VIDAL, Laurent Vidal (Org.). La ville au Brésil (XVIIIe — XXe siècles): naissances, renaissances. Paris: Rivages des Xantons, 2008. 402p. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
Entre 16 e 18 de 2005 realizou-se na França, em La Rochelle e Brouage, um colóquio intitulado “La ville au Brésil: naissances, renaissances”. Agora, três anos depois, publica-se um livro que aborda as principais questões e os temas desenvolvidos por ocasião do colóquio. Organizado por Laurent Vidal, historiador da Universidade de La Rochelle, o livro apresenta 25 artigos, um dos quais a título de conclusão, mesclando principalmente autores franceses e brasileiros, mas não só, que versam sobre o processo urbano em nosso país.
O Brasil tem se apresentado como um espaço preferencial para o estudo da formação, desenvolvimento e decadência das cidades, “um verdadeiro laboratório, um vasto terreno de experiências”. Como nos alerta Alain Musset, no texto que serve de conclusão ao livro, “das cinzas de uma cidade brasileira pode-se observar sua mudança de forma, de estatuto e de função”. As cidades, por serem tema de caráter transdisciplinar, têm interessado a especialistas de diferentes áreas, mas notadamente aos historiadores. Essa diversidade se reflete na escolha dos articulistas do livro, o que só enriquece e estimula o debate. São várias as questões que norteiam os diferentes artigos: Como se funda uma vila? Como um arraial se transforma em vila ou cidade? Quais os significados do espaço urbano e de que maneiras ele é apropriado? Como se opera o processo de transição entre a formação, o auge e a decadência dos espaços urbanos? Como se desenrola o tempo urbano? Enfim, como as urbes nascem e se transformam ao longo do tempo?
Desde o primeiro capítulo, que versa sobre a fundação do Rio de Janeiro, no século XVI, os autores lançam olhares críticos e se debruçam sobre vários mitos que há muito têm perdurado na historiografia. Nesse artigo, escrito por Maurício Abreu, como também no que versa sobre Vila Boa de Goiás, por Renata Malcher Araújo, e em quase todos os demais que se referem ao nascimento de urbes coloniais, questiona-se a idéia, semeada por Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, da falta de planejamento das cidades brasileiras criadas pela metrópole portuguesa. Outro paradigma posto em questão é o da decadência urbana enfrentada por algumas cidades como é o caso de Ouro Preto, no artigo de Cláudia Damasceno Fonseca e Renato Pinto Venâncio, ou Salvador, no capítulo escrito por Pedro de Almeida Vasconcelos. Até mesmo a idéia arraigada de que a cidade contemporânea tem se tornado espaço pouco democrático é desmistificada por alguns deles, como o de Paulo Costa Gomes, que apresenta o espaço das praias cariocas como locus de convivência democrática de vários grupos heterogêneos de moradores da cidade do Rio de Janeiro, ou ainda o de James Houlston, que revela o caráter reivindicatório de regras e direitos democráticos no discurso das gangs urbanas, bem como o artigo de Dominique Vidal que questiona diretamente o tema.
O livro se divide em duas grandes seções, uma que aborda o processo fundacional, os “Nascimentos” de várias urbes, mas que também toca e questiona o momento de decadência e morte de algumas delas, e a segunda, chamada de “Renascimentos”, que discute as transformações, as intervenções e as experiências vividas nos e pelos espaços urbanos. O espectro geográfico é amplo: Rio de Janeiro, Salvador, Goiás Velho, Brasília, São Paulo, Niterói, Porto Velho, Anápolis, Vila Bela, Niterói e Marabá são alguns dos inúmeros estudos de caso apresentados. Há estudos comparativos, como o de Rubenilson Teixeira e Ângela Lúcia Ferreira, que compara o processo de formação e desenvolvimento urbano de Natal e Assu, no Ceará, ou o de Maria Encarnação Sposito, que discute a formação sócio-espacial da rede urbana em São Paulo no boom cafeeiro. Mas há alguns artigos, como o de Fania Friedman, sobre as vilas do café no Rio de Janeiro, ou o de Hervé Théry, sobre as capitais brasileiras fundadas no século XX, que não se limitam a uma ou duas cidades específicas, mas tratam de toda uma rede de cidades. Algumas são próximas uma das outras, como o tecido urbano em torno de Marabá, estudado por Leandro Rocha, outras tantas são distanciadas geograficamente, como as capitais brasileiras fundadas no século XX, analisadas por Hervé Théry.
O marco cronológico é o da longa duração. Há artigos que versam sobre a fundação de cidades, desde o período colonial, como o Rio de Janeiro no século XVI (e não XVIII como o subtítulo do livro parece enquadrar); passando pelo início do século XX, como é o caso de Marabá, analisado por Leandro Mendes Rocha, e de Porto Velho, estudado por Martine Droulers e Laurent Vidal; até as décadas mais recentes, como é o caso de Brasília, estudado por Heliana Angotti-Salgueiro, através das imagens fotográficas de Marcel Gautherot. Há também casos em que uma mesma cidade é examinada pelo autor ao longo de um período bastante amplo, como é o caso de Ouro Preto, cujo processo de transformação da urbe é visto entre os séculos XVIII e XX, ou o de Niterói, descrito entre 1819 e 1930, por Marlice Azevedo e Fernanda Teixeira.
Se “desenho e engenho” foram a base sobre a qual nasceram várias urbes brasileiras, como nos casos clássicos de Vila Bela, Belo Horizonte ou Brasília, as mutações perpétuas por que passam as cidades brasileiras são resultado de uma relação dinâmica vivenciada entre os seus espaços e seus moradores. Sobre essas mudanças nos falam vários artigos, como o de Sylvie Miaux, sobre os condomínios do bairro da Tijuca, ou o de Rodrigo Valverde, sobre o Largo da Carioca, ambos no Rio de Janeiro, ou o de Sylvia Macet, sobre as festas em Goiás Velho, ou ainda o de Alain Musset, sobre o que diz a linguagem dos graffiti nos muros das cidades brasileiras. A questão do planejamento urbano é outro tema que surge do processo de transformação pelo qual as urbes passam ao longo do tempo. Tal é o caso de São Paulo, examinado por Maria Stella Bresciani, ou do Rio de Janeiro, examinado por Vera Rezende e Fernanda Furtado.
O livro não apenas aborda a cidade na sua concretude, mas também fala de imagens e símbolos construídos sobre elas. O artigo de Tânia Regina de Luca discute, por exemplo, as imagens de decadência das cidades do Vale do Paraíba construídas por Monteiro Lobato, mostrando tratar-se não de cidades reais, mas de metáforas do Brasil da época. Rémy Lucas apresenta as diversas imagens construídas sobre o arraial de Belo Monte, desde a linguagem jornalística concomitante à Guerra de Canudos até a obra literária que versa sobre o episódio.
Enfim, há toda uma amplitude de temáticas, questões e abordagens que uma pequena resenha não dá conta de abarcar. No entanto, é essa mesma diversidade que justifica e serve de convite ao leitor para que se aventure por esse mundo urbano brasileiro em mutação perpétua, descrito de forma instigante e criativa por esses autores.
Júnia Ferreira Furtado – Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. E-mail: juniaf@fafich.ufmg.br
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882008000200019
BEHE Michael (Aut), The edge of evolution: the search for the limits of darwinism (T), Free Press (E), ÁVILA Gabriel da Costa (Res), Revista Brasileira de História (RBH), Teoria da Evolução, Charles Darwin, Darwinismo, Europa/Inglaterra (L), Século 19 (P), Século 20 (P)
BEHE, Michael. The edge of evolution: the search for the limits of darwinism. New York: Free Press, 2007. 331p.Resenha de: ÁVILA, Gabriel da Costa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
A teoria da evolução a partir de um ancestral comum, através da seleção natural e da mutação aleatória, exposta por Charles Darwin n’A origem das espécies em 1859,1 formou um dos conjuntos de idéias mais influentes na história recente da ciência. O darwinismo atravessou as barreiras da academia e difundiu-se, bastante matizado, pela sociedade. Durante quase um século, o darwinismo dominou a explicação científica da origem da vida.
Com as novas descobertas ocorridas a partir de meados do século passado, especialmente do DNA, o nível de complexidade por trás dos processos celulares se mostrou maior do que o esperado pelos evolucionistas. Pôr o darwinismo à prova, à luz dessas descobertas, abre um enorme espaço para a refutação das idéias do naturalista inglês. Atualmente, o questionamento mais vigoroso a respeito da validade dos fundamentos teóricos do darwinismo parte das críticas de Michael Behe.
Michael J. Behe é um autor conhecido entre os estudiosos do darwinismo. Bioquímico e professor na Leigh University, na Pensilvânia, Estados Unidos, popularizou-se por defender o criacionismo — bastante camuflado — de forma bastante competente. Em 1996, com o lançamento de A caixa preta de Darwin,2 o autor tentava provar que algumas estruturas bioquímicas presentes em certas células são tão complexas que não podem ser explicadas pelo argumento da mutação aleatória, contrariando um dos pilares do darwinismo. A análise de Michael Behe fez o autor figurar entre os principais cientistas a advogarem em prol da teoria do design inteligente. Essa teoria defende que o darwinismo, mesmo sendo bastante coerente e verossímil, é insuficiente para a compreensão da vida e da evolução: a vida na Terra não alcançaria o estágio que alcançou baseada apenas em processos aleatórios. É necessário que haja um caminho a seguir, um projeto, um design funcional a ser alcançado.
Um dos suportes teóricos fundamentais para o design inteligente é o conceito de complexidade irredutível, introduzido por Behe em A caixa preta de Darwin. Segundo o autor, os avanços da ciência nos permitiram questionar a proposta evolutiva de Charles Darwin, principalmente quando se dispõe de dados e informações a que o naturalista jamais teve acesso, notadamente no que diz respeito à genética e à bioquímica. Analisando algumas estruturas celulares especialmente ‘elegantes’, o autor afirma que estas possuem uma configuração tão sofisticada que se torna impossível concebê-las em estágios anteriores na evolução, isto é, essas estruturas não poderiam ter evoluído de nada mais simples sem ter suas funções irremediavelmente comprometidas. Isso as faz irredutivelmente complexas. O livro gerou polêmica não apenas por seu conteúdo, mas também pela forma convincente da exposição.
Um longo debate teve início. Os darwinistas atacavam acusando os adeptos do design inteligente de criacionistas e anticientificistas, uma vez que, posta a questão do projeto que guia a evolução, é fácil questionar também a respeito do projetista. Quem é o designer? E a pergunta transcende o reino da razão, no qual se estabeleceu a ciência moderna, e passa para o campo metafísico da crença e da religião. Mesmo que se prove a inconsistência do darwinismo para explicar o desenvolvimento bioquímico de alguns organismos, o que é bastante saudável no meio acadêmico — embora o darwinismo possua acólitos fervorosos —, a hipótese de uma inteligência por detrás das estruturas da natureza lembra demais o criacionismo e outras idéias que não se sustentam se postas à prova pelos métodos desenvolvidos pela ciência para testar o conhecimento que ela produz.
Os defensores do design inteligente, por sua vez, acusavam os evolucionistas darwinistas de dogmatismo e de censura ao desenvolvimento científico, sentiam-se perseguidos por cientistas que se recusavam a aceitar a possibilidade de uma nova teoria para a evolução, julgavam estar enfrentando a “Nomenklatura científica”.3
Fica claro no debate a tentativa, de ambas as ‘facções’, de desqualificar os argumentos dos ‘adversários’ empurrando-os para o terreno da não-ciência, ou, ao menos, da ‘má ciência’.
Mais de dez anos depois de publicado o livro que reacendeu a tensão entre darwinistas e adeptos do design inteligente, Michael Behe volta à carga com The edge of evolution: a search for the limits of darwinism, estudo, lançado em 2007 e ainda sem tradução em português, que aprofunda as conclusões obtidas em A caixa preta de Darwin.
Enquanto o livro de estréia do autor partia de uma investigação mais específica, a respeito da ‘complexidade irredutível’ de algumas estruturas bioquímicas sofisticadas, The edge of evolution é muito mais ambicioso. A idéia central do livro é desenhar linhas gerais que demarquem o terreno a partir do qual o darwinismo deixa de ser útil na explicação não apenas de alguns processos bioquímicos localizados, mas também de aspectos gerais da origem das espécies. Com isso, o velho criacionismo ganha um status de saber científico na figura do design inteligente e, assim, pode disputar com o darwinismo o papel de detentor do conhecimento acerca da origem das espécies e da vida. Não é, agora, uma questão de ‘ciência contra religião’, mas sim de teorias científicas concorrentes.
Para os estudiosos da ciência, o surgimento de teorias que usem os pressupostos do racionalismo científico a partir de um pano de fundo religioso é, no mínimo, intrigante, pois aponta para questões novas que exigem uma revisão acerca das tradicionais idéias de ciência e razão. O desencantamento do mundo e a substituição dos elementos mágicos por elementos racionais — que, para Max Weber, consistia numa das principais características da modernidade4 — parece subvertido de forma bastante sofisticada. A razão científica é invocada por Michael Behe para dar validade a uma concepção mágica do mundo.
O estudo de Behe tem o mérito de investigar, como indica o título, os limites do darwinismo. Contudo, embora suas pesquisas demonstrem os pontos frágeis do darwinismo, não apresentam nenhuma evidência relevante a favor do design inteligente. Cabe a nós, historiadores e estudiosos da ciência, perguntarmo-nos que motivos o levaram a extrapolar de forma tão radical as fronteiras do método científico na defesa de sua teoria, quando, ao mesmo tempo, defende esse método tão veementemente ao atacar o darwinismo. De resto, é necessário atentarmos para a possível emergência de uma nova relação entre ciência e religião.
Uma história do darwinismo que tenha a pretensão de compreender o território conflituoso da afirmação de uma teoria científica em sua dimensão social não pode perder de vista as condições socioculturais que envolvem a produção dos discursos científicos. Ou seja, deve-se refletir sobre o tipo de ciência que pode ser feita por um católico apostólico romano que, como Michael Behe, direciona seu discurso a partir de convicções filosóficas e religiosas.
Não se trata de considerar, no entanto, a ciência como uma atividade neutra, objetiva, que pode ser corrompida pela subjetividade de criacionistas com interesses espúrios; trata-se de perceber a ciência como uma atividade humana que se inscreve no âmbito da cultura e que, por isso, está sujeita a variações e condicionantes sociais, culturais e históricos. A ciência está imersa em seu tempo. E o caso de Behe aponta para isso.
O design inteligente, como formulado por esse autor, dá aos criacionistas uma excelente oportunidade de desafiar o darwinismo na interpretação da origem da vida em igualdade de condições, especialmente em relação ao ensino dessas teorias nas escolas públicas dos Estados Unidos. Lá, a disputa pelo ensino do criacionismo em substituição, ou em paralelo, ao evolucionismo remonta ao início do século passado, e a matéria acabou na justiça em 1987, quando se decidiu suprimir o ensino do criacionismo, com base na noção de Estado laico. Com o advento do design inteligente, porém, a situação se altera.
Graças ao esforço cientificista de Michael Behe e outros cientistas ligados a essa corrente, outra vez a peleja entre darwinistas e criacionistas, agora escudados pelo design inteligente, vem à baila. Em 2004, a tentativa, no Liceu de Dover, de introduzir o design inteligente como explicação alternativa à origem da vida resultou em novo processo judicial, no qual a instituição foi acusada de privilegiar interpretações religiosas, contrariando assim o laicismo que rege a educação nos Estados Unidos. Pode-se perceber um jogo político no qual a ciência é um cavalo de batalha. E a reconfiguração do alcance do darwinismo, seja nas suas lacunas bioquímicas, seja nas cartilhas escolares, não significa um avanço das trevas sobre os territórios das luzes e da razão, mas uma demonstração da dinâmica da ciência tal qual se faz.
Notas
1 DARWIN, Charles. On the origin of species. Cambridge: Harvard University Press, 1975. 512p. [ Links ]
2 Cf. BEHE, Michael. A caixa preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução. Trad. Ruy Jungmann. 1.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 300p. [ Links ]
3 A Nomenklatura era a classe dirigente soviética, composta pelo alto escalão do partido comunista e do Estado. Segundo alguns críticos do regime de Moscou era o próprio Estado e usava essa condição para se beneficiar. É usada por alguns autores que defendem o design inteligente, quando se referem aos darwinistas, que dispõem de prestígio nas instituições científicas e constituiriam uma classe privilegiada.
4 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani Macedo. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 336p. [ Links ]
Gabriel da Costa Ávila – Mestrando em Ensino, Filosofia e História das Ciências — Universidade Estadual de Feira de Santana; FFCH — Depto. de História, Universidade Federal da Bahia (UFBA) — Estrada de São Lázaro, 197 — Federação. 40210-730 Salvador — BA — Brasil. E-mail: gabriel_avila_00@hotmail.com
CUETO Marcos (Aut), O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde (T), Editora da Fiocruz (E), NUNES NETTO Eduardo Silveira (Res), Revista Brasileira de História (RBH), História da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Século 20 (P)
CUETO, Marcos. O valor da saúde: história da Organização Pan-Americana da Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007. 241p. Resenha de: NUNES NETTO, Eduardo Silveira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008.
Na história das políticas de saúde pública no continente americano a presença da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é destacável, e na busca de delinear os caminhos da OPAS ao longo do século XX, Marcos Cueto desenvolveu seu estudo O valor da saúde.
Cueto é especialista em história da saúde pública no continente e, especialmente, no Peru, tendo desenvolvido importantes pesquisas e publicações enfocando essa temática e também a história da ciência naquele país. Sua circulação no Brasil é um tanto restrita, e este livro supre, em parte, tal lacuna.
Com pesquisa exaustiva em instituições de saúde, bibliotecas e arquivos, nacionais e de organismos internacionais — Organização dos Estados Americanos (OEA), OPAS, Organização Mundial da Saúde (OMS) —, e em periódicos da América Latina e dos Estados Unidos, o livro oferece justa visibilidade à trajetória histórica da instituição de saúde internacional mais antiga, e ainda ativa, a OPAS, criada em 1902.
A estratégia do autor foi a de acompanhar o desenvolvimento da instituição, numa linha fundamentada na sucessão das diferentes atuações e coordenações conduzidas por seus diretores gerais, cujos mandatos chegavam, em alguns casos, a dez anos.
O texto divide-se em seis capítulos: As origens da saúde internacional nas Américas; O nascimento de uma nova organização; A consolidação de uma identidade; Por um continente livre de doenças; Saúde, desenvolvimento e participação comunitária; Vigência e renovação.
As conjunturas e o desenvolvimento da saúde pública na região perpassam a periodização realizada pelo autor, interligados de modo muito interessante com as seguintes variáveis: o protagonismo de personagens importantes na saúde publica da região; as questões envolvendo os interesses particulares dos países-membros da OPAS (circulação de mercadorias e pessoas, prevenção de epidemias nos portos); os temas candentes da geopolítica de cada época (fim das duas guerras mundiais, guerra fria) conectados a emergência de sentimentos e estratégias de solidariedade continental latino-americana, num primeiro momento, e pan-americanismo da doutrina Monroe, num segundo período, expressando o interesse dos Estados Unidos nas ações da OPAS; o desenvolvimento do conhecimento sanitário, médico e higiênico, como também da engenharia, e as extensas fronteiras de ação social que as descobertas científicas como a microbiologia, a produção de novos fármacos, novas vacinas, a compreensão das dinâmicas das epidemias seus vetores, transmissores, e as técnicas de combate e prevenção, trouxeram; a criação de condições para o crescimento populacional, a urbanização (década de 1920) e a explosão urbana e demográfica (décadas de 1950 e 1960), as políticas de acomodação social, a reconfiguração das relações no campo e entre este e a cidade.
A forma habilidosa como o autor transita por diferentes fatores envolvidos na trajetória da OPAS deixa evidenciada a complexidade histórica dentro da qual a construção dessa instituição foi sendo forjada, bem como a maneira tortuosa, não linear, pela qual a saúde pública foi ganhando relevância dentro das políticas de cada um dos países, no plano interno-nacional e no internacional.
Resumidamente, a OPAS derivou da Repartição Sanitária Internacional, que fora fundada em 1902. Em 1923 sofreu alteração no nome para Repartição Sanitária Pan-Americana (RSP ou Oficina Sanitária Panamericana). A mudança de seu nome para OPAS aconteceu em 1943, como resolução da XII Conferência Sanitária Pan-Americana (Caracas, Venezuela). Apesar da nova nomenclatura, a entidade manteve o seu órgão executivo nomeado como RSP e a antiga estrutura decisória — colegiado com um membro de cada país.
A RSP interagiu através de acordos e convênios firmados em 1923 com a União Pan-americana (de 1890), assumindo a condução das Reuniões Interamericanas dos Ministros da Saúde. Em 1924 foi acolhida pelo Código Sanitário Pan-Americano do mesmo ano e reconhecida como “agência sanitária coordenadora central das várias repúblicas-membros da União Pan-Americana” e “responsável por promover a organização e a administração da saúde pública e divulgar informações sobre progressos da medicina preventiva”.
Com a fundação da OEA, em 1948, o papel da OPAS foi revisto. A OPAS era uma entidade ‘autônoma’ dentro das relações intergovernamentais e não estava submetida à nova estrutura da OEA. A relação entre ambas era diplomática. Foram necessários acordos entre a OPAS e a OMS, para que uma possível integração, garantindo certa autonomia à OPAS em matéria de saúde pública, fosse concretizada em 1950, quando esta passou a ser uma “Organização Especializada Interamericana” dentro da OEA, seu status atual.
A OPAS também foi reconhecida pela OMS (criada em 1948) como organismo regional dotado de autonomia diante dos organismos da Organização das Nações Unidas, dos quais a OMS fazia parte, através de um acordo de 1949, pelo qual passava a ser o escritório regional para as Américas da OMS.
A consolidação da OPAS foi paulatina, com dificuldades e prioridades diferentes ao longo do tempo. Suas ações também sofreram mutações. A adesão dos países como membros aconteceu plenamente entre 1940 e 1950, quando a organização passou a englobar as Américas e o Caribe.
A capacidade de financiamento limitava as ambições da instituição. Com o tempo ampliou-se a capacidade financeira. Os orçamentos eram estes: entre 1910 e 1930, 50 mil dólares; nos anos 40, 115 mil a 280 mil dólares por ano; em 1947, 1,3 milhão de dólares; no fim dos anos 50, 2,5 milhões; entre 1961 e 1964, 16 milhões de dólares por ano.
Constituiu-se assim uma ‘burocracia’ e uma área técnica vinculada à instituição, como um corpo permanente e estável, chegando ao auge de 750 funcionários em 1959.
A ampliação da presença da OPAS nos países se deu com a divisão das Américas em seis zonas, com um escritório regional em cada. Posteriormente, cada país passou a comportar um escritório local.
As finanças provinham de fontes regulares (pela contribuição dos membros); de projetos financiados e bolsas de estudos da Fundação Rockefeller (1920-1950), Fundação Kellogg (após os anos 40), OMS, Unicef (Fundo da ONU para as Crianças), ONU e FAO (organização da ONU para Alimentação e Agricultura); de convênios e acordos técnicos com países da região e, especialmente, com os Estados Unidos, em auxílio intensificado na guerra fria (1941-1951, atingindo cerca de 30 milhões de dólares).
As atividades e deliberações durante um largo período estiveram circunscritas a estas instâncias: Conferências Sanitárias Pan-Americanas, Conselho Diretor e Comitê Executivo. Como órgão executivo, a Repartição Sanitária Pan-Americana.
A ação da OPAS deu-se, inicialmente, por publicações como o Boletin de la Oficina Sanitária Panamericana, e pela participação nas Conferências Sanitárias, fomentando debates sobre saúde pública. O combate às epidemias provenientes de portos propiciou uma ‘guerra às epidemias’ com a estratégia de combater vetores e promover vacinação/imunização e educação.
A redução da mortalidade infantil e materna era preocupação constante. Também recebeu atenção a necessária indução à formação de escolas de enfermeiras e de pessoas capacitadas para o trabalho na área da saúde, higiene e sanitarismo.
A promoção de estruturas de fomento à saúde pública nos países (Ministérios ou Secretarias de Saúde, Centros de Higiene) atravessou o percurso da OPAS, que procurou induzir gestores públicos a adotarem medidas de saúde coletiva como forma de a sociedade auferir benefícios como mais trabalhadores saudáveis e produtivos, e crianças menos enfermas.
A emergência da noção de saúde como um valor vinculou-se à noção de bem-estar social, pela qual a prevenção, a extensão de serviços públicos e a implementação da atenção primária à saúde englobariam o paradoxo que redunda na gênese da concepção de saúde como um direito individual e coletivo dos cidadãos. Ao mesmo tempo, a visão estratégica dos governos, no período da guerra fria, busca promover o bem-estar com a finalidade de limitar a possibilidade do surgimento de tensões e conflitos sociais entre capital e trabalho.
A OPAS exerceu uma função estratégica na região após a criação da Aliança para o Progresso, em 1961, pela OEA, para a qual o bem-estar social era critério para a ‘paz’ na região. Essa diplomacia sanitária foi perpassada pelos interesses dos governos, em especial dos Estados Unidos. Entretanto, a OPAS não foi uma agência submetida a um único governo. Um exemplo: à época da expulsão de Cuba da OEA, a OPAS não anuiu com a orientação dessa organização e sustentou aquele país como Estado-membro de sua estrutura.
A presença e a consolidação da OPAS no continente americano e sua participação direta e indireta na promoção e constituição da saúde pública dos países da região fazem deste livro uma importante referência. A OPAS desenvolveu esforços para se formar um ambiente regional de cooperação, de planejamento, e de ações dirigidas a políticas e intervenções de saúde, daí a importância em se tentar compreender as especificidades americanas nessa área, cuja historicidade e temporalidade são peculiares.
Antes de encerrar seu potencial de reflexões sobre a história da OPAS, o livro O valor da saúde aponta um horizonte de novos estudos relacionados a organismos internacionais, políticas de saúde pública, dinâmicas e tensões que atravessam as entidades inter-governamentais, redes intelectuais, profissionais e científicas. Aponta, também, a ascensão às esferas de poder de áreas do conhecimento como a medicina e a engenharia.
Eduardo Silveira Netto Nunes – Bolsista Fapesp. Doutorando em História Social — FFLCH/Universidade de São Paulo (USP) — Largo Padre Péricles, 74, ap.61 — Barra Funda. 01156-040 São Paulo — SP — Brasil. edunettonunes@yahoo.com.br
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