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Revisitações à obra de Rosa Virgínia Mattos e Silva | LaborHistórico | 2021

O nome de Rosa Virgínia Mattos e Silva (1940-2012) e a área da Linguística Histórica confundem-se no Brasil, sendo praticamente impossível fazer remissão a uma desconsiderando a outra. Quando quase ninguém mais no país estudava de modo sistemático a história da língua portuguesa e o seu período arcaico (séculos XIII a XVI), impulsionada pelo seu grande mestre, o Prof. Nelson Rossi, despontava já nos anos 60 essa linguista baiana na tessitura de laços entre o labor filológico e a análise linguística historicocêntrica, colaborando na edição do Livro das Aves (séc. XIV)1.

Durante uma carreira de mais de 40 anos, lançou-se, sem pausa, a uma perscrutação da língua portuguesa em seus primórdios, projetando-se como a estudiosa, por antonomásia, das sincronias mediévicas do português. Primeira linguista a obter o título de Pioneira da Ciência no Brasil, pelo CNPq (em 2015)2 -autora de diversos livros, capítulos de livros e artigos; orientadora de dezenas de teses de doutorado, dissertações de mestrado e projetos de iniciação científica3 – foi e continua sendo uma referência obrigatória para os que se debruçam sobre a Linguística Histórica e sobre o fluxo temporal constitutivo do português, por ser ela, nas palavras de Carlos Faraco (2021)4 , uma figura especial, um verdadeiro “[…] elo entre a tradição filológica e as tendências correntes na linguística contemporânea.” (FARACO, 2021, p. 8) 5. Não é por acaso que a sobredita pesquisadora é considerada como um dos principais agentes envolvidos no processo de ressurgimento da fênix — a Linguística Histórica — no domínio da língua portuguesa (CASTILHO, 2012 6; FARACO, 2018 7, 20098 ). Daí a afirmação de Castilho (2012)9 de que celebrar tal linguista é, em outras palavras, celebrar a Linguística Histórica no Brasil.

No ano passado, por ocasião da comemoração do 80º aniversário natalício de Rosa Virgínia Mattos e Silva, o Programa para a História da Língua Portuguesa (PROHPOR), em espírito de jubileu celebrativo à memória de sua fundadora, desenvolveu uma série de ações para homenageá-la, dentre as quais as mais relevantes foram a exposição virtual Rosa Virgínia Mattos e Silva: 80 anos, veiculada nas redes sociais do PROHPOR durante o mês de julho de 2020 (após esse período, fixada permanentemente no site do programa e ali acessível para consulta, na aba correspondente10) e a organização desta coletânea de artigos fundamentados ou inspirados em revisitações à obra de Mattos e Silva, elaborados por investigadores de renome convidados especialmente para esse fim.

Após um ano do início do processo de ideação do dossiê mencionado, a coordenação do PROHPOR, associada à equipe editorial da LaborHistórico (UFRJ), traz finalmente à luz este número especial, um tributo de gratidão acadêmico-intelectual à vida, obra, memória e legado da grande linguista baiana. Voltado a diálogos com suas ideias ou publicações, compõe-se de 13 (treze) artigos, escritos por renomados pesquisadores da área da Linguística Histórica, em que são tecidos (mais visceralmente ou mais tangencialmente) interlocuções com as ideias/textos de Mattos e Silva ou em que são revisitados temas por ela explorados em sua prolífica carreira.

A disposição dos textos neste número especial da LaborHistórico dá-se pela sua organização implícita em três subconjuntos: primeiro, três artigos que incidem sobre a língua medieval; em seguida, oito que se dedicam a estudos históricos (stricto ou lato sensu) sobre o português brasileiro e/ou europeu; por fim, dois que incidem sobre corpora históricos para o estudo da língua.

Encabeça o dossiê o artigo A variação -e/-i átono final no galego-português: o testemunho dos Diálogos de São Gregório (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.41636), de autoria de Henrique Monteagudo, em que, tendo como foco os clíticos de dativo e as desinências de primeira e segunda pessoas do singular do pretérito perfeito, analisa a variação -i/-e no final de palavra em cantigas trovadorescas e em textos portugueses trecentistas em prosa religiosa, chegando à conclusão de que seria um traço diferenciador entre os subsistemas do galego e do português medievais.

Na sequência, o artigo Los contactos de lengua y el español medieval, da pena de Carlos Felipe Pinto (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42820), focaliza a constituição do espanhol antigo e seu estudo (mormente quanto ao nível sintático), com a defesa de que essa língua, no medievo, não seria simplesmente resultante de uma evolução direta e natural do latim, mas sim decorrente de intensa e contínua rede de contatos estabelecida na Península Ibérica com línguas de outros povos que ali se encontravam ou que viriam adentrar tal território.

De autoria de Emília Helena Portella Monteiro de Souza e Álvaro César Pereira de Souza, o artigo Do Período Arcaico à ilustração: compreendendo a escolarização linguística do português à luz de Mattos e Silva (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42582) incide sobre o processo de escolarização linguística do vernáculo no período arcaico e no período colonial, com a abordagem de dados de caráter sócio-histórico e demográfico que possam evidenciar políticas linguísticas concebidas e postas em marcha nessas sincronias.

Como quarto artigo da coletânea, figura o texto intitulado A origem da acepção negativa de você no português europeu: os contextos de uso de Vossa Mercê em cartas oitocentistas (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42825), escrito por Célia Regina dos Santos Lopes, Ana Luiza Neves Martins e Janaina Pedreira Fernandes de Souza, no qual, a partir da análise de cartas portuguesas do século XIX, descrevendo o comportamento de Vossa Mercê, investigam a origem da acepção negativa atrelada a você no português europeu.

O verbo parabenizar no português brasileiro: etimologia, neologia e o problema do quasi-hápax em morfologia (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.41149), artigo cujos autores são Bruno Oliveira Maroneze, Natival Almeida Simões Neto e Mário Eduardo Viaro vem em seguida, com o escopo de discutir a formação e o semanticismo de parabenizar no português brasileiro, desde a sua gênese, no século XIX, até a contemporaneidade.

No sexto artigo do dossiê, de título A redução no quadro de clíticos de terceira pessoa no português brasileiro: um estudo diacrônico (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.44191 ), de Maria Eugenia Lammoglia Duarte, Antonio Anderson Marques de Sousa, Ulli Santos Bispo Fernandes e Marianna Maroja Confalonieri Cardoso, é tecida uma análise de natureza sintática relativa ao uso dos clíticos acusativo e dativo para referência à 3ª pessoa e do clítico indefinido se em textos teatrais portugueses e brasileiros, escritos durante os séculos XIX e XX, discutindo-se e explicando-se a obsolescência de tais formas no português do Brasil ao lado de seu vigor e estabilidade no português europeu.

Escrito a seis mãos, o artigo Notícias sobre um estudo cognitivo sócio-histórico da polissemia de “vacina” (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42818), de A. Ariadne Domingues Almeida, Elisângela Santana dos Santos e Neila Maria Oliveira Santana, pautando-se em pressupostos da Semântica Cognitiva Sócio-Histórica e, sobretudo, da Teoria da Metáfora e da Metonímia Conceptuais, traz em si uma apreciação semasiológica a respeito dessa lexia, visando a desvelar a sua rede de sentidos no fluxo histórico, mediante o rastreamento de ocorrências em registros escritos do português brasileiro dos séculos XIX a XXI.

O oitavo artigo do dossiê, A maçonaria e os movimentos de insurreição do período colonial do Brasil: a questão da difusão social da escrita (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.38000), da pena de André Luiz Alves Moreno, identifica a força da presença e da influência maçônica no contexto de três movimentos sediciosos do Brasil Colônia — a Inconfidência Mineira (1789), a Revolta dos Letrados (1794) e a Conspiração dos Alfaiates (1798) —, relacionando-a com o fenômeno da difusão social da escrita entre os partícipes (diretos ou indiretos) de tais insurreições.

Figura, na sequência, o texto Acerca da posição do adjetivo no sintagma nominal: variação e/ou mudança? (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42801), no qual Dinah Callou e Márcia Rumeu abordam a alternância posicional (pré ou pós-nominal) do adjetivo no sintagma nominal em cartas pessoais dos séculos XVIII e XIX, redigidas por brasileiros originários das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, chegando à conclusão da predominância da posposição adjetival não-categórica e de processos de perda ou assimilação do traço pré-nuclear por alguns adjetivos no decorrer de tal período.

Como décimo texto do número especial, de autoria de Graça Rio-Torto, o artigo Desafios do português ‘popular’ do Brasil no século XXI (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.41277) oferece um conjunto de reflexões sobre as mudanças experimentadas pela língua portuguesa dos séculos XVII a XX, período em que se processaram mudanças que afastaram o português brasileiro do europeu, com a gênese de uma identidade linguística brasileira própria, atrelada ao português brasileiro popular, algo que somente se consolidaria a partir do século XX.

Em O sequestro da História? Discurso oficial e práticas de ensino sobre a história linguística do Brasil e a historicidade do português brasileiro (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.42665), Tânia Lobo, Ana Sartori e Pedro Daniel Souza examinam o locus concedido à história linguística do Brasil, à linguística histórica e à mudança linguística no discurso e na prática sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil, a partir da análise de uma extensa série de documentos, como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) e a Base Nacional Comum Curricular (2018), dentre vários outros, com a constatação de uma omissão quase total desses temas na documentação oficial que rege o ensino de português como língua materna no país.

O duodécimo texto do dossiê, escrito por Huda da Silva Santiago, Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda, Rosana Carvalho Brito e Zenaide de Oliveira Novais Carneiro, intitulado CEDOHS: um banco de dados sociolinguísticos para a história do português brasileiro (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.41640), apresenta a base documental do Corpus Eletrônico de Documentos Históricos do Sertão (CE-DOHS), contextualizando os corpora escritos que constituem esse banco de dados sociolinguísticos, assim como a montagem de subcorpora para estudos do português brasileiro que tal plataforma viabiliza.

Encerra a coletânea o artigo Para um estudo da formação do português brasileiro: descrição, representatividade e potencialidades do corpus colonial do CE-DOHS (https://doi.org/10.24206/lh.v7iespec.41843), de autoria de Lara da Silva Cardoso, Zenaide de Oliveira Novais Carneiro e Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda, em que é apresentado o corpus colonial disponibilizado no CE-DOHS, com ênfase nas estratégias para o encontro dos manuscritos e a explicitação de sua representatividade e de sua utilidade aos estudos linguísticos e sócio-históricos.

Espera-se, com este número especial, constituído por um conjunto de artigos tão rico e robusto, que se tenha alcançado o propósito de manter pulsante a memória da grande pesquisadora e docente que foi Rosa Virgínia Mattos e Silva, reconhecida por seus pares com os mais efusivos qualificativos, como o de figura singular e fundamental nos estudos linguístico-históricos no Brasil (FARACO, 2018)11, cientista que nos ensinou a fazer Linguística Histórica (CASTILHO, 2012)12, arqueóloga da língua (BARONAS, 2015)13 e pesquisadora exemplar e mestra de muitos (FARACO, 2016)14. Com esta coletânea, nada mais se almeja senão que Mattos e Silva e seu copioso legado continuem inspirando novas pesquisas e novos interessados voltados aos estudos de linguística histórica e de história da língua portuguesa. Que este dossiê subsidie uma proveitosa leitura àqueles que se lançam a tais aventuras pelas veredas fascinantes da história da(s) língua(s)!

Notas

1. ROSSI, Nelson et al. Livro das aves: edição crítica, introdução e glossário. Rio de Janeiro: INL, 1965.

2. Reconhecimento concedido pelo CNPq a Rosa Virgínia Mattos e Silva na 5ª edição da série Pioneiras da Ciência no Brasil, em 2015 (cf. a página https://www.gov.br/cnpq/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-eprogramas/programas/mulher-e-ciencia/pioneiras-da-ciencia-1). Até essa 5ª edição, era ela a única linguista agraciada com tal título. Atualmente, além de Mattos e Silva, figura no rol das 80 (oitenta) Pioneiras da Ciência no Brasil outra grande linguista, Leda Bisol (1924-), laureada na 7ª edição da série, em 2018.

3. A extensa produção acadêmica de Mattos e Silva pode ser conferida em seu currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/3149705136297230), porém há ali algumas lacunas. Para uma listagem mais completa, confira-se a que é apresentada pelo projeto Opera Omnia de Rosa Virgínia Mattos e Silva, abrigado no site do PROHPOR e acessível mediante o link https://www.prohpor.org/operaomnia e, sobretudo, aquela (a mais atualizada e revisada até então) arrolada no capítulo Rosa Virgínia Mattos e Silva: Biobibliografia, da pena de Tânia Lobo e Mailson Lopes (2018), na obra História do português brasileiro: o português brasileiro em seu contexto histórico, organizada por Ataliba de Castilho e publicada pela editora Contexto.

4. FARACO, Carlos Alberto. Rosa Virgínia, amiga e mestra. A Cor das Letras, Feira de Santana, v. 22, n. 1, p. 8-9, jan./abr. 2021.

5. Op. cit.

6. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Celebração de Rosa Virgínia Mattos e Silva. In: LOBO, Tânia et al. (Org.). ROSAE: linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 19-23.

7. FARACO, Carlos Alberto. Breve retrospectiva do pensamento linguístico-histórico no Brasil. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de. História do português brasileiro: o português brasileiro em seu contexto histórico. Vol. 1. São Paulo: Contexto, 2018. p. 32-71.

8. FARACO, Carlos Alberto. 40 anos de Linguística Histórica. In: HORA, Dermeval; ALVES, Eliane Ferraz; ESPÍNDOLA, Lucienne C. (Org.). Abralin: 40 anos em cena. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009. p. 99-116.

9. Op. cit.

10. https://www.prohpor.org/exposicao-80-anos-de-rosa-virginia.

11. Op. cit.

12. Op. cit.

13. BARONAS, Roberto Leiser. Rosa Virgínia Barreto de Mattos Oliveira e Silva (1940-2012). Disponível em: http://memoria.cnpq.br/web/guest/pioneiras-view/-  /jornal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/2525166. Acesso em: 10 maio 2019.

14. FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola, 2016. 


Organizadores

Juliana Soledade – UnB/UFBA.

Mailson Lopes –  UFBA. 


Referências desta apresentação

SOLEDADE, Juliana; LOPES, Mailson. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.7, especial, p.10-15, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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