem um subtítulo e ele entrega a sua singularidade. Uma história poética dos trovadores é, segundo o seu autor, “feita de sua vida, de suas viagens e de seus amores, de seus encontros, de sua carreira e de sua obra. A história poética dos trovadores é também a história de sua arte e de sua influência, em particular a história dos manuscritos que, acabada a sua grande época, aplicaram-se a preservá-la. A história poética dos trovadores é ainda essa grande história fragmentada, feita de várias histórias que são escritas em torno de seus poemas, que se inspiram neles, que os comentam e que alguns manuscritos conservaram. Ao mesmo tempo em que são biografias largamente imaginárias, espécies de vidas sonhadas em poesia, esses textos oferecem da poesia dos trovadores uma interpretação em forma de história”.*

Logo depois da abertura da obra, o Professor Zink se entrega a uma discussão importante sobre as escolhas realizadas pelas boas edições dedicadas à literatura medieval, ou seja, justifica o fato de começarem com a descrição dos manuscritos conservados. Por quê? Porque tudo o que sabemos dessa poesia provém dos cancioneiros, ou seja, das recolhas posteriores dessa poesia, realizadas em regiões diferentes daquelas onde viveram os trovadores. O Professor Zink não só justifica a escolha das edições como emula o método ao discorrer também sobre os cancioneiros logo no início da obra, mas essa “defesa” se funda no fato de essas recolhas oferecerem ao autor o insumo fundamental para a sua histoire poétique, ou seja, “as canções de cada trovador, escritas a tinta preta, são aí precedidas de sua vida, escrita à tinta vermelha”.* O momento em que essas vidas são compostas e recolhidas está em consonância com uma nova concepção de poesia do século XIII, “recitada, edificante na origem, moral ou satírica”.* O autor vai buscar nelas inspiração, mas não só, ao longo de todo o texto, busca compreender as relações entre os poemas e esses textos alicerçados em outras fontes e nos versos dos trovadores.

Depois das motivações, do ensaio sobre os cancioneiros, Les Troubadoursdescortina a sua primeira vida. Como não poderia deixar de ser, trata-se do Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers Guilherme IX (1071-1126), o primeiro trovador conhecido. Sua breve vida destaca a sua mobilidade (afinal participou da 1a cruzada, entre outras aventuras); sua habilidade na sedução, “un des plus grands trompeurs de dames”;* destreza em armas e sua arte. Na verdade, a vida ironiza a associação entre a poesia e a sedução das damas, uma primeira pista sobre a relação entre essas narrativas e a obra dos trovadores. Zink lamenta, é pouco sobre esse trovador extraordinário de cuja obra restam 10 cantigas autênticas, então a ele dedica-se mais, 114 começando pelo célebre “Farai un vers de dreit nien”.

Ao observar que “a associação do amor, da alegria e da juventude marcam a celebração do fin’amor“,* Michel Zink reconhece que ela aparece na poesia de Guilherme da Aquitânia antes mesmo que esse poeta tenha “inventado” o conceito e que, entre a sua faceta considerada obscena e a cortês, não há contradição. Um dos aspectos mais interessantes da obra já se revela nesse primeiro capítulo dedicado ao Conde de Poitiers, ou seja, na maneira como o vastíssimo repertório de Michel Zink entra em cena para demonstrar a convergência 115 de poéticas. Em nenhum momento o autor é seduzido pelo “ídolo das origens”,* está mais interessado em interseções e redes, como quando mais de uma vez evoca as Kharjas moçárabes, essas composições que cantam, com voz feminina, a paixão e o sofrimento, antes que o Conde de Poitiers interseccione nessa rede a sua poesia; ou quando compara os modelos estróficos adotados por Guilherme da Aquitância a outros, como o da poesia litúrgica de Saint-Martial;* ou ainda quando evoca as cantigas de amigo galego-portuguesas. Ora, das Kharjas para a poesia de Guilherme da Aquitânia – sem que seja possível medir ou averiguar influências -, passando para o jogo e para a arte de conversação, que teria na segunda das Siete Partidas de Afonso X de Castela, dois séculos depois, um postulado poético, 116 é possível ler em Les Troubadours uma aventura dinâmica, protagonizada pela poesia medieval, cheia de vozes e vidas que se alimentam mutuamente.

Nas páginas dessa história poética, a poesia de Cercamon é revisitada, bem como a hipótese de que ele seria o visconde Eble II de Ventadour (esse trovador sem canção) e a sua constância amorosa, que se manifesta na convicção poética de que o amor não depende da estação. Marcabru também é personagem da história, ainda que nada saibamos de sua vida fora os 44 poemas que dele sobreviveram, ou seja, seus versos, como os trovadores concebiam a materialidade da sua poesia. Michel Zink debate com a bibliografia sobre as “contradições” da poesia de Marcabru e desafia nosso ceticismo anacrônico com uma pertinente questão: “Porque recusar sistematicamente escutar os autores medievais quando eles dizem sua fé e invocam a Sagrada Escritura?”.* Mas a história poética não segue o fio cronológico, salta um século, traz Guiraut Riquier que não desprezaria mais ser trovador, antes ao contrário, reivindicaria a denominação,* para depois voltar ao século XII e a Jaufré Rudel, protagonista de uma das mais conhecidas vidas. Conhecemos dele 6 cantigas, todavia talvez o evoquemos mais pelos seus amores pela Condessa de Trípoli, que ele nunca viu até a hora derradeira… A vida de Rudel é exemplar para a postura de Michel Zink em relação a essas notas biográficas fundadas em tamanha imaginação. Longe de exigir delas a verdade sucedida, que, no caso do Prince de Blaye, logo descobrimos o equívoco (afinal, o poeta não morreu nos braços da Condessa de Trípoli, cuja identidade desconhecemos…), o professor vai buscar na vida do poeta o conflito que nutre toda a poesia dos trovadores, ou seja, estou aqui, enquanto ela, a amada, está lá, longe, “tel est l’mor de lonh”.* Assim, as vidas e razos dos trovadores “não rompem com as cantigas, nem as interpretam mal”,* elas evidenciam o essencial da poesia.*

Michel Zink também contempla a poesia satírica, não só quando evoca Marcabru, mas quando traz a conhecida canção de Peire d’Auvergne, “Chantarai d’aquestz trobadors”, em que satiriza vários trovadores. Mas, novamente, não está interessado em demarcar a distância entre os gêneros, nem em investir em uma literatura profana apartada de uma literatura religiosa.

história poética não estaria completa, essa também não é a aspiração do autor…, sem o célebre Bernard de Ventadour, trazido ao texto em mais de um capítulo em perspectiva dialógica com outros trovadores. Em um dos momentos a que se dedica a Ventadour, Zink traz ao texto a famosa canção da cotovia, que plena da alegria se entrega a um gesto suicida que não é outro que o da evocação da pequena morte no amor… Nesse poema, o autor ainda surpreende a inveja sexual do eu lírico em relação ao gozo dos outros, interdito ao eu. Frustração análoga também se afigura na poesia de outros trovadores, como na de Raimon de Miraval, assim como a inveja, esse sentimento onipresente.

Em meio a um universo que não é exaustivo, mas rico, o Conde de Poitiers é uma presença fundamental, mesmo quando outras vidas compõem novos capítulos da história poética de Michel Zink. A poesia de Guilherme da Aquitânia é chamada a dialogar com a obra de quase todos os poetas, trazidos da mesma forma por suas vidas e por fragmentos da sua poesia. Com eles, Zink desenha uma geografia da poesia occitana. Porém, nesse caminho, é possível ler uma outra história poética, a de um grande investigador e sua biblioteca. Essa “narrativa” foi escrita de forma concomitante, cerzida na observação rigorosa das cantigas; no reconhecimento de referências de uma vida, a sua; na alusão a teses audaciosas; na mudança de perspectiva; na polida discordância que desenha um irresistível debate e no reconhecimento do caráter provisório das próprias conclusões. Na “Tornada”, o Professor Michel Zink encerra sua histoire poétique com a afirmação de que ela afinal não fora mais que “um passeio entre as cantigas”.* Aceitamos a sua elegante modéstia, para revelar o segredo da perpétua juventude intelectual de um homem a quem não falta reconhecimento, a paixão pela poesia medieval.

Referências

* (DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. p. 13) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 15.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 16) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 25) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.29) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.33) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.50) [ Links ]

* (BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p.56.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 91) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.128) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 137) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 154) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 240) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.258) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 303) [ Links ]

112” Ensemble de 225 courts textes occitans en prose qui, dans les chansonniers lyriques, servent de notules biographiques (‘vidas‘) préfaçant ou glosant (‘razos‘) les pièces de 101 troubadours des XIIe au XIVe s. Conservés par 23 manuscrits, ces textes – revendiqués uniquement par deux auteurs (Uc de Saint-Circ et Miquel de la Tor) – servaient sans doute initialement aux jongleurs à présenter les auteurs des pièces récitées ou les anecdotes les ayant engendrées.” HUCHET, Jean-Claude. “Vidas et Razos” in GAUVARD, Claude, LIBERA, Alain, ZINK, Michel. Dictionnaire du Moyen Âge (2ª ed. 4ª tir.). Paris: PUF, 2004 (2012). p. 1446.

113 Todas as traduções dessa obra realizadas nesta resenha são de minha autoria.

114 É interessante constatar que, no mesmo ano do lançamento de Les Troubadours. Une histoire poétique, o Conde de Poitiers mereceu outro tributo, ou seja, a edição de Katy Bernard, que não é uma edição crítica, mas uma tradução “rythmée et poétique dont le but est de respecter au mieux la mesure et le rythme des vers du poète, sa musique, de même que l’esprit de ses chansos.” Le Néant et la joie. Chansons de Guillaume d’Aquitaine. Présentation et traduction de Katy Bernard. Éd. Bilingue occitan-français. Gardonne: Éditions Fédérop, 2013. p. 9.

115 Ainda que o Prof. Zink não empregue a palavra convergência, creio ser acertado empregá-la no sentido em que Edson Rosa da Silva o fez em seu ensaio “A metamorfose da arte: do quadro ao poema”. Nele celebra a convergência entre Jorge de Sena e André Malraux, refutando a influência como essência da relação proposta: “Não pretendo dizer que há aí influência, isso não me parece importante, há aí, sim, coincidência, convergência de pensamentos, que veem na arte uma manifestação elevada do espírito humano. E é nisso que eles se encontram”. SILVA, Edson Rosa da. “A metamorfose da arte: do quadro ao poema” in Metamorfoses 10.2. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da UFRJ. Lisboa: Caminho, 2010. p. 100.

116 Sobre isso, conferir a imprescindível obra de Paulo Sodré: O Riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa (Vitória: EDUFES, 2010), em que o autor contextualiza o fablar en gasaiado como prática cortesã, da qual participa a poesia.

Marcella Lopes Guimarães – Profa. Dra. Adjunta IV de História Medieval da Universidade Federal do Paraná. É vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED (www.nemed.he.com.br). E-mail: <marcella974@gmail.com>.

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Itamar Freitas

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