Lelé: diálogos com Neutra e Prouvé | André Marques
Ô Abilio Guerra!
Você me pede o impossível. Confesso que não consigo resenhar o livro de André Marques com a isenção e objetividade apreciadas pelos leitores do portal Vitruvius. Digo isso porque fui abduzido pelo talento e dedicação desse jovem pesquisador que, findo o mestrado sobre a obra de Lelé (1), sentiu necessidade de estudar, em sua tese de doutorado, a obra do arquiteto Aldary Toledo (2), meu pai, a quem Lelé chamava de mestre.
Lendo o livro voltei à 1963, ano em que, guiado por Lelé, conheci Brasília. Em sua companhia, me emocionei ao entrar na Catedral, obra prima de Oscar Niemeyer, seu amigo e mentor. Nesse mesmo dia visitei os prédios da Superquadra Sul 109, projetados por papai para o Instituto de Aposentados e Pensionista Bancários – IAPB, e o Conjunto Colina, o maior projeto de Lelé na UnB. Encantado com a articulação e acabamento dos componentes pré-fabricados, aplicados sem revestimento, e a perfeição de cada detalhe, deixei de ver em Lelé apenas o discípulo que tocava acordeom lá em casa, antes das aulas semanais que ele e alguns colegas de faculdade tinham com papai, varando a noite falando sobre arquitetura, artes plásticas, música e literatura. Depois da ida ao Colina, vi nele o grande arquiteto que viria a ser, talvez o maior de sua geração.
Circunstâncias como essas, meu caro Abilio, me impedem de te atender como gostaria. O melhor que consegui fazer foi este arremedo de resenha – na melhor das hipóteses uma não-resenha –, pois nela não escondo minha reverência pela arquitetura do extraordinário ser humano que foi João Filgueiras Lima e a emoção de revisitar a obra de um amigo, guiado pelas palavras e desenhos de outro. Vamos à ela.
O título Lelé: diálogos com Neutra e Prouvé é, sem dúvida, um achado; embora algo tímido diante do esforço do autor em fazer Lelé dialogar com uma plêiade de arquitetos brasileiros e estrangeiros, além dos nomeados Neutra e Prouvé. Diálogo travado “sobrancelha com sobrancelha”, como diria Maiakovski (3); e esta é a grande contribuição deste livro que coloca a arquitetura de Lelé ao lado e, por vezes a cavaleiro, da obra dos maiores arquitetos de seu tempo.
O prefácio de Abilio Guerra é primoroso, faz a gente imaginar como terá sido o encontro entre orientador e mestrando, ambos obsessivos com a qualidade e profundidade da pesquisa que deu origem a esse belo livro (4). Dá uma importante contribuição às futuras pesquisas sobre a produção multifacetada de João Filgueiras Lima, garimpando pesquisas, teses, dissertações e artigos que tratam da obra deste grande arquiteto.
Ao levantar as principais influências de Lelé, sempre atento às inovações tecnológicas e à arquitetura mundial, André chama a atenção para a singularidade da obra de Lelé, a começar pelo controle quase absoluto que exerceu sobre projeto e construção. Controle este ameaçado somente pela descontinuidade administrativa de governantes que, por interesses nem sempre republicanos, fecharam as fábricas de componentes pré-fabricados e inviabilizaram o Instituto Brasileiro do Habitat – IBH, todos criados por ele.
O autor não só visitou todas as obras que descreveu, mas também as redesenhou, suprindo o leitor com informações que só o desenho é capaz de visualizar, especialmente quando desenha processos construtivos e detalhes arquitetônicos, fundamentais para compreensão da dimensão da obra de Lelé.
O livro destaca a importância social, cultural e econômica da atuação do arquiteto, seu respeito pelo meio ambiente, operários e parceiros, que o ajudaram a erguer sua obra. Mostra que João Filgueiras Lima foi um mestre em diversas escalas, projetando desde grandes centros administrativos, hospitais, escolas, centros de atendimento à crianças – os Ciacs –, uma dezena de residências, milhares de mobiliários urbanos espalhados por diversas cidades brasileiras – dentre eles: pontes, passarelas, abrigos de ônibus, muros de arrimo, equipamentos, elevadores –, e móveis hospitalares – dentre os quais uma cama-maca de desenho inovador, sempre aperfeiçoada por um arquiteto que nunca se contentava com a obra realizada, revendo-a continuamente.
André nos revela que nada era grande ou pequeno demais para a prancheta de Lelé. Independentemente da escala, seu desenho não só considerava os processos construtivos, mas os reinventava em busca de eliminar desperdícios, minimizar impactos ao meio ambiente, reduzir custos, sem jamais renunciar à criatividade e à beleza.
A singularidade da obra de Lelé se manifesta nas dez fábricas de componentes industrializados que criou entre 1978 e 2014: desde a mais simples, em Abadiânia GO – que foi implantada graças aos recursos obtidos com a venda de um Opala, carro oficial do prefeito –, até a mais completa e automatizada de todas, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah. Neste sentido, o arquiteto torna-se o artífice que inventa e fabrica as ferramentas com as quais controla seus projetos do desenho à fabricação e montagem.
Essa habilidade tão característica de pensar em toda a execução, e não somente no produto final, faz com que Lelé revise constantemente seu processo. Um exemplo fácil de se notar são as coberturas em shed, que passaram por um aperfeiçoamento contínuo. Esta solução adotada pelo arquiteto permite o controle ativo e passivo do conforto ambiental das áreas internas, bem como a segurança biológica. Em outras palavras, o uso dos sheds evita a necessidade de um sistema de ar condicionado que, devido a seu processo de recirculação do ar, aumenta o risco de contaminação dentro dos hospitais; além de evitar, também, a ventilação cruzada de um ambiente a outro. Com as galerias de ventilação, associadas aos sheds na cobertura, é possível a renovação constante do ar a partir dos princípios de convecção: o ar novo e mais fresco passa pelas galerias subterrâneas, entra nos ambientes e é retirados pelos sheds da cobertura. No último hospital construído para a Rede Sarah – o Hospital Sarah Rio de Janeiro –, as condições climáticas da cidade fizeram com que Lelé optasse por um sistema misto, possibilitado pela mecanização da cobertura.
André assinala também a parceria de Lelé com as arquitetas paisagistas Beatriz Secco e Alda Rabello Cunha, sua esposa, e com o artista Athos Bulcão, cuja obra se funde com a de Lelé nos hospitais da Rede Sarah. A arquiteta Adriana Filgueiras Lima, sua filha e com quem dividiu o amor pela música, começa a trabalhar com Lelé em 1987, na Fábrica de Equipamentos Comunitários – Faec, em Salvador. Em poucos anos, tornou-se sua principal colaboradora e o ajudou a erguer o Sarah Lago Norte e o Memorial Darcy Ribeiro, em Brasília; o Centro de Reabilitação e o Hospital Sarah Rio, no Rio de Janeiro; dentre outras obras icônicas. Além da parceria nos projetos, Adriana assumiu a Direção Administrativa Financeira do Instituto Brasileiro do Habitat, última fábrica idealizada por Lelé.
Como paciente, passei alguns anos visitando semanalmente o Sarah Rio, percorrendo espaços magníficos, entremeados de jardins e recebendo o atendimento primoroso da equipe fiel aos preceitos de Aloysio Campos da Paz. Ainda hoje, guardo a impressão de que o Sarah não era apenas um edifício, mas sim um ser vivo que respirava quando os imensos sheds se abriam.
Caríssimos leitores, escrever sobre o quanto a arquitetura de Lelé faz bem a todos nós, especialmente aos mais fragilizados e vulneráveis pela doença ou pobreza, é sempre um prazer, embora me comova demais. Assim, é melhor ficarmos por aqui. No entanto, para aqueles que desejarem continuar a caça por uma verdadeira resenha, sugiro que não percam tempo: comprem o livro de André Marques e comecem a lê-lo pelo excelente posfácio de Paulo Bruna.
Notas
NE – Os redesenhos da obra de João Filgueiras Lima, Lelé, que ilustram a resenha não fazem parte do livro, nem da dissertação de mestrado da qual a publicação é seu desdobramento, pois foram desenvolvidos a partir de 2012.
1MARQUES, André Felipe Rocha. A obra de João Filgueiras Lima, Lelé: projeto, técnica e racionalização. Orientador Abilio Guerra. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2012.
2MARQUES, André Felipe Rocha. Aldary Toledo: entre arte e arquitetura. Orientador Abilio Guerra. Tese de doutorado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2018.
3Poema “Carta a Tatiana Yakovleva”, do poeta Vladimir Maiakovski (1893-1930).
4GUERRA, Abilio. Como se escreve uma dissertação. Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 227.03, Vitruvius, nov. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.227/7945>.
Resenhista
Luiz Carlos Toledo – Arquiteto, mestre e doutor pelo Proarq UFRJ, diretor da Mayerhofer & Toledo Arquitetura, autor do Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha (2006) e diretor da Casa de Estudos Urbanos. Recebeu do IAB-RJ o título de Arquiteto do Ano em 2009. Autor do livro TOLEDO, Luiz Carlos. Feitos para curar. 2a edição. Rio de Janeiro, Rio Books, 2020; premiado na categoria Produção Teórica da 58a Premiação Anual do IAB-RJ.
Referências desta Resenha
MARQUES, André. Lelé: diálogos com Neutra e Prouvé. Prefácio Abilio Guerra e posfácio Paulo Bruna. São Paulo/Austin: Nhamerica Platform; Romano Guerra, 2020. Resenha de: TOLEDO, Luiz Carlos. Uma não-resenha do livro Lelé – diálogos com Neutra e Prouvé. Resenha Online. São Paulo, n. 229, jan. 2021. Acessar publicação original [DR]