Complexo, heterogêneo e ambíguo. Tais adjetivos podem ser usados para definir o peronismo, fenômeno político de difícil definição e que até hoje desperta profundas paixões e polariza a Argentina. Desde a primeira presidência do coronel Juan Domingo Perón (1946-1955), muitas têm sido as tentativas de compreender esse movimento político. O que nem sempre se nota é que seu oposto, o antiperonismo, também foi profundamente fluído, variando ao longo do tempo e sendo composto, em cada época, por grupos ideologicamente muito diversos, como liberais, comunistas, socialistas, radicais2 e outros.
Nas últimas décadas, o antiperonismo foi objeto de estudo de historiadores, sociólogos e cientistas políticos na Argentina e fora dela. Na maioria desses casos, os acadêmicos propuseram análises específicas, restritas a diferentes instituições ou grupos sociais3 , buscando compreender as particularidades das críticas de cada um. Por isso, é tão bem-vinda a obra do historiador argentino Jorge Nállim, que se propõe a fazer uma análise socialmente e temporalmente bem mais dilatada. Nela, o autor busca compreender como “confluíram [nas ideias antiperonistas] uma série de visões, conceitos, preconceitos, ideologias e setores sociais e políticos que tinham se forjado ao longo das décadas anteriores”4 (NÁLLIM, 2014, p. 258, tradução nossa). Para isso, ele investiga uma ampla variedade de fontes documentais, com privilégio para revistas e jornais argentinos.
O livro se estrutura de forma cronológica, em três capítulos. No primeiro, o historiador argentino recupera, como se verá a seguir, argumentos comuns ao mundo político no período de 1853 a 1938 e, que posteriormente, foram relidos e atualizados contra o peronismo. O capítulo central (1938 a 1946) se ocupa principalmente em descrever como a luta antifascista, que foi abraçada por parte considerável da sociedade argentina, fundamentou as bases do antiperonismo. A terceira parte é dedicada ao período em que Perón esteve no poder (1946-1955) pela primeira vez. Mostra como algumas representações negativas se decantaram e se aprofundaram. Além disso, evidencia o caráter dinâmico de setores sociais que mudaram sua posição em relação ao peronismo conforme as circunstâncias históricas.
Nessa história das ideias antiperonistas, Nállim constrói ao menos três eixos argumentativos. O primeiro está relacionado às críticas ao autoritarismo e ao caudilhismo, influenciadas por discursos e imagens produzidos desde o século XIX que rejeitavam líderes discricionários. O historiador argentino indica a existência de uma tradição liberal que, longe de ser estanque, foi constantemente relida a partir de diferentes contextos políticos e históricos. É nesse sentido que podem ser compreendidos os inúmeros discursos antiperonistasque continuamente
apelaram à Constituição Nacional e à tradição liberal como essência mesma de uma Argentina democrática e recordaram a luta das gerações liberais contra [Juan Manuel de] Rosas e os caudilhos como antecedentes da sua [luta] contra Perón5 (NÁLLIM, 2014, p. 34, tradução nossa).
Em consonância com esse ideário liberal evocado nos discursos, o peronismo foi repetidamente descrito pelos opositores como uma forma de nazismo criollo, um regime com vocação totalitária que teria como fim último o controle absoluto da sociedade. Nállim explica que essa representação de Perón como o “führer da Casa Rosada” foi forjada fundamentalmente por grupos antifascistas bastante heterogêneos (comunistas, socialistas, liberais etc.) que, especialmente a partir da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), combateram duramente regimes discricionários internos e no plano internacional.
Vale lembrar que Perón se destacou justamente durante um governo autoritário, o do GOU (1943- 1946)6, no qual acumulou os cargos de vice-presidente, ministro da Guerra e secretário do Trabalho. Foi nesse momento, segundo o autor, que:
A adoção pelo governo militar de medidas claramente antidemocráticas e autoritárias, somadas à presença de militares e civis relacionados com grupos de direita, e a manutenção da neutralidade argentina no conflito [Segunda Guerra], convenceram as redes políticas e sociais antifascistas de que se estava na presença de uma tentativa de construir um regime totalitário local afim aos europeus7 (NÁLLIM, 2014, p. 98, tradução nossa).
É importante notar que tal acusação não partiu apenas dos membros das elites econômicas, mas também do amplo arco antifascista, que incluía socialistas, comunistas, liberais e outros. Assim, se para parte da direita liberal, Perón pendia para o totalitarismo nazista, para setores à esquerda era necessário buscar a justiça social sem o sacrifício da liberdade. Em comum, havia denúncia do peronismo como governo despótico. Na lógica antiperonista, cada novo gesto discricionário confirmava a profecia totalitária.
Segundo o autor, definir Perón como totalitário, como fizeram muitos dos seus adversários, é um exagero (NÁLLIM, 2014, p. 175). De caráter essencialmente pragmático, o presidente argentino percebeu com perspicácia o potencial político dos sindicatos e da classe trabalhadora, aglutinando em torno da sua liderança grupos políticos e ideológicos bastante heterogêneos. Embora o regime tenha tomado diversas medidas autoritárias, Perón foi eleito democraticamente em 1946 e manteve em funcionamento, ainda que com consideráveis restrições8, o Congresso e a imprensa. Em contraste com a forte centralização do Estado e a intensa propaganda de inspiração fascista difundida pelos peronistas, houve significativa ampliação da cidadania a partir da implantação do voto feminino em 1949 9.
Um segundo eixo da história das ideias antiperonistas, que também remonta ao século XIX, são as críticas à intervenção do Estado na economia, vista por muitos grupos políticos como sinal inequívoco de um governo cada vez mais autoritário. Nessa perspectiva, as estatizações e a planificação econômica foram denunciadas como etapas complementares da construção de um governo fascista.
Decisões como a nacionalização das ferrovias, do fornecimento de energia elétrica e da telefonia foram duramente condenadas, ainda que, em uma perspectiva mais dilatada, tais medidas possam ser vistas como parte do processo de ampliação do Estado argentino que já havia sido iniciada após a crise de 1929. A novidade peronista esteve especialmente relacionada à consolidação de direitos sociais, como férias remuneradas, indenização por acidentes de trabalho e a mediação de conflitos entre trabalhadores e empregadores. Tais medidas, apontadas continuamente como demagógicas por parte da oposição, permitiram distribuição da riqueza e ajudam a compreender o apoio das populações desfavorecidas (os “descamisados”) ao regime, o que, em determinados momentos, causou desconcerto entre as esquerdas tradicionais do País.
Nállim aponta ainda uma terceira linha de continuidade em relação ao século XIX: as visões pejorativas das elites dirigentes em relação às classes subalternas e às massas populares, descritas frequentemente como bárbaras, ignorantes, irracionais, negras e animalescas. Tais representações, fruto da desconfiança em relação à democracia baseada no sufrágio universal, foram construídas em oposição às imagens de uma Argentina tradicional (civilizada, culta, letrada e integrante da cultura ocidental de origem europeia), que estaria sendo destruída.
Desde os escritos de Domingo Sarmiento, notadamente em Facundo (1845), passando pelas críticas aos apoiadores do popular presidente radical Hipólito Yrigoyen (1916-1922 e 1928-1930) até as apreciações negativas em relação aos seguidores de Perón, é possível notar a persistência de preconceitos classistas, racistas e, especialmente no caso das críticas a Evita Perón, machistas. Por meio da análise de charges e de editoriais, Nállim mostra com acuidade, em especial, a construção de representações da primeira-dama como uma mulher ignorante, calculista, promíscua, com desejos de alpinismo social e de moral duvidosa, que comandaria um marido enfraquecido e, em alguns casos, sexualmente dominado (NÁLLIM, 2014, p. 210-212).
Nállim admite, embora possam ser observadas linhas gerais, como as três descritas anteriormente, que o antiperonismo foi um movimento bastante mutável e heterogêneo que reuniu grupos com trajetórias, ideologias e interesses muito distintos. Isso fica deveras demonstrado pela mudança de posição de dois pilares do regime, a Igreja Católica e as Forças Armadas. Aliados de Perón, em sua maioria, ao longo do primeiro e início do segundo mandato, tais grupos sociais, compostos majoritariamente por elementos de classe média e alta, se afastaram paulatinamente do governo e foram os principais responsáveis por sua derrubada, com apoio de intelectuais e políticos de diversas filiações (socialistas, comunistas, radicais etc.). Essa heterogeneidade das forças políticas antiperonistas ajuda a compreender, em parte, a confusão reinante nos meses posteriores à autoproclamada Revolução Libertadora (1955).
Em relação ao Brasil, é de especial interesse o capítulo sobre o antiperonismo no plano internacional, seção do trabalho que parece um pouco tímida em contraste com o fôlego do restante do livro. Embora já existam trabalhos acadêmicos específicos sobre o antiperonismo em países do Cone Sul, não se publicou ainda obra historiográfica que sintetize a questão ou que aborde semelhanças e diferenças em uma perspectiva de história comparada. Nállim mostra que houve uma forte atuação de intelectuais argentinos que, dentro e fora da Argentina, se posicionaram majoritariamente contrários ao peronismo e criaram redes de circulação e de apoio capazes de causar consideráveis danos ao governo no plano externo. Ao mesmo tempo, houve forte rejeição, em países vizinhos como Brasil e Chile, à polêmica campanha de divulgação da ideologia justicialista10 na região.
Enfim, não se pode negar o grande mérito da obra de Jorge Nállim em propor uma perspectiva temporal mais ampla, iniciativa ousada e cada vez menos comum entre os historiadores. Além disso, é muito importante destacar a notória habilidade do autor em navegar pelas turbulentas águas do peronismo e do antiperonismo, correntes políticas com considerável flexibilidade ideológica. Hodiernamente, tais temas continuam despertando fortes paixões e não é pouca coisa conduzir, como faz o autor, uma narrativa historiográfica a respeito de um tema polêmico sem escorregar para uma visão difamatória ou apologética.
Notas
1 O livro foi publicado apenas em espanhol.
2 No sentido de pertencente à União Cívica Radical (UCR), partido político argentino de centro ou centro-esquerda, a depender das circunstâncias históricas. Do partido se originaram presidentes como Hipólito Yrigoyen (1916-1922 e 1928-1930), Marcelo T. de Alvear (1922-1928), Roberto M. Ortiz (1938-1940), Arturo Frondizi (1958-1962) e outros.
3 Entre as instituições e grupos analisados por estudos acadêmicos nas últimas décadas estão a Igreja, as Forças Armadas, os sindicatos, as centrais sindicais, órgãos da imprensa, partidos de várias tendências ideológicas, diversos intelectuais e seus grupos etc.
4 Do original: (…) allí confluyeron una serie de visiones, conceptos, prejuicios, ideologías y sectores sociales y políticos que se habían forjado a lo largo de las décadas anteriores.
5 Do original: (…) cuando apelaron a la Constitución Nacional y la tradición liberal como la esencia misma de una Argentina democrática y recordaron la lucha de las generaciones liberales contra Rosas y los caudillos como el antecedente de la suya contra Perón.
6 O Grupo de Oficiales Unidos (GOU) era um conjunto heterogêneo de militares, de maioria nacionalista, anticomunista e ultracatólica. O grupo foi responsável por um golpe de estado em 1943 que, entre outras medidas, implantou censura férrea e fechou várias instituições e publicações de cunho antifascista.
7 Do original: La adopción por el gobierno militar de medidas claramente antidemocráticas y autoritarias, sumadas a la presencia de militares y civiles relacionados con grupos de derecha, y el mantenimiento de la neutralidad argentina en el conflicto, convencieron a las redes políticas y sociales antifascistas de que se estaba en presencia del intento de construir un régimen totalitario local afín a los europeos.
8 Dezenas de rádios, revistas e jornais foram fechados por questões políticas ou comprados pelo governo peronista em um processo de concentração jornalística. Além disso, adversários do regime tiveram seus direitos políticos revogados ou, ainda pior, foram presos.
9 As políticas voltadas para educação são outro exemplo dos paradoxos de um governo que, se por um lado expandiu e democratizou consideravelmente a educação básica e universitária, por outro atacou a autonomia universitária, diminuiu a representatividade estudantil a ampliou enormemente a influência da Igreja nos espaços de ensino.
10 No início da Guerra Fria, a Argentina declarou a terceira posição em relação à política externa. Profundamente nacionalista, Perón não se alinharia geopoliticamente aos Estados Unidos nem à União Soviética. Ele dizia em seus discursos, que sua ideologia não era capitalista ou comunista, mas justicialista, por enfatizar a busca pela justiça social.
Resenhista
Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos – Graduado em História (Unicamp, 2005) e Doutor em História (USP, 2015). É autor da tese A construção da ameaça justicialista. Antiperonismo, política e imprensa no Brasil (1945-1955), disponível online. Atua como professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), campus Ouro Branco, MG, Brasil. E-mail: rodolpho.santos@ifmg.edu.br http://orcid.org/0000-0001-9869-1361
Referências desta Resenha
NÁLLIM, Jorge A. Las raíces del antiperonismo. Orígenes históricos e ideológicos1. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Capital Intelectual, 2014. Resenha de: SANTOS, Rodolpho Gauthier Cardoso dos. Notas sobre uma história do antiperonismo. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 1, p. 173-176, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]
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