L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939) – COMPAGNON (Tempo)
COMPAGNON, Olivier. L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939). Paris: Fayard, 2013. 394 p.p. Resenha de: FERRERAS, Norberto. A Grande Guerra e a América Latina. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.
A relação entre América Latina e Europa já foi estudada muitas vezes,algumas a partir do ponto de vista da influência e outras,da rejeição. Não são poucos os autores que podem ser arrolados entre os especialistas do tema em ambas as perspectivas. O mesmo poderíamos dizer da Grande Guerra (1914-1918),principalmente numa data tão marcante quanto o centenário. Sem ir muito longe, no Brasil vários seminários foram realizados e deles resultaram (ou virão a resultar) livros e artigos. As datas comemorativas sempre geram ondas expansivas de bibliografia relacionada ao tema em questão e essas ondas criam uma massa de títulos que em alguns casos será rapidamente esquecida junto com as efemérides. Esse não é o caso do livro aqui resenhado.
No livro L’adieu à l’Europe…, Compagnons e propõe a analisar o período de entre guerras que já tinha analisado anteriormente do ponto de vista das circulações entre América e Europa, quando estudou os vínculos entre o catolicismo e a reconfiguração do nacionalismo latino-americano. Acompanhando a história das circulações e dos contatos – a “história conectada” -, vemos que ele tanto aborda o vínculo intrínseco estabelecido entre Europa e América, quanto analisa o imaginário e a imagem criada pela Grande Guerra nos países latino-americanos, mais especificamente, na Argentina e no Brasil. Ao mesmo tempo, devemos entender este livro como um ensaio de história global, acompanhando a terminologia de época. Este é um estudo que, utilizando as fronteiras nacionais, as ultrapassa e redefine. Coloca-nos a pensar sobre o impacto de uma guerra europeia lutada em frentes que ultrapassaram os países e os continentes, que estabeleceram coalisões definidas pela afinidade política e econômica antes que pela territorialidade e que levou à reflexão acerca do modelo cultural e político europeu iluminista e de progresso constante. A Grande Guerra colocou os paradigmas existentes em xeque e fez seus contemporâneos e descendentes imediatos refletirem sobre o rumo da civilização ocidental e sua primazia, trazendo à tona outras possibilidades e alternativas desde o regional, rivalizando com o farol universal que pretendia ser Europa.
O livro propõe-se a estudar a Grande Guerra de uma perspectiva original.Nãoenfoca os fatos, nem volta àtentativa de revisão dos impactos europeus ou coloniais da guerra. Sem desconhecê-los, analisá-los não é o objetivo principal. O tema é a relação entre Europa e América Latina em um momento-chave para a história regional e para pensar a história latino-americana. O período em questão dialoga com a história global, mas é umaépoca de redefinições da latinidade e, ao mesmo tempo e num nível mais profundo, da nacionalidade. O autor tentará estabelecer as relações e influências da Grande Guerra no imediato e nas reflexões sobre o vínculo americano com a Europa.
Para desenvolver a sua hipótese, Compagnon divide o seu trabalho em três partes. A primeira parte, titulada “Da guerra europeia à guerra americana”, trata de como a guerra europeia é também uma guerra americana. A preocupação é pelo impacto mais imediato do conflito, como o mesmo levou ao posicionamento dos grandes atores políticos do período, principalmente como se portaram as elites políticas em uma conjuntura de redefinição de alianças, modelos e paradigmas. O livro estabelece um recorte nos dois grandes países da América do Sul, a Argentina e o Brasil; isso não implica negligenciar as linhas de força daqueles países que, de forma semelhante e por diversos motivos sentiam a influência da guerra, como o México e o Chile. Nesta primeira parte o interesse recai sobre a conformação de um campo aliadófilo e outro germanófilo com as diferentes estratégias de posicionamento entre os dois. Esses posicionamentos levaram grupos governantes terem que lidar com a Real Politik nas relações internas e internacionais, oscilando entre o neutralismo e a participação. Ao mesmo tempo, na primeira parte, analisa-se a construção da opinião pública em relação à guerra, com o posicionamento de intelectuais e políticos, mas também com a participação das coletividades de imigrantes. No caso argentino, os imigrantes terão uma voz potente sobre os acontecimentos de além-mar. Mas este é o momento fundante da constituição da opinião pública nacional. Certamente existiam grupos de ação política e intelectual, mas para a Argentina,trata-sedo momento de constituição de uma imprensa autônoma do poder econômico, no mesmo momento em que o Estado também inicia um processo de autonomização perante as oligarquias e o seu poder econômico e simbólico. A multiplicação das vozes e a emergência de novos atores, como os trabalhadores, colocará em questão a Real Politik,diferente do que acontecia no Brasil.
Na segunda parte do livro, “A Europa bárbara”, temos outro tipo de aproximação do conflito. O autor avança em duas perspectivas complementares: a história da cultura e a das sensibilidades. A recepção do sofrimento e a expansão dos sentidos gerados por este sofrimento em relação à guerra, assim como as reflexões sobre seus horrores pela via da literatura testemunhal, como Barbusse, Aldous Huxley ou Erich Maria Remarque, levam a guerra ao plano do pessoal, ao sofrimento em primeira pessoa. Compagnon explora os impactos de reduzir o foco de análise por parte dos escritores e dos jornalistas, colocando em primeiro plano os civis e os soldados, fossem estes os próprios compatriotas que participavam na guerra ou as vítimas dos confrontos. Em princípio, para criar empatia com os bandos em disputa, mas também para apresentar o sofrimento em primeira pessoa, tentava-se criar uma corrente de opinião contrária ao conflito bélico. Aqui a Real Politik sai de cena. As pessoas de carne e osso mostravam os limites da civilização europeia e as suas pretensões de universalidade. O capítulo cinco,“A Noite Europeia”, um dos mais interessantes do livro, analisa os posicionamentos dos intelectuais brasileiros e argentinos acerca da Grande Guerra. O sentimento de inferioridade em relação aos feitos culturais europeus passam a ser questionados, a América pode ser modelo de si própria e para isso precisava realizar uma devassa da Europa. Rui Barbosa, José Ingenieros, Afrânio de Melo e Franco, entre outros pensadores e intelectuais,identificam esse período como o do declínio europeu. As interpretações podem ser diferentes, mas a América como contraponto de paz e civilidade são comuns. O binômio estabelecido por Domingo Sarmiento em meados do século XIX estava invertido: a América era a civilização e a Europa era a barbárie.
A última parte do livro, “A Grande Guerra, A Nação, A Identidade”, é destinada a analisar os impactos culturais imediatos da Grande Guerra, enfocando o nacionalismo na Argentina e no Brasil. É esse o legado cultural e intelectual da Grande Guerra? É daqui que partem as famílias que se diferenciam do modelo Europeu? O que o autor vai explorar é o nacionalismo cultural anterior ao político. Para isso,Compagnon analisa as diversas vertentes desses nacionalismos, estabelecendo um estudo em paralelo de dois autores argentinos, Borges e Leopoldo Lugones, e o Movimento Antropofágico no Brasil. O contraponto permite acompanhar o impacto de longa duração nas gerações que vivenciaram o período de entre guerras: Borges e Lugones. O nacionalismo democrático e o autoritário. A renovação e a restauração, as duas correntes que, do campo intelectual, demarcariam territórios políticos por longo tempo.
A pesquisa realizada por Compagnon, especialista em história intelectual, mostra a necessidade de lidar com fontes de origens diferentes e com registros narrativos diversos para poder realizar uma síntese sobre a questão da Grande Guerra na América Latina. A história intelectual dialoga com a história política e cultural. A narrativa factual é necessária para públicos pouco familiarizados com a Grande Guerra ou com a América Latina para poder dar lugar a sofisticadas análises sobre a produção artística e literária latino-americana. Esperamos que o resultado seja o de estimular novas pesquisas deste tipo e com esta perspectiva.
A versão francesa do livro apresenta algumas diferenças da brasileira. A capa original foi trocada. A brasileira optou por uma previsível foto da guerra de trincheiras. A edição francesa reproduz a portada da partitura do tango El Marne, de Eduardo Arolas. A escolha é significativa e mostra os efeitos duradouros da guerra na cultura da região. Sem pretender ser exaustivo no forte impacto cultural da Grande Guerra na região, vou tentar mostrar a relação estabelecida com os círculos vinculados ao tango.
Para isso, voltemos ao tango El Marne. Quando Eduardo Arolas compõe este tango era um jovem bandoneonista argentino, filho de franceses. Arolas teve a trajetória arquetípica de um tanguero do período. Nasceu em Barracas, na cidade de Buenos Aires, e morreu produto do alcoolismo,em Paris,aos 32 anos, longe da cidade que abandonou para fugir da relação estabelecida entre seu irmão e sua esposa. El Marne, escrito neste exílio voluntário, é uma peça que,mesmo sendo de profunda melancolia,entrou no repertório das grandes orquestras, parte do estilo do tango dançante por décadas. Escrito em 1919, este tango continua a receber novas versões e é frequentemente revisitado. Posteriormente e para ser mais palatável aos dançarinos, recebeu uma letra que falava de um amor a orilhas do Rio Marne, deturpando a sua origem vinculada a uma batalha com centenas de milhares de mortos, mas dando-lhe sobrevida.
Mas o tango e a Grande Guerra mantiveram o seu vínculo. Em princípio, porque a década de 1910 é o momento fundacional desse estilo musical. De fato, o grande ícone do tango, Carlos Gardel, escreveu um tango-canção para homenagear os combatentes franceses. Silencio foi escrito em 1932 e apresentado no filme Melodia de Arrabal, de 1933. O tango é claramente um manifesto antibélico. No filme, Gardel interpreta um cantante de tangos que, no palco que o consagraria, canta Silencio. O importante é a interpretação da letra: um melodrama. A letra faz referência a um caso, verdadeiro ou mítico pouco importa, de cinco irmãos operários que se alistam para lutar pela pátria, a França, e morrem. A mãe deles, la viejita, lamenta a morte dos filhos. Ela fica com os túmulos e as medalhas. A música começa com um clarim e um coro acompanha Gardel com uma canção de ninar. Quando conclui, ele, sorridente, abraça a sua namorada. Está consagrado, é um momento festivo. A Grande Guerra, na década de 1930, é uma temática que faz parte do universo narrativo. Ainda está presente, porém sem a carga dramática que tinha para Arolas. A guerra permaneceria no imaginário coletivo sobre o que podiam ser imprimidas imagens e sentimentos, como o sacrifício, a dor e a perda geradas pela guerra. Estes exemplos mostram o impacto de longa duração da guerra apresentado por Compagnon e que pode ser ampliado por novas pesquisas e novas perspectivas analíticas. Finalmente, essa pequena relação estabelecida entre o tango e a capa tem como objetivo mostrar a capacidade de síntese temática evidenciada na capa da edição francesa e a indefinição apresentada na capa brasileira, que confunde o leitor sobre os temas e as abordagens.
Norberto Ferreras – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: ferreras@vm.uff.br.