Leituras das Escandinávia Medieval | Signum – Revista da ABREM | 2015
A história da Escandinávia na Idade Média é bastante visitada no âmbito dos estudos medievais, sobretudo no contexto da historiografia anglo-saxônica e escandinava. Diversas foram e são as leituras realizadas na historiografia moderna a respeito do espaço escandinavo medieval, desde a busca por uma cultura germânica pura, até recentes investigações que evidenciam o caráter formativo do espaço nórdico em sua integração na dinâmica continental europeia. No Brasil, onde a primeira tese de doutorado defendida em história medieva, em 1942, apresentava um tema ligado, ainda que indiretamente, ao espaço escandinavo, o interesse pelos processos históricos ocorridos no espaço nórdico europeu vem crescendo sistematicamente desde ao menos o início do presente século, com a formação de grupos de pesquisa e o surgimento de um significativo corpo de acadêmicos especializados. Parte desse crescimento tem colocado a historiografia brasileira em contato direto com os tradicionais círculos de estudo sobre a Escandinávia na Idade Média, assim como tem propiciado a formação de polos regionais, através das florescentes trocas e diálogos com colegas na América Latina e Península Ibérica. Ao mesmo tempo, muitos trabalhos relacionados à Idade Média escandinava permanecem ainda vinculados a abordagens e perspectivas já superadas no cenário internacional, contribuindo para a baixa receptividade de alguns trabalhos brasileiros fora do contexto nacional.
Os motores do impulso observado pelos estudos escandinavos no Brasil são múltiplos, e constituem reações a uma retomada dos temas ligados à cultura e à história nórdica nos ambientes culturais do ocidente. O sucesso de obras literárias, como os trabalhos de J. R. R. Tolkien, transformados em películas cinematográficas de grande impacto e êxito comercial e crítico, além de séries de televisão, como “Vikings”, tem colocado as grandes massas em contato com representações do passado, aumentando o interesse pelo estudo de um tema por muito tempo marginal no cenário brasileiro. Ao mesmo tempo, o crescente interesse por temas da Escandinávia no período medieval se insere no movimento mais amplo de expansão dos estudos medievais no Brasil, vivenciado desde meados da década de 1990, e em passo acelerado no último decênio. Consequentemente, observa-se uma proliferação de grupos de pesquisa ligados ao estudo da Idade Média, assim como também em específico para o caso das investigações sobre a Escandinávia no período.
Dentre os grupos de pesquisa voltados para o estudo da história da Escandinávia na Idade Média, o mais recente, formado neste ano de 2015, é o Grupo de Pesquisa “Leituras da Escandinávia Medieval”, que dá título também ao presente dossiê. Partindo de uma concepção teórica vinculada à Vorstellungsgeschichte, cuja proposta está focalizada na investigação das concepções e idealizações dos sujeitos no passado, à Antropologia Histórica e à História Cultural, o grupo se organiza em torno das diversas leituras realizadas pelos autores medievais acerca da Escandinávia. Desse modo interessa ao grupo as relações entre a Escandinávia e os mundos franco, anglo-saxão e germânico, bem como a integração do território nórdico na dinâmica continental europeia do período medieval. Trata-se, portanto, de uma proposta que vem complementar o ambiente de estudos sobre a Escandinávia medieval, deslocando a centralidade das pesquisas para o contexto das inter-relações entre os povos e culturas. Compreender, como se dão as interações entre o continente e a região escandinava, e quais os mecanismos utilizados pelos autores medievais em suas diversas leituras do Norte, nos fornece não somente uma melhor compreensão dos processos históricos, mas também das mentalidades medievais, que propiciam tais leituras. A partir das contribuições almejadas pelo grupo de pesquisa pretende-se, em cooperação com os grupos já existentes no Brasil, aumentar a difusão do conhecimento sobre a Escandinávia medieval no contexto nacional, bem como consolidar os esforços de internacionalização da produção brasileira sobre o tema, através de uma clara proposta de cooperação com especialistas de diversas tradições historiográficas.
Tal proposta se enquadra, ainda, no projeto mais amplo de desenvolvimento científico-acadêmico proposto para o Brasil, na medida em que se volta para a internacionalização da academia brasileira através de sua inserção nos debates internacionais em torno dos mais variados temas. Assim, o fortalecimento das pesquisas no âmbito da história da Escandinávia medieval cumpre seu papel, ao colocar pesquisadores brasileiros em contato, através das redes de pesquisa, com especialistas de todo o mundo voltados ao mesmo tema. Ao mesmo tempo, a proposta coloca uma exigência às pesquisas produzidas no Brasil, de constante atualização e diálogo com colegas dos mais variados escopos teóricos e abordagens historiográficas, a fim de manter o elevado nível da produção nacional assim como seu potencial para a inserção do Brasil no cenário internacional das pesquisas medievais acerca da Escandinávia na Idade Média.
A proposta do dossiê temático deste número da Revista Signum segue nesta direção. Ao propor como tema das investigações as “leituras” da Escandinávia medieval, buscou-se cobrir uma gama de possibilidades de abordagem do espaço nórdico na Idade Média, multiplicidade que creio tenha sido alcançada pelos estudos reunidos neste volume. Assim contamos com a investigação de Daniele Gallindo Silva e Tiago Quintana, que aborda as representações e reinterpretações da cultura escandinava na literatura contemporânea. Os autores baseiam-se na recente obra de Neil Gaiman, Odd e os gigantes de gelo, na qual observam a recuperação de uma série de elementos culturais próprios – ainda que não exclusivos – do universo escandinavo e sua transposição para uma realidade diversa daquela na qual tais elementos foram concebidos. Os autores iniciam a investigação lançando um olhar sobre alguns elementos constitutivos do universo sociocultural da Escandinávia na Idade Média, enfatizando elementos representados nas obras literárias do período – poesias eddaicas e skaldicas, assim como as sögur. Ao mesmo tempo, destacam os construtos literários fantásticos e míticos dos escandinavos, e apontam para sua função na formação do imaginário social escandinavo de sua época. Em seguida os autores voltam seus olhares para uma obra literária lançada em 2008 por Neil Gaiman, que, ao ambientar-se na Escandinávia da “Era Viking”, retoma elementos típicos da literatura fantástica e mítica do período medieval, ressignificando-os, todavia, a fim de torná-los atraentes ao público atual. Os autores concluem indicando que a retomada de elementos da mitologia e da cultura escandinava na literatura recente pressupõe uma inversão de características fundamentais do arquétipo heroico da literatura medieval, reflexo, sem dúvida, das expectativas e projeções em relação a um passado “viking”, contidas, todavia, num setting cultural contemporâneo. Seguindo Björn Sundmark2, os autores apontam que a imagem do viking na literatura contemporânea não apresenta nenhuma conexão com uma realidade histórica, geográfica e cultural específica.
O interesse pelo passado escandinavo, especialmente pela representação do “viking”, não se detém nem nos círculos de literatura fantástica – como já mencionei, tais representações estão presentes na arte, espaço privilegiado para dar materialidade ao imaginário, de modo geral. O cinema e a televisão, incluindo-se aqui os formatos digitais modernos, desenvolvidos para o ambiente cibernético, são hoje talvez os principais veículos de formação e transmissão de imagens sobre o passado escandinavo. Voltando os olhos para o passado, todavia, encontra-se com facilidade na música, nas artes performáticas e plásticas, diversas formas de representação do “viking”. A ópera de R. Wagner e as representações pictóricas do romanticismo europeu são apenas alguns exemplos.
Como o artigo apresentado nesse dossiê por Vinicius Cesar Dreger de Araujo, os problemas de representação do passado escandinavo não se restringem aos tempos modernos, nem a culturas distantes daquela. Muito pelo contrário, ao investigar as memórias do passado escandinavo entre as populações normandas nos territórios da Francia e no posterior reino normando da Sicília Dreger nos presenteia com uma investigação de grande importância a respeito da relação das populações ditas normandas após a sua diáspora na Alta Idade Média. É exatamente com a conceptualização da expansão dos povos escandinavos enquanto um movimento de diáspora que o autor inicia seu trabalho. Em seguida, Dreger se dedica à análise da representação do passado escandinavo em dois contextos: entre os normandos no norte da França, nos séculos X e XI; e no século XI e início do XII no Sul da península itálica e na Sicília. Sua análise se concentra sobre obras historiográficas do período e busca ali elementos de referência ao passado escandinavo ou de identificação dos atores presentes nos relatos enquanto descendentes ou membros de uma tradição escandinava. Seu interesse se volta assim para o problema de uma etnopoiesis normanda no contexto do estabelecimento de novos territórios ocupados pelos normandos. Dentre os elementos que se destacam em sua análise este a ausência de uma referência mais marcante do passado escandinavo nos relatos historiográficos sobre o estabelecimento dos normandos em novos territórios, sobretudo no contexto da Itália meridional, em que tais referências são praticamente ausentes, enquanto entre os franco-normandos exista ainda uma memória de um passado mítico marcadamente escandinavo. Tais dados apontam, como o autor conclui, para elementos característicos do processo de expansão dos escandinavos e dos normandos no período entre os séculos X e XI, quais sejam, a hibridização cultural e a transculturalidade de suas comunidades como elementos fundamentais para o sucesso das empreitadas de colonização. Tais são os mitos sobre os quais a formação de uma identidade étnica se baseia no reino ítalo-normando.
Mitos de origem são o tema do trabalho de Elton Oliveira Souza de Medeiros. Seu trabalho lida, todavia, com o estudo de materiais ainda pouco visitados pela historiografia, a saber, as genealogias medievais no contexto anglo-saxão e escandinavo na Alta Idade Média. Ao autor interessa em seu trabalho sobretudo a figura mítica de Sceaf, figura lendária que aparece em genealogias de mitos fundadores tanto anglo-saxões quanto escandinavos. Por se tratarem de mitos fundadores, Medeiros considera as genealogias também como elemento constituidor de uma identificação nacional, elemento que trabalha teoricamente no início de seu artigo. Ele alerta o leitor – o que considero primoroso em seu argumento – que, embora a ideia de nação esteja carregada por um aparato ideológico atrelado às ideias do iluminismo e do positivismo, sociedades anteriores a este período, como é o caso das sociedades medievais, apresentam em seus discursos identitários elementos que remetem a noções nacionais. Nesse sentido, torna-se fundamental problematizar a questão das identidades étnico-sociais também a partir de categorias, conquanto explícitas, que toquem o conceito de formação nacional anterior ao advento do Estado-Nação e do Nacionalismo modernos. A partir dessas considerações iniciais, Medeiros passa a investigar a presença de algumas figuras chave, especialmente Sceaf, em listas genealógicas anglo-saxãs e escandinavas, apontando para o papel de formação identitária “nacional”, por um lado, e de incorporação de elementos culturais externos, na forma de hibridismos e apropriações, por outro. Conclui, então, com a indicação da necessidade de desmistificação do passado germânico e o abandono de noções tais como o pangermanismo, que falseiam a complexa dinâmica cultural existente no período, marcado por intrincados sistemas de transferência, apropriação e hibridização cultural. Assim, o autor sugere que é preciso repensar tanto as categorias analíticas, como também os modelos interpretativos subjacentes a elas. Ao fim de seu trabalho, Medeiros inclui ainda a tradução completa do prólogo da Snorra Edda, importante obra literária de caráter mítico-histórico acerca da Escandinávia pré-cristã, composta na Islândia do século XIII por Snorri Sturluson. Trata-se da primeira tradução completa, diretamente do nórdico antigo para a língua portuguesa, de texto fundamental para o estudo dos mitos de origem das populações germânico-escandinavas.
Em um artigo sobre a dinâmica da troca de presentes dentro das sociedades escandinava Santiago Barreiro aborda dois contos presentes nos corpora das sagas islandesas. O autor inicia seu artigo apontando para a importância dos textos selecionados dentro do corpus da literatura das sagas, sem ignorar, todavia, sua singularidade temática no mesmo contexto. Isso porque ambos os textos estão centrados em torno da troca de presentes (gift-giving) e apontam para a função social das relações materiais fora do contexto de uma economia monetária. Ao mesmo tempo, os textos analisados apontam para modelos de conduta para a cultura escandinava, evocando questões éticas presentes nas relações materiais existentes entre indivíduos de status distintos. Barreiro realiza em seguida um balanço das teorias antropológicas e sociológicas em torno do fenômeno das trocas materiais e da circulação de bens em contextos externos à lógica de mercado, destacando sobretudo a teoria de Marcel Mauss, a qual considera especialmente frutífera na análise do contexto escandinavo representado nas sagas islandesas. Ao longo de sua análise, o autor aponta para as distinções existentes entre os relatos, sobretudo em torno dos objetivos envolvendo a troca de presentes, concluindo que se trata de um reflexo do processo de acumulação de poder e de centralização política e territorial ocorrido na Islândia no período que separa a composição de ambos os contos. Finalmente, Barreiro aponta ainda para as especificidades envolvidas em uma aproximação interpretativa diacrônica das sagas, que destaca seu contexto de composição, sem, contudo, negar o vasto debate em torno do caráter literário das obras. Sua proposta se coloca, assim, sob uma ótica antropológica, mantendo no horizonte, evitando, todavia, a generalização de uma atemporalidade das sagas.
O artigo de Santiago Barreiro traz o dossiê em contato com a antropologia e a sociologia, reforçando o caráter interdisciplinar das investigações em torno das leituras da Escandinávia medieval, elemento que já havia sido introduzido pelos trabalhos de Daniele Gallindo Silva e Tiago Quintana, assim como de Elton O. S. de Medeiros em relação à literatura. O artigo de André Szczawlinska Muceniecks nos traz ainda outra contribuição de caráter interdisciplinar, a fim de enriquecer os debates em torno do norte escandinavo, a saber, a construção da categoria histórico-geográfica de “Leste” em fontes cartográficas e literárias dos séculos XIII e XIV na Islândia. Muceniecks inicia seu artigo abordando os problemas conceituais envolvendo a análise histórica da terminologia geográfica, cuja acepção é polissêmica e conceitualmente carregada. O termo escolhido para a investigação, o “Leste”, extrapola assim uma noção semântica ligada somente aos pontos cardeais da orientação cartográfica. O autor segue, então, abordando um breve histórico das tradições conceituais em torno da produção de representações cartográficas globais, dos mappae mundi antigos, e suas permanências e influências na Idade Média, destacando o fato de que os mesmos se prestam a uma leitura tipológica da realidade e não a uma representação espacial, elemento que surgirá no ocidente somente no período moderno. Muceniecks passa, em seguida, à análise de alguns mappae mundi produzidos na Islândia entre os séculos XIII e XIV, nos quais observa a construção de um conceito de “Leste”, este que compara com construtos narrativos literários. Ele conclui seu texto demonstrando como mesmo uma produção escandinava segue ainda modelos representativos clássicos e bíblicos, que apontam para o trânsito cultural experimentado na Islândia.
Creio que com esta breve apresentação dos trabalhos reunidos no presente dossiê os leitores tenham despertado seu interesse em sua leitura. Como o próprio termo sugere, também esta será uma Leitura da Escandinávia medieval, pois ela será dinâmica, instigada pelos problemas e pelas hipóteses dos autores, ricas como sem dúvida o são, mas de forma alguma finais. São pontos de partida para o debate, elementos que devem instigar a discussão e o desenvolvimento da investigação histórica, ampliando, através da pesquisa excelente, a participação da produção acadêmica brasileira nos debates internacionais e alcançando, com isso, a almejada internacionalização de nossa academia. Em parte, creio que isso já foi alcançado com os presentes trabalhos, e estou certo que estes instigarão novas pesquisas e novos debates. Desejo aos leitores, além disso, uma leitura prazerosa dos textos, que além de nos brindarem com a excelência acadêmica dos autores, se apresentam de forma acessível e agradável.
Nota
2 SUNDMARK, Björn. Wayward warriors: the viking motif in Swedish and English children’s literature. Children’s Literature in education, v. 45, n. 3, p. 197-210, 2013.
Organizador
Lukas Gabriel Grzybowski – Doutor pela Universität Hamburg (Alemanha), pós-doutorado em andamento na Universidade de São Paulo.
Referências desta apresentação
GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. A Escandinávia na Idade Média em suas múltiplas leituras. Signum- Revista da ABREM, v. 16, n. 3, p.1-7, 2015. Acessar publicação original [DR]