O livro de Libertad Borges Bittencourt, Leituras canônicas e tradição pátria, é uma excelente leitura para aqueles interessados em história da América Latina, mas também uma contribuição para as discussões de história do pensamento histórico e teoria pós-colonial ou teorias da colonialidade do poder. A autora aborda, numa perspectiva de história conectada (p. 12), a forma como três ensaístas latino-americanos pensaram o desafio da superação da condição colonial (p. 20). Os três autores em enfoque foram o chileno Francisco Bilbao, o argentino Domingos Faustino Sarmiento e o mexicano Justo Sierra. O livro nasce da pesquisa de pós-doutorado da professora da Universidade Federal de Goiás. Após pesquisar amplamente sobre organizações indígenas na América Latina, a autora se volta para a história do pensamento social no continente no pós-independência e seleciona três países para conferir como seus mais destacados ensaístas do século XIX pensaram a realidade da construção do Estado nacional: México e Argentina, nos extremos da América Hispânica, países com dificuldade para atingir uma unidade interna; e Chile, contrastando com ambos por atingir estabilidade política que foi divulgada como uma espécie de consenso modelar em relação a um continente marcado pela fragmentação e pela guerra civil.
A autora inicia debatendo o problema do ensaio como gênero preferido dos intelectuais da América Latina independente para pensarem sua realidade, seus problemas e projetarem o futuro de suas nações. Libertad Bittencourt afirma que o objetivo das elites criolas era a unidade da nação e para tal baseavam em distintas concepções teóricas para elaborarem projetos conservadores, geralmente embasados no darwinismo e no spencerismo e preocupados com o tema da mestiçagem (p. 24-25). A partir do paradigma civilização x barbárie é que se explicavam as diferenças entre América Latina e América Anglo-Saxã. A questão racial e a eugenia dominaram os debates sobre a nação no final do século XIX (p. 26), não sendo diferente no Brasil. Esse ponto de vista atribuía aos índios, sobretudo, mas também a negros e mestiços, a responsabilidade pelo atraso da América Latina (p. 28). Com o passar dos anos, houve um declínio dos projetos e desejos de embranquecimento e uma crescente valorização da mestiçagem (p. 27), sobretudo nas primeiras décadas do século XX. A autora também destaca que esses ensaístas estabeleceram relações complexas entre ideias e ação porque aquelas davam respaldo a projetos governamentais (p. 30). Bittencourt afirma que ao pensarem “pares opostos como Oriente/Ocidente, caucásico/índio, civilização/barbárie, capitalizavam ideias do centro para pensar a si mesmos e, também, às suas nações”, desenvolvendo uma “consciência periférica” (Eduardo Devez) (p. 30).
Outro ponto importante discutido pela autora é a vinculação entre intelectual e Estado na América Latina. O mais perseguido dos três, Bilbao, viveu entre exílios e ocupação de cargos públicos; Sierra elaborou concepções que sustentavam e legitimavam Porfírio Diaz na presidência do México; Sarmiento, por sua vez, ocupou ele próprio o posto de presidente da República Argentina. Os intelectuais se deram a missão de elaborar a síntese entre herança colonial e realidade cultural da região de modo a apontar caminhos novos no pós-independência sem renunciar à matriz cultural colonial (p. 34). O gênero ensaístico, destaca Bittencourt, evidencia a relação entre política e discurso. Ele é adotado como gênero da independência e da construção da identidade nacional. Representativo da reflexão das múltiplas facetas da realidade latino-americana, o ensaio é o gênero principal do pensamento deste continente no século XIX, sobretudo para pensar suas mazelas políticas, suas heranças coloniais e seus projetos de superação dessas heranças (p. 38-39). É uma forma híbrida e fronteiriça que combina pensamento e ação, reflexão e persuasão (p. 42).
No capítulo dois, Bittencourt realiza um estudo de caso de Francisco Bilbao. Leitor da Ilustração, cristão e anticlerical (p. 44), Bilbao sofreu exílios em decorrência de suas posições políticas e isso lhe possibilitou uma visão cosmopolita. Bilbao atribuía os problemas americanos à herança colonial espanhola e estabelecia os Estados Unidos como modelo (p. 46), país do qual admirava as instituições. Ao mesmo tempo, criticava o imperialismo americano e àqueles que se opondo a este, buscavam guarida na aliança com a França. Para Bilbao, somente a unidade da América Latina – termo, aliás, do qual é um dos criadores – podia opor-se à Europa escravagista e despótica (p. 68). Uma posição de Blibao é que ele considerava que o atraso da América Latina provinha do colonialismo e não da questão racial, opondo-se à visão predominante em sua época (p. 52).
Bilbao, narra Bittencourt, contrastava as conquistas européias da América: a anglo-saxã, onde invasores desejavam permanecer e a ibérica, de onde queriam partir (p. 54). Bittencourt destaca que o progresso, para Bilbao, viria de afastar-se do espírito “velho e carcomido” da Espanha católicamourisca que dispersava a civilização com o Santo Ofício (p. 54). Bilbao atribuía os vícios da América à colonização espanhola (p. 58).
Sua posição em relação aos índios era ambígua, Bittencourt destaca que Bilbao ao mesmo tempo valorizava o que chamava de raças negra e indígena e enxergava na resistência indígena à conquista a fonte que alimentava a constituição da nação, mas considerava-os incapazes para a civilização (p. 50). Bittencourt coloca que Bilbao poderia tanto reproduzir os estereótipos racializantes vigentes em sua época – o “indígena taciturno”, o “africano petulante” e “feminino” (p. 62) – quanto condenar a escravidão. Bilbao também teria destacado a participação combativa de negros, índios e mestiços nas lutas de independência e considerava que os indígenas do México, Bolívia e Peru eram capazes de assimilar a conquista enquanto preservavam sua autonomia e abrigavam a rebeldia contra a colônia (p. 64). Por fim, na independência, chegaram mesmo a se alinharem aos criolos que compartilhavam a discriminação contra os espanhóis (p. 64). Sua posição sobre a imigração conservava essa ambiguidade: era preferível colonizar o país com os próprios filhos; mas se fosse necessária a imigração, deveria ser europeia (p. 70).
Bilbao seria homem de paradoxos. Libertad Bittencourt escreve que “seu pessimismo era assomado pelo idealismo” e estava entre a desilusão e o utopismo, seria capaz de prever tanto a dilaceração do subcontinente, quanto a união da América do Sul (p. 78).
O ensaio de Bilbao defendia a síntese de todas as raças, mas a autora destaca, baseando-se em Navarrete, que essa fusão visava fazer desaparecer os particularismos étnicos dos indígenas num universalismo branco. A mestiçagem era valorizada como um caminho para o embranquecimento.
Bilbao destacava que uma das urgências da América era a colonização do interior a partir do paradigma do progresso capitalista – ferrovias, vapores e imigração (p. 81). Bittencourt diz que Bilbao considerava que o “inimigo interno” era o “isolamento”, a baixa demografia (p. 79).
Bilbao seria consciente que o pós-independência era a criação de um novo homem e uma nova sociedade (p. 83). Todavia, esse potencial passava pela emancipação intelectual da América que se prostrava esperando a aprovação da Europa (p. 84). Bilbao, afirma a autora, condenava a característica da América de respirar o “espírito das nações do Velho Mundo” a exemplo do “espírito de empresa” e do “culto da individualidade” difundido pelos ingleses. Tanto criticava a falta de amor pela liberdade das repúblicas americanas, quanto cria no “declínio da influência europeia” (p. 87).
O terceiro capítulo é um estudo dedicado ao pensador Sarmiento, político, jornalista e escritor argentino. Bittencourt identifica em Sarmiento um pensador provocativo e belicoso cujo pensamento poderíamos definir como caracterizado por dois elementos: o par civilização x barbárie como chave de interpretação da história da América e a adoção de teses de supremacia branca que mesclam elementos culturais e racializantes.
Sarmiento tinha baixíssima consideração para com o índio (p. 102), segundo ele uma raça atrasada que teria levado a selvageria ao mestiço (p. 107). Nas palavras da autor, Sarmiento “Lastimava que o povo fosse composto por índios, negros, mestiços e mulatos, reiterando que não se podia abandonar a números tão heterogêneos a eleição dos magistrados, os quais teria, forçosamente, de ser brancos e pertencentes à classe burguesa” (p. 109). Sarmiento desconsidera, conforme a autora, serem os índios os habitantes originários dos espaços da América e trata-os como bárbaros estrangeiros que atacavam colonos indefesos (p. 112). Bittencourt destaca que o ensaísta argentino considerava os índios incapazes de desenvolvimento (p. 127). Enquanto Bilbao diferenciava a colonização anglo-saxã da ibérica pelas intenções de seus colonos, conforme a autora, Sarmiento caracteriza as diferenças por elementos raciais, tais como a não admissão pelos anglo-saxões das “raças indígenas, nem como sócios, nem como servos em sua constituição social” (p. 128). Bittencourt destaca que ele era um seguidor de Agassiz que condenava a mestiçagem e considerava que o branco perdia suas características positivas ao se fundir com o negro (p. 122). A autora considera o Sarmiento um racista inflamado cujas “estereotipadas visões raciais, mesmo para o período” eram “dualistas e apriorísticas” (p. 117).
A Argentina se caracterizaria, para Sarmiento, por uma civilização de superfície que escondia uma “barbárie profunda” (p. 113). O campo seria o lugar da barbárie e rejeitava a civilização do litoral (p. 114). A única esperança para o país, considerava Sarmiento, era que a imigração europeia tornasse a Argentina uma nação branca em uma geração (p. 116). Ao mesmo tempo, era adepto da tese de extinção dos negros em menos de meio século (p. 123).
Sarmiento, de acordo com Bittencourt, considerava que o elemento cultural era importante para o progresso das nações e opunha a mutilação da liberdade de pensamento na América hispânica pela Inquisição (p. 106), diferente dos Estados Unidos colonizados por peregrinos Quakers (p. 134). Ele chegou a lamentar que ingleses não tivessem conquistado Buenos Aires na primeira década do século XIX (p. 108). Bittencourt destaca a importância do autor na produção de sínteses que alimentaram a historiografia tradicional com versões estereotipadas sobre as raças que compunham a América espanhola (p. 136). Essas teses se perpetuam ao desconsiderar os processos revolucionários americanos e suas instituições republicanas como reproduções de modelos importados, sem originalidade ou causas internas (p. 136).
A autora foi bastante sagaz na organização dos capítulos. Após apresentar um pensador que adota com paixão teses supremacistas e enxerga o futuro da da América com a imigração europeia civilizando os rincões bárbaros do continente, fazendo desaparecer os mestiços, negros e índios, temos um estudo conclusivo sobre Justo Sierra, um pensador mexicano que interpretava a questão racial sob uma ótica distinta, a da mestiçagem como característica da nacionalidade na América Latina. O escritor, pedagogo e ensaísta mexicano Justo Sierra completa a tríade analisada por Bittencourt e é um dos autores mais surpreendentes. Primeiro, foi um intelectual público bastante influente no final do século XIX e início do século XX, fornecendo ao governo Porfírio Diaz uma filosofia de modernização, mas sem se curvar perante o mesmo, já que lhe tecia críticas (p. 182). Justo Sierra, assim como intelectuais brasileiros da estirpe de Gilberto Freyre ou Silvyo Romero, considerava a mestiçagem como positiva. Por último, com um argumento que seria construído por outros autores em outros processos revolucionários, seria defensor de uma tese de que a nação se formava no processo da revolução nacional.
Segundo Libertad Bittencourt, Justo Sierra era formado pelas teorias sociais mais importantes do século XIX – especialmente pelo liberalismo e positivismo – e cria que a educação e a liberdade alavancariam o progresso do México mestiço (p. 140). Porém, ao contrário do que algumas dessas teorias, especialmente a eugenia, professavam, a da inviabilidade da mestiçagem para a civilização, Justo Sierra cria que, nas palavras de Bittencourt, “a fusão das raças do México era inexorável, e o mestiço seria o tipo nacional por excelência”. Ao contrário de Sarmiento, o mexicano considerava que os índios eram aptos para o progresso, necessitando serem educados, sobretudo através do exemplo que o contato com segmentos mais civilizados. Todavia, Justo Sierra possuía uma visão essencialista do índio como primitivo, inapto para o progresso, sendo o caminho para este passava pela desindianização e pela sua transformação em mestiço (p. 144).
Tal qual os autores brasileiros supracitados, Bittencourt destaca que para Justo Sierra, “a cepa especial da nova sociedade” era o criolo que fundido ao índio, daria origem à povo mexicano pela mestiçagem (p. 150). Chega a considerar os africanos e os mestiços “mais fortes e mais ativos” que os índios na mineração (p. 151).
Ao contrário de autores que buscaram construir a nacionalidade a partir de uma ancestralidade, Bittencourt destaca que Justo Sierra considerava que a “nação mexicana” foi produto dos onze anos de luta que antecederam a independência (p. 158). Em África e na América Latina, comumente as identidades das novas nações baseavam-se em mitos sobre continuidade dos países independentes em relação a antigos Estados desaparecidos ou sujeitos pré-coloniais, como no caso do indigenismo alencariano no Brasil, é surpreendente que Justo Sierra deixe de lado a tentação de associar o México aos Estados pré-colombianos. Tal qual Frantz Fanon propunha para o caso das independências africanas, o pensador mexicano considera que a nação mexicana era produto das experiências do século XIX, a revolução, o Império e a guerra civil. As razões para isso, possivelmente são muito diferentes da do revolucionário martiniquenho-argelino que enxergava a revolução nacional como produto das lutas anticoloniais que recusavam a opressão e exploração, não existindo nenhuma relação causal entre um Estado pré-colonial e as nações independentes. Para Justo Sierra, é provável que faltasse nos Estados existentes antes da invasão espanhola aquilo que era o cerne do povo mexicano mestiço, o criolo, ou melhor, o colono branco. Aqui fica evidente o limite do raciocínio de Justo Sierra em relação às teorias de sua época que não são recepcionadas de forma acríticas, mas também não deixam de encerrar a visão do autor em um universo intelectual delimitado. Outro elemento intelectual hegemônico que estava presente na pena do escritor mexicano era a necessidade da imigração europeia para solucionar o problema mexicano.
Libertad B. Bittencourt analisa fundamentalmente nos pensadores hispano-americanos Bilbao, Sarmiento e Justo Sierra os temas da superação da herança colonial ibérica, vista como um grilhão de ferro que atrasava as novas nações em relação a países como Estados Unidos, a admiração e o receio do expasionismo deste país em relação aos seus vizinhos ao sul e a questão racial, especialmente no México, a questão indígena. Além de criticarem o pensamento europeu e sua hegemonia na América Latina, os escritores analisados por Bittencourt criticavam o expansionismo dos Estados Unidos (p. 189).
Na conclusão, Bittencourt afirma que os ensaios do século XIX criaram o imaginário do continente (p. 185). A independência não rompeu a colonialidade, mas os letrados tentaram suplantar esta. Nas palavras de Bittencourt, “mesmo por caminhos tortuosos e contraditórios, muitos letrados do período (em particular, os três aqui examinados) buscaram apontar rumos e, como intelectuais pedagogos, não se furtaram ao dever autoatribuído de indicar alternativas para a edificação da nação ideal” (p. 184). A imprensa era utilizada como meio de reforma popular e constituição da nação (p. 186) e o ensaio era uma forma privilegiada de ação política visando o convencimento através da argumentação.
A questão indígena – e na Argentina, particularmente a questão negra – era um tema que unia as elites na preferência pela imigração européia (p. 189). Esses pensadores associavam nação e progresso, de acordo com a autora (p. 190). Apesar de identificar os consensos que permeavam esse universo intelectual do subcontinente, uma das grandes contribuições do trabalho de Libertad Bittencourt é insistir que a bandeira de unidade e os ideias de progresso e desenvolvimento poderiam significar coisas distintas e mesmo contraditórias (p. 188) na América Latina pós-colonial.
O livro é tanto uma contribuição à história do pensamento social latino-americano como um todo, como uma excelente referência de comparação para estudiosos do pensamento racial e da racialização no Brasil, especialmente àqueles que se dedicam ao período do século XIX e primeiras décadas do século XX. Tanto em termos de forma privilegiada de escrita, o ensaio, quanto em termos de influência intelectual, os autores estudos por Bittencourt são perfeitamente comparáveis aos estudiosos brasileiros que refletiram sobre a realidade nacional e os problemas do país num contexto de linha tênue entre a autonomia intelectual e a uma recepção crítica, problemática e contraditória das influências europeias intelectuais. Essa contradição, que foi definida numa concepção já clássica de ideologia do colonialismo por Nelson Werneck Sodré, o qual apontava para a observação empírica otimista de Euclides da Cunha para com os tipos humanos brasileiros em contraste com o pessimismo da influência colonialista que enxergava apenas um futuro de civilização superficial sobre uma barbárie profunda – para usar a imagem de Sarmiento – para países mestiços. O livro de Bittencourt será uma ótima leitura para aqueles que querem conhecer melhor o Brasil para perceber o quanto os problemas colocados pelo pós-independência e os tratamentos dados aos mesmos eram compartilhados em países vizinhos com experiências únicas, porém comparáveis.
Resenhista
Flavio Dantas Martins
Referências desta Resenha
BITTENCOURT, Libertad Borges. Leituras canônicas e tradição pátria – o pensamento hispano-americano oitocentista em Bilbao, Sarmiento e Sierra. Goiânia: Editora UFG, 2016. Resenha de: MARTINS, Flavio Dantas. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.9, n.24, p. 227-233, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.