O professor José Antônio Dabdab Trabulsi, da UFMG, já nos acostumou a saborear, com frequência, seus livros publicados em Besançon, todos bem argumentados e escritos, uma satisfação tanto para especialistas, como para o público culto mais amplo. Dabdab presenteia-nos, agora, com um volume que recolhe suas reflexões sobre leituras dos séculos XX e XXI de um dos mais reverenciados personagens históricos de todos os tempos, Péricles, o líder ateniense do século V a. C., retomado, tantas vezes, ao longo dos séculos, por literatos, intelectuais e governantes. A primeira e principal premissa do autor está enunciada nas palavras introdutórias:
Para o historiador, um horizonte de verdade é necessário, ou então a profissão se tornaria impossível ou sem sentido. Mas a confiança de poder chegar a ela é ingênua, segundo me parece. A História, como o diz, de forma sublime de De Sanctis, como comentarei no livro, antes que mestra da vida, é sua discípula; a História é uma estranha mistura de conhecimento e opinião, motivo pelo qual nunca será possível extirpar a parte relativa à opinião; e, em não podendo, não será jamais possível chegar à verdade (p. 15).
O volume congrega alguns dos principais historiadores que se debruçaram sobre a figura singular de Péricles, como Gaetano de Sanctis (com dois capítulos), Mario-Attilio Levi, Léon Homo, Marie Delcourt, Donald Kagan, A. Burn, assim como uma série deles que contribuíram para um número recente do Nouvel Observateur. Predominam latinos (francófonos e italianos), mas não falta o mundo anglo-saxão. Dabdab lamenta não dominar o idioma alemão (“a língua de Goethe me é inacessível”, p. 11) e não considera a hipótese de obras relevantes em outros idiomas – como o castelhano, o português ou o grego moderno. Quantos de nós não faríamos escolhas semelhantes? Nada desmerece tais eleições, mas, de toda maneira, são reveladoras de um viés generalizado e que não está muito atento à produção que poderíamos chamar de periférica, oriunda de centros de estudos menos centrais e tradicionais. Mais do que um defeito, esta é uma manifestação da centralidade que ocupa na reflexão historiográfica, mesmo em autores de fora daqueles ambientes, das grandes narrativas e dos cânones. Não riamos, para parafrasear Horário (Sátiras 1,1, 69: Quid rides? De te fabula narratur), pois se trata do nosso discurso sobre o passado, que mesmo quando almeja a liberdade nem sempre consegue desvencilhar-se de escolhas fundadas na autoridade e na tradição.
Dabdab elogia, assim, de forma inspiradora os lampejos da única autora estudada, assim como condena, de forma peremptória e reiterada tudo que cheire e apoio ao imperialismo e apoia toda manifestação mais simpática à democracia grega antiga, assim como reitera as críticas à democracia representativa moderna, simulacro frágil da ateniense. Dabdab não hesita em julgar e condenar, de forma cabal, os autores: “visão inaceitável” (p. 169, 177), a respeito de Paul Veyne, “opiniões anti-povo” (p. 75), “preconceito bem francês contra os comerciantes” (p. 83), “um erro fundamental” (p. 124), “uma ingenuidade – ou cegueira – do historiador” (p. 125), “como tantos outros, Burn se recusa a ver as realidades frente a frente” (p. 155). Tais afirmações ex auctoritate, condenações peremptórias, não combinam bem com os objetivos gerais de Dabdab, que, como ele explicita tantas vezes, consiste em valorizar o povo, a democracia e a criticar os usos do passado para os fins mais nefastos e destruidores, como no fascismo, para citar um caso paradigmático e muito bem explorado no volume.
Tais observações, de modo algum, diminuem os méritos da obra, que são muitos, a começar pela obstinada intenção do autor de mostrar como o presente, como as circunstâncias dos autores analisados e os contextos históricos e sociais, foram determinantes em suas análises do passado. Em outras palavras, como Péricles serviu, ao longo do tempo, para políticas mais ou menos libertárias ou opressivas. Para uns e em determinadas circunstâncias, o dirigente grego foi um ditador, um limitador do povo inculto, como se tivesse sido um Mussolini – ou, poderíamos dizer, um Perón ou um Vargas. Para outros, Péricles representou parte de um sistema no qual as pessoas comuns, os cidadãos (não a maioria, que era escrava) podiam se expressar e no qual parte da elite podia ter uma atuação que favorecia essa mesma massa e certa liberdade, em geral. Autores de nossa época, como Veyne, seriam menos otimistas com relação ao plethos (muitos), e mais atentos à parrhesía (franqueza) e ao tema da diversidade, palavra pouco presente no volume de Dabdab.
O volume de Dabdab, tão logo esteja disponível em vernáculo, poderá contribuir, de forma significativa, para uma discussão tão necessária sobre a relação entre passado e presente. Sua relevância ultrapassa, em muito, os âmbitos estreitos da academia, dos estudiosos da Antiguidade, poucos que somos, mas atinge o cerne dos temas de nosso tempo: democracia, verdade, imperialismo (temas presentes no volume), mas também, mesmo na ausência, diversidade, liberdade e franqueza. Sua leitura não deixará de enriquecer e sua discussão só tende a contribuir para uma sociedade menos fundada na hierarquia.
Pedro Paulo Abreu Funari – Universidade Estadual de Campinas.
TRABULSI, José Antônio Dabdab. Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire. Besançon: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2011. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.9, n.9, p.179-181, 2013. Acessar publicação original [DR]
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