Apesar da sua importância para o imaginário medieval, a mitologia ainda constitui um assunto pouco estudado pelos acadêmicos contemporâneos, especialmente os historiadores. De um lado, isso é explicado pela pouca experiência metodológica para o tratamento de fontes advindas, muitas vezes, dos tempos précristãos.2 De outro, os temas vinculados à teologia, filosofia e religiosidade clerical constituem assuntos mais aprazíveis, e num primeiro momento, mais institucionalizados nas pesquisas acadêmicas. Este panorama vem sendo modificado com novas abordagens, temas e olhares diferenciados para as fontes tradicionais. Sem dúvida, as investigações dos escandinavistas especializados na Era Viking constituem algumas das contribuições mais promissoras: o estudo de mitos nórdicos, seja com documentos literários ou com monumentos contendo imagens míticas, revela as imbricações entre imagem e escrita no período medieval. Neste sentido, a ilha báltica de Gotland é um local muito especial, pois preservou centenas de representações visuais esculpidas em rochas durante a Alta Idade Média.
Mesmo com toda a sua relevância, os monumentos desse local receberam apenas duas publicações especializadas. A primeira, o clássico Gotlands Bildsteine, publicado em alemão por Sune Lindqvist em 1941 – atualmente muito raro, mesmo em bibliotecas européias – e o manual de Erik Nylén e Jan Lamm, originalmente editado em sueco no ano de 1978, e que agora recebe uma tradução para o francês, Les pierres gravées de Gotland. Jan Lamm foi diretor do Museu de Antiguidades Nacionais da Suécia, em Estocolmo e Erik Nylén é arqueólogo na Universidade de Uppsala, Suécia.
O prefácio da edição francesa foi escrito por Régis Boyer, o mais renomado escandinavista francês, concedendo ao leitor um panorama geral das estelas de Gotland e sua inserção nos estudos de mitologia germânica, de Tácito às sagas islandesas. Boyer preocupa-se não somente em apresentar um quadro das investigações até o presente momento, mas como é típico em suas publicações, também realiza várias problemáticas e interrogações para os futuros pesquisadores na área de Escandinávia Medieval.
A introdução do livro de Nylém e Lamm conceitua as pedras de Gotland3 – são monumentos funerários e comemorativos, esculpidos para perpetuar a memória de alguma personalidade importante na comunidade nórdica, erguidas em áreas de acesso público ou cemitérios; ou então, em alguns casos, marcos para demarcação de propriedades. Elas possuem diversos estilos e datações, indo do período pré-Viking (século V) até a época posterior à conversão da Escandinávia (séc. XI-XII). Inicialmente, a arte das estelas era puramente geométrica e abstrata, passando para um estilo mais realista e naturalista no início da Era Viking, sendo as esculturas mais importantes associadas a cenas e narrativas da mitologia germânica, reinterpretadas dentro dos valores sócio-culturais da região nórdica.
A maior parte da obra está dedicada a apresentar os principais temas contidos nas fontes pétreas, apresentando interpretações e imagens das estelas. Para a fase geométrica pré-viking, os autores apresentam análises comparativas, especialmente com concepções de vida e morte da área mediterrânica: a jornada do navio no mundo dos mortos, o combate entre heróis e monstros, animais totêmicos, símbolos solares e xamânicos. Especialmente as figurações com motivos espiralados e lunares da Espanha Visigótica são comparadas aos monumentos de Gotland, numa observação já constatada por Lindqvist em 1942. Esse é um dos campos mais promissores para a investigação dos monumentos pré-cristãos da Europa altomedieval: a circularidade de motivos cênicos e de estéticas artísticas específicas de várias áreas geográficas. Se de um lado, Nylém e Lamm perpetuam uma concepção tradicional de que esculturas de outros povos europeus – como os pictos da Escócia – influenciaram a criação dos monumentos escandinavos, outros autores perceberam um caminho inverso – as criações gotlandesas interferiram nas imagens pictas, como nos motivos de guerreiros bebendo em cornos.4 Seja como for, aqui podemos constatar talvez um contínuo fluxo de circularidade cultural nos dois sentidos, quebrando a idéia tradicional de uma Escandinávia isolada, marginal e alheia aos processos de transformação política e social da Europa antes do período das invasões nórdicas do século VIII.5 Mas mesmo assim, devemos ser muito cuidadosos nas comparações. Em certo momento, os autores do livro aproximam o culto de Odin e o Valhala com a idéia de paraíso islâmico, baseado apenas no estreito contato comercial entre os dois povos, sem nenhuma base sólida de influência entre a religiosidade politeísta germânica com os adeptos do Corão.
As estelas mais importantes, já do período viking, são as que apresentam maiores detalhes visuais sobre mitos escandinavos. De um lado, temos as esculturas representando a chegada do guerreiro morto ao Valhalla, sendo recebido por valquírias portando cornos com hidromel, um dos principais motivos da ideologia viking. Mas também alguns mitos aparecem de forma isolada e nem sempre recorrente, como o roubo do hidromel por Odin; a pesca da serpente do mundo pelo deus Thor; a morte dos filhos do ferreiro Volund; o combate entre o dragão Fafnir e o herói Sigurd; Gunnar no fosso das serpentes. Em diversas estelas, como Ardre VIII, muitas cenas míticas (nem sempre relacionadas) surgem no mesmo espaço, associadas a contextos fora do mundo sobrenatural, como representações do cotidiano: fazendeiros em atividade, pescaria, navegação, combates, duelos e cenas religiosas.
O livro Les pierres gravées de Gotland também apresenta um detalhado recenseamento das 440 estelas de Gotland atualmente conservadas, com minúcias sobre sua localização, tipologia e comentários estéticos, compensando em parte, a ausência de uma lista visual completa dos monumentos mais importantes. Apesar de não possuir análises detalhadas das esculturas, é uma importante indicação para o iniciante dos estudos de mitologia medieval, principalmente aqueles interessados em contrapor as cenas gotlandesas do período pagão com as mais importantes fontes literárias da temática, as duas Eddas, escritas após a conversão da Escandinávia.6 Para os pesquisadores avançados, um grande terreno para investigações encontra-se em aberto, e o manual de Nylém e Lamm pode ser um importante referencial. Mas muito além da simples análise iconográfica, outros procedimentos metodológicos são necessários. Analisar profundamente simbolismos presentes em contextos materiais, como estelas e inscrições rúnicas, requer maiores detalhamentos entre a relação dinâmica das cenas (conjunto de imagens, muitas vezes em sequência e com interrelação visual), o suporte e a espacialidade de toda a estrutura (localização, visualização e recepção social), algo bem diferente do que decodificar apenas os códigos estéticos e temáticos. 7
A leitura da obra Les pierres gravées de Gotland permite diversas questões, pertinentes aos escandinavistas: porque certas cenas mitológicas, como o Ragnarok, estão ausentes das estelas gotlandesas? Mas, ao contrário, são freqüentes na área britânica do período de conversão? O que motivou a ilha de Gotland a possuir o maior acervo visual da mitologia e religiosidade dos vikings, enquanto que em certas áreas com forte oralidade dos tempos pagãos, como a Islândia, não houve qualquer tipo de registro imagético? Qual o motivo da conservação das estelas em igrejas cristãs? Neste caso, qual o sentido de memória e conservação de monumentos pagãos para as comunidades, mesmo séculos após a conversão?
Com isso, percebemos que o livro de Nylém e Lamm pode constituir uma ferramenta bibliográfica importante não somente para os escandinavistas, mas para os medievalistas em geral, preocupados especialmente com a religiosidade, mitologia, imagem e cultura visual deste rico, mas ainda pouco explorado, imaginário da Idade Média.
Notas
2 “Entre os vários campos dos estudos medievalísticos (…) a mitologia é dos menos estudados. Fato em certa medida compreensível, diante das dificuldades teóricas que apresenta, vindas tanto do presente do estudioso como do passado estudado”. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010, p. 21. “(…) um terreno historiográfico que permanece ainda em grande parte por desbravar”. SCHMITT, Jean-Claude. Prefácio. In: FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 1996, p. 13.
3 Para estudos em português sobre os monumentos de Gotland, consultar: LANGER, Johnni. Morte, sacrifício e renascimento: uma interpretação iconográfica da runestone viking de Hammar I. Mirabilia 3, 2003, www.revistamirabilia.com, acesso em outubro de 2010; LANGER, Johnni. As estelas de Gotland e as fontes iconográficas da mitologia viking. Brathair 6(1), 2006, p. 10-41. www.brathair.com, acesso em outubro de 2010.
4 STEVENSON, Robert. The Inchyra stone and some others unpublished early Christians monuments. Proceedings of Society of Antiquaires of Scotland, 1958, p. 45. Disponível em: http://archaeologydataservice.ac.uk/catalogue/adsdata/PSAS_2002/pdf/vol_092/92_033_055.pdf, acesso em outubro de 2010.
5 Diversos arqueólogos já demonstraram, desde os anos 1960, a interferência de elementos culturais da área mediterrânica na Escandinávia, da Antiguidade Tardia até o século VIII, como a escrita etrusca na criação das runas, a importação de cerâmica e vasos de bronze do estilo romano clássico, a influência de motivos romanos em objetos cotidianos, entre outros. WILSON, David M. The Vikings and their origins: Scandinavia in the first Millennium. London: Thames and Hudson, 2003, p. 13-44.
6 Para uma introdução conceitual e bibliográfica sobre as Eddas, consultar: LANGER, Johnni. Mythica Scandia: repensando as fontes literárias da mitologia viking. Brathair 6(2), 2006, p. 48-78. www.brathair.com, acesso em outubro de 2010; LANGER, Johnni. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da UNB, 2009.
Resenhista
Johnni Langer – Pós-doutor em História Medieval pela USP. Coordenador do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (www.nevevikings.tk). E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
NYLÉN, Erik; LAMM, Jan Peder. Les pierres gravées de Gotland: aux sources de la sacralité Viking. Trad. Denise Bernard-Folliot. Paris: Éditions Michel de Maulf, 2007. Resenha de: LANGER, Johnni. Signum- Revista da ABREM, v. 12, n. 1, p.189-192, 2011. Acessar publicação original [DR]
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