Existe atualmente uma ampla literatura dedicada a refletir sobre as conexões entre história e internet. As revoluções que o universo online aporta nas práticas de pesquisa e ensino de história têm sido objeto de densas análises por especialistas em diversas áreas do campo historiográfico. O novo livro de Mateus Henrique de Faria Pereira adentra esse debate com uma contribuição original, que está situada nas fronteiras entre Teoria da História e História do Tempo Presente.
Professor da Universidade Federal de Ouro Preto, Mateus Pereira oferece ao público um livro conciso e denso, fruto de reflexões desenvolvidas pelo autor ao longo de quase uma década. Esse período de maturação é um dos fatores que explicam uma das principais qualidades da obra, a saber, a conjunção entre sofisticação teórica com fluidez da narrativa. A conciliação entre esses dois aspectos é tarefa nada simples, mas quando ela é alcançada – e esse é definitivamente o caso de Lembrança do presente – a experiência de leitura torna-se altamente enriquecedora. Ao mesmo tempo que o texto nos convida a parar para refletir sobre os tópicos abordados, o(a) leitor(a) não se sente cansado com a leitura, pois a prosa estimula a seguir adiante para acompanhar o fluxo da argumentação.
Publicado pela editora Autêntica, Lembrança do presente é composto por quatro ensaios, acrescidos de uma apresentação e um epílogo. O livro faz parte da coleção História & Historiografia, sob a coordenação da professora Eliana de Freitas Dutra. A proposta dessa coleção é oferecer ao público abordagens originais sobre questões de natureza teórica sobre a historiografia contemporânea. No caso de Lembrança do presente, tal originalidade reside na forma como o autor relaciona a emergência da “era da internet” com o conceito de condição histórica, definido como “a articulação entre o discurso sobre a historicidade e o discurso sobre a história” (Pereira 2022, 15). Dessa forma, o livro apresenta uma proposta de historicização do presente, mas o faz considerando as imbricações entre a ontologia da historicidade e a epistemologia da história e da historiografia.
O primeiro ensaio desenvolve os marcos teórico-metodológicos da História do Tempo Presente, discorrendo sobre suas possibilidades, limites e desafios. Nesse capítulo, Pereira observa uma certa “dificuldade da comunidade de historiadores em historicizar o atual e o imediato” (Pereira 2022, 32, grifo meu), acrescentando que “em geral, no Brasil, a história do tempo presente é, em grande medida, a história da Ditadura Militar, bem como de seus efeitos e permanências no presente” (Pereira 2022, 29). Neste ponto, cabe questionar o significado do verbo “historicizar” no contexto dessa passagem. Esse questionamento remete àquilo que Zachary Schiffman (2011, 2) chamou de “o princípio fundador da consciência histórica moderna”, a saber, a postulação de uma separação qualitativa entre passado e presente, no sentido de que o passado não somente é um tempo anterior ao presente, mas também e sobretudo um tempo ontologicamente distinto. É essa separação ontológica entre passado e presente que está na base das práticas de historicização da realidade consagradas pela consciência histórica moderna (Baumstark; Forkel 2016), isto é, a remissão de um evento ou processo presente às suas “origens” em um tempo passado mais ou menos distante, contextualizando-o a partir do horizonte de referências próprias do passado – uma regra basilar da moderna ciência da história e que ganhou forma como o “veto ao anacronismo”.
Ora, a história do tempo presente oferece uma possibilidade para tensionar essa prática consolidada de historicização, já que na base dessa corrente historiográfica está justamente uma reconsideração sobre as relações entre passado e presente (Delacroix 2018; Lohn; Campos 2017; Rousso 2016). No lugar de conceber essas duas instâncias temporais como sendo ontologicamente separadas, a história do tempo presente chama a atenção para os fenômenos que revelam a persistência do passado no presente: os “passados que não passam”. Visto dessa perspectiva, o presente não se apresenta como um ponto inextenso de transição entre passado e futuro, mas sim como um tempo carregado de densidade histórica – uma noção que é trabalhada ao longo de todo o livro por meio da categoria presente histórico.
Ao situar assim a tarefa da historicização do presente, Pereira coloca em termos mais operativos uma série de problemas teóricos que atravessam e motivam a história do tempo presente. Uma das questões mais frequentemente levantadas nesse campo de investigação consiste na periodização do que se chama de “tempo presente”: quando o presente começa, ou quando ele acaba? Como demarcar o limite cronológico do tempo presente? A partir do que foi exposto até aqui, pode-se observar que a resposta não deve passar necessariamente pela demarcação de uma fronteira cronológica rígida entre passado e presente, pois isso retira justamente uma das possibilidades teóricas mais interessantes da história do tempo presente.
É justamente nesse sentido que Pereira argumenta no seu primeiro ensaio que o historiador do tempo presente precisa trabalhar com um conceito de distância menos dogmático e mais flexível, lançando mão “da metáfora do jogo, ora agastando-nos do passado, ora presentificando-o por meio dos sentidos construídos pelos relatos históricos com vistas à abertura de futuros possíveis” (Pereira 2022, 25). Isso significa que o presente histórico não se configura como um tempo monolítico que subsiste por si mesmo, tampouco como um ponto inextenso de pura transição entre passado e futuro, mas antes como um tempo carregado de diversos estratos ou camadas de historicidade que coexistem de formas muitas vezes conflitivas entre si.
E é precisamente nas tensões entre as camadas de historicidade do presente histórico que Pereira focaliza as suas análises nos capítulos seguintes. Assim, o segundo ensaio analisa os conflitos de memória no contexto da Comissão Nacional da Verdade no Brasil (2012-2014), focalizando os embates ocorridos nas guerras de edição na Wikipédia. Destaca-se nesse capítulo uma reflexão densa sobre as estruturas retóricas, políticas e afetivas do negacionismo histórico, tendo em vista as estratégias de instrumentalização da memória da Ditadura Militar brasileira no universo online. Nesse sentido, a hipótese do autor é que a Comissão Nacional da Verdade levou a uma transição da lógica da não inscrição da memória dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura – materializada pela Lei de Anistia e a impunidade aos perpetradores dos crimes – para um regime de “inscrição frágil”, isto é, em fase inicial de elaboração e/ou fixação no discurso público. Mas, paradoxalmente, essa inscrição frágil tem sido alimentada e amplificada pelo negacionismo, sendo este um dos “efeitos imprevistos” pela instauração da Comissão Nacional da Verdade.
O terceiro ensaio trata sobre a poética das formas populares de historiografia, colocando novamente no centro da reflexão a escrita da história na Wikipédia, um dos sites mais visitados da internet. O ensaio apresenta as controvérsias sobre o papel da Wikipédia como um dos principais centros difusores de cultura histórica atualmente, apresentando posições diversas como as de Roy Rosenzweig (2011), Roger Chartier, bem como as iniciativas mais recentes de Flávia Varella e Rodrigo Bonaldo (2020). Mateus Pereira mostra como a escrita da história na Wikipedia revela permanências e mudanças com relação à forma canônica da escrita historiográfica. Do lado da permanência, nota-se a presença de virtudes epistêmicas como a factualidade e a imparcialidade, associadas ao modelo de narrativa realista herdado do século XIX. Já do lado das mudanças, o texto destaca as mutações ocorridas com a noção de arquivo e, especialmente, com relação à função-autor.
O quarto ensaio continua a proposta de revelar a densidade temporal própria ao presente histórico. Mas desta vez, o foco incide nos projetos de futuro que têm emergido em nossa contemporaneidade. Isso por si só merece atenção, já que uma das premissas que motiva o livro de Pereira é a desidentificação entre história e tempo passado. Nesse sentido, o capítulo gira em torno da noção de transparência, que o autor afirma ser um dos principais projetos de futuro de nossa condição atualista (Pereira 2022, 96; ver também Araujo; Pereira 2018). Inspirado em um ensaio de Byung Chul-Han (2017), Pereira argumenta que o ideal da transparência ganhou tamanha proporção em nossa contemporaneidade em função de um ambiente marcado pela espetacularização e novelização de escândalos políticos que se repetem em um fluxo constante, em nome de um “combate à corrupção” que, como a experiência brasileira recente tem mostrado, traz como consequência visível um forte processo de negação da política. Em outras palavras, a própria política como meio de mediação e resolução de conflitos se torna refém da lógica do espetáculo, como a experiência da Operação Lava Jato e sua cobertura por veículos de mídia tradicional demonstrou. Mas essa lógica da transparência chega também ao paroxismo, ao ponto de voltar-se contra si mesma, como também demonstrou o caso Vaza Jato.
Em todos esses casos, nota-se como o ideal da transparência tem borrado as fronteiras entre público e privado, tal como demonstra diversos casos recentes de vazamentos de mensagens privadas no espaço público. O imperativo da exposição constante e da transparência total são dois lados da mesma moeda, com resultados decisivos na vida política. Amplificadas pela lógica das redes sociais online, o paradigma da transparência é levado ao extremo, o que nos faz pensar se com isso não apenas a política entra em descrédito, mas também o próprio conceito de corrupção tende a se dissolver – afinal, se entendermos por corrupção a apropriação privada de bens públicos, como manter esse conceito no imaginário social se a própria distinção entre público e privado estaria desaparecendo em função da adesão acrítica do ideal de transparência? Assim, a análise de Pereira revela como a transparência – que, por certo, pertence ao conjunto de princípios fundamentais da política democrática – pode ser manipulada em um sentido moral, gerando assim efeitos despolitizantes na sociedade brasileira atual.
No epílogo, Mateus Pereira apresenta o conceito que dá nome ao seu livro, lembrança do presente, que conecta o conjunto das reflexões feitas ao longo da obra. Isto é, se a proposta do livro é oferecer um caminho de historicizar o tempo presente, revelando as diferentes camadas de historicidade que o compõem, o conceito de lembrança do presente parece bastante promissor. A inspiração de Pereira provém de um ensaio de 1908 escrito pelo pensador francês Henry Bergson (2006), que cunhou o conceito para decifrar o enigma de quando se forma a lembrança.
Como é sabido, o pensamento bergsoniano é profundamente marcado pela produção de diferenças. Como base do seu método de pensar, Bergson postulou uma “meta-diferença” fundamental, a saber, entre as diferenças de grau e as diferenças de natureza (ver também Deleuze 2012). Para o filósofo francês, o pensamento deve ser capaz de distinguir esses dois tipos de diferença na análise dos fenômenos. Em Matéria e Memória, por exemplo, Bergson argumentara que memória e percepção comportam entre si uma diferença de natureza, ao contrário da tradição metafísica que tendeu a ver apenas uma diferença de grau entre eles, como se a lembrança fosse a forma mais “fraca” da percepção.
É a partir dessa crítica que Bergson apresenta sua tese no referido artigo de 1908, segundo a qual a lembrança não é formada posteriormente, mas sim simultaneamente à percepção. Vale dizer, a lembrança se forma no presente vivido, não no passado. Isso se dá porque a lembrança diz respeito à dimensão da virtualidade da experiência vivida, ao passo que a percepção representa a atualidade dessa experiência. Virtualidade-lembrança e atualidade-percepção são duas dimensões que constituem a experiência humana no mundo, mantendo entre si diferenças de natureza e não de grau. Correlativamente, o pensador francês postulou que passado e presente são contemporâneos entre si, já que também guardam uma diferença de natureza (virtualidade e atualidade), e não apenas de grau, como se possuíssem uma relação de mera anterioridade/posteridade no tempo.
Porém, se a lembrança se forma no presente e não no passado, isso implica que pode haver circunstâncias nas quais a forma da lembrança (virtualidade) se confunde com o conteúdo concreto do que é percebido (atualidade). Quando isso ocorre, o resultado é a sensação de que a percepção presente é remetida ilusoriamente para o passado – tal é a explicação de Bergson para o fenômeno do déjà vu, ou falso reconhecimento. Todos somos familiarizados com essa sensação em nível pessoal. Mas Pereira, em diálogo com o filósofo italiano Paolo Virno (1999), propõe transpor esse par conceitual de Bergson – lembrança do presente e falso reconhecimento – para o nível social.
Nesse sentido, o falso reconhecimento remete à sensação de uma estagnação temporal, de apatia, indiferença e desatenção à vida e à ação. O falso reconhecimento induz a compreensão de que o futuro está fechado à ação, bem como a ideia de que o presente nada mais é do que a repetição do passado, constituindo assim o seu próprio horizonte. Para o autor, o fenômeno do falso reconhecimento é amplificado pela internet, pois ela favorece a percepção de um presente encerrado na pura atualidade, destituído da dimensão potencial ou virtual que o passado e o futuro aportam à experiência temporal.
Contrariamente a essa ilusão, a noção de lembrança do presente teria a potência de mostrar como o presente abarca em si passados e futuros diferenciados, e justamente por essa diferença, o conceito revela os horizontes de possibilidades para a ação histórica em uma dada circunstância particular no limiar do tempo-kairós, isto é, o tempo oportuno para a ação certa e resoluta (ver também: Ramalho 2021). Em vez de se limitar à lembrança de fatos ocorridos em um passado mais ou menos distante, a história do tempo presente teria a capacidade de produzir a lembrança do presente (e não a lembrança “no” presente), no sentido de mostrar como o tempo presente é constituído por múltiplas camadas de historicidades que, por sua vez, nos revelam diferentes possibilidades de discurso e de ação histórica. Esse quadro teórico nos ajuda ainda a problematizar as afirmações de que a história do tempo presente seria a forma de consciência histórica adaptada ao “regime de historicidade presentista” (Hartog 2013), já que o que está em questão é a própria maneira como se concebe as relações entre passado, presente e futuro – não como instâncias temporais ontologicamente separadas, mas sim em constante enlaçamento e modalização.
Como se vê, o livro de Mateus Pereira oferece um conjunto de ricas reflexões para leitoras e leitores interessadas(os) em refletir sobre os impactos da era da internet nas formas de percepção do tempo, nos modos de circulação do passado no presente – considerando suas implicações epistemológicas e ético-políticas –, o problema dos negacionismos históricos, as poéticas populares da história no universo online, bem como os projetos sociais de futuro que circulam em nossa contemporaneidade. E ainda, do ponto de vista da Teoria da História, Lembrança do presente pratica um tipo de historicização que vai muito além da operação de (re)contextualização de um evento ou processo presente em um passado mais ou menos ausente e distante, já que é a própria separação entre passado e presente que está posta em jogo. Pois não se trata de pensar o presente como o tempo “no qual” se lembra do passado; mais que isso, trata-se de propor uma lembrança do presente como um tempo enriquecido de passados e futuros, que conformam a nossa condição histórica na era da internet.
Referências
ARAUJO, Valdei Lopes de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. 2ª ed. Vitória: Editora Milfontes / Mariana: Editora da SBTHH, 2019.
BAUMSTARK, Moritz; FORKEL, Robert (orgs.). Historisierung: Begriff, Geschichte, Praxisfelder. Sttugart: Metzler Verlag, 2016.
BERGSON, Henri. A lembrança do presente e o falso reconhecimento. Trans/Form/Ação, Vol. 29, No. 1, pp. 95–121, 2006.
DELACROIX, Christian. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Tempo e Argumento, Vol. 10, No. 23, pp. 39‐79, 2018.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa Souza Menezes et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013
LOHN, Reinaldo Lindolfo; CAMPOS, Emerson Cesar de. Tempo presente: entre operações e tramas. História da Historiografia, Vol. 10, No. 24, pp. 97-113, 2017.
RAMALHO, Walderez. Outros tempos, outras histórias: kairós, manifesto, crise. 2021. 178 f. (Tese de doutorado – História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Mariana, MG, 2021.
ROSENZWEIG, R. Clio Wired: The Future of the Past in the Digital Age. New York: Columbia University Press, 2011.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.
SCHIFFMAN, Zachary. The Birth of the Past. Baltimore: John Hopkins University Press, 2011.
VARELLA, Flávia; BONALDO, Rodrigo. Negociando autoridades, construindo saberes: a historiografia digital e colaborativa no projeto Teoria da História na Wikipédia. Revista Brasileira de História, Vol. 40, No. 85, pp. 147-170, 2020.
VIRNO, Paolo. Il ricordo del presente. Saggio sul tempo storico. Torino, Bollati Boringhieri, 1999.
Resenhista
Walderez Ramalho – Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: walderezramalho@gmail.com orcid.org/0000-0002-1314-6995
Referências desta Resenha
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. História & Historiografia. Resenha de: RAMALHO, Walderez. Historicizar o tempo presente na era da internet. Revista de Teoria da História. Goiânia, v. 25, n.2, p.326-332, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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