CERTEAU, Michel de. La possession de Loudun. Paris: Gallimard ed., 2005. Resenha de: COSTA, Otávio Barsuzzi da. Revista Mundo Antigo, v.6, n.12, jun., 2017.
Biografia
Nascido em Chambéry, em maio de 1925. De uma formação ecleticamente invejável, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas nas universidades de Grenoble, Lyon e Sobornne, em 1950, ele ingressa na companhia de Jesus; em 1956 é ordenado sacerdote e vive como jesuíta onde é formado teólogo pelo seminário jesuíta de Lyon. Se preocupa com estudos de método de e analise de textos ascéticos e místicos da renascença. Erudito e jesuíta, Michel de Certeau é um nome bastante conhecido na academia de ciências humanas. Ocupando cadeiras de universidades americanas de peso tais como Universidade da Califórnia e San Diego, mais tarde ocupará uma cátedra de “Antropologia Histórica das Crenças, na École des hautes études en sciences sociales (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais) se torna um autor fundamental em todas ciências sociais.
O Compromisso de De Certeau às versões de história oral e de considerar muitas vozes para um mesmo fato é manifesto na metodologia historiográfica adotada na obra (La possession de Loudun) A possessão de Loudun; assim ele reconhece a presença constante de heteroglossia (uma multiplicidade de vozes), e seu desaparecimento na história oficial. Na construção de seu raciocínio e de sua pesquisa surgem histórias contraditórias, cada em diferentes épocas e lugares e cada uma delas conexa em transformações políticas e epistemológicas, de Certeau não só mantém uma postura autoral não-convencional, mas o mais importante: mostra ao leitor aquilo que está perdido, faltando e fragmentado no processo de escrever a história oficial.
Sobretudo quando a história se refere ao tema religião, há de se saber que essa história não pode ser determinada apenas por uma determinada posição em uma matriz social, econômica e religiosa, mas por uma subjetividade complexa, um conjunto complexo de sentimentos e medos, que são centrais para todo um contexto cultural. Há várias leituras da obra de De Certeau sobre estas questões da subjetividade e da narrativa histórica e este trabalho ora analisado (La possession de Loudun) não tem a pretensão de fornecer um ponto final as essas questões, mas sim clarificar alguns pensamentos da obra do autor. No entanto, a contribuição de Certeau nessa seara complicada, ajuda-nos a refletir sobre o encontro entre o pluralidade de práticas que ocorrem no cotidiano.
A obra:
O relato de De Certeau da possessão em Loudun demonstra como o passado sempre adquire significado através de sua permanencia no presente; Sua história, portanto, não é meramente um registro do fato que aconteceu em Loudun em 1632, mas também das histórias que foram escritas sobre o fato desde então, e na verdade um espelho de seu próprio método histórico. De certo modo reflete a histora de um crime não cometido e de como sistemas juridicos na história podem se realizar para condenar alguem que atrapalha a comunidade forjando provas.
A apresentação plural de documentos reflete as turbulenta Transformações políticas e culturais em Loudun de 1632, essa cidade havia sido devastada pelas guerras religiosas, e pela peste negra; estava em crise economica além de estar localizada na fronteira protestante e habitada por diversos Huguenotes protestantes.
O livro ora analisado traz à baila um acontecimento ocorrido em Loudun, no século XVII, utilizando estratégias que podem dar contirbuições metodológicas unicas as histórias oficiais, mais do que um relato é uma lição de metodologia, sobre um caso real do passado: a suposta possessão de todo um convento em meados do século XVII, no interior da França, por diferentes demônios. A prioresa Jeanne des Anges foi quem primeiro sofreu com a ação das criaturas infernais; não demorou para que as outras freiras ursulinas entrassem em convulsões, torcessem os corpos e proferissem blasfêmias.
Na trama, Padre Grandier adquire invejavel interferencia religosa e política sobre o vilarejo fortificado de Loudun, único local que resiste aos planos do Cardeal Richelieu de exercer controle total sobre a França. Um convento que abriga freiras sexualmente reprimidas se torna o centro de uma disputa pelo poder entre o padre e o Cardeal. Para acabar com o poder de Grandier, o cardeal envolve o padre em uma trama diabólica, com sérias acusações de heresia.
A obra retrata um dos períodos mais obtusos da Igreja Católica. Subverte o sagrado, e desnuda as relações promíscuas existentes entre o Estado e a Igreja no século XVII, revelando os males da religiosidade castradora e política que era a Europa daquele tempo. Retrata também um dos mais famosos casos de foja de provas na condeção juridica da história.
O livro descreve um fato histórico, registrado nos documentos da santa inquisição francesa. Também é recorrente no folclore popular da região de Poitou-Charentes e de Poitiers de onde faz parte. O que faz a história não significa aqui ser cientificamente real. O fato é que está registrado nos documentos um curioso caso, portanto verídico, o caso da possessão das freiras de Loudun.
As freiras de certo convento acreditavam-se possuídas por demônios. Esse caso Certeau analisou histórica e através do folclore da região. Não é a possessão que é verídica, não entraremos nesse assunto, o caso é verídico. Ao lado desse episódio verídico, os preconceitos e os dogmas em que mergulhava a França da época constituem os elementos a partir dos quais Certeau realiza uma profunda investigação sobra a natureza da vida espiritual – analisando principalmente a possessão como uma realidade que tem lugar dentro e fora da psique humana.
O fato é largamente registrado não só nos documentos da santa inquisição, mas também nos registros dos tribunais civis. Também é registrado em diversos livros de magia e de relatos de casos sobrenaturais. Também ainda hoje está bem registrado entre os curas, padres, freiras e populares da região. Qualquer guia turístico da região relata com riqueza os detalhes do caso. Está nas igrejas e nas ruínas do convento ursolino que hoje é uma espécie de museu a céu aberto.
A própria forma de como foi escrito o livro reafirma o argumento de que De Certeau pretendeu fazer sobre a historiografia: a de que é impossível contar apenas uma história sobre Loudun, ou mesmo qualquer processo histórico. A mensagem é comunicada não só através do conteúdo do texto, mas também a sua forma. O original Edição francesa (1970) manteve uma distinção tipográfica estrita entre passagens extraídos de fontes oficiais documentais. As fontes simplesmente são apresentados sem interpretação imediata, torna-se claro o quão longe de “óbvio” que podem significar.
As fontes documentais e as explicações do autor muitas vezes contradizem uns aos outros, e levantam novas questões. A possessão de Loudun ensaia formar um método que escreve contra a história oficial e é contra seguir um único método, universalista, em favor de uma abordagem eclética ao dar valor a multiplicidade de vozes que foram escondidas ainda recuperáveis a partir do registro histórico. Essas vozes não podem mais ser ouvidas, exceto no interior do contexto onde ecoam.
A Possessão
As possessões começaram a 22 de setembro, 1632, no centro-oeste da cidade francesa de Loudun, que vivia um clima de crises e incerteza. Por causa da peste a Coroa, para centralizar o seu poder, deu uma ordem para derrubar os muros da cidade. A ordem real para demolição havia dividido Loudun em quem queria manter as paredes – em geral, os huguenotes – e aqueles que se aliaram com a Coroa e o seu desejo de um governo central forte – em grande parte, a população católica. Aliada a angústia gerada por essa luta política, houve o retorno da peste, em maio de 1632, que custou a vida de um segmento significativo da população. Estas circunstâncias alimentaram apreensão sobre o futuro, e criou uma atmosfera de ansiedade que definir o cenário para um dos julgamentos de bruxaria mais notórios da história.
Urbain Grandier nasceu em Bouère e, tendo estudado ciências com seu pai Pierre e seu tio Claude Grandier, que eram astrólogos e alquimistas, foi admitido, aos doze anos, no colégio Jesuíta de Bordeaux, recebendo uma educação tradicional. Tinha, no entanto, o dom da oratória e muita facilidade no aprendizado de idiomas. Devido a essas habilidades, foi incitado por seus professores a praticar a pregação, a fim de aprimorar seus dons. Assim que tomou os votos, foi designado para a paróquia de Saint-Pierre, em Loudun.
Tal honraria suscitou críticas e inveja. Além disso, o padre Grandier possuía outros predicados invejáveis. A eloquência dos seus sermões tinha atraído à sua igreja grande parte das congregações de outras comunidades religiosas. Dono de uma beleza incomum e de uma inteligência singular, o que decerto teria sido responsável pelo seu brilho em uma cidade grande, como Paris, foi responsável por sua derrocada em Loudun. Aos vinte e sete anos de idade, o elegante Grandier era bonito e eloqüente, tinha habilidade na espada, sagacidade e glamour de sobra.
O padre jesuíta Urbain Grandier chegou em Loudun em 1617, e com esse ato, foi concedido dois benefícios lucrativos aos Jesuítas: o ofício de pároco de Saint-Pierre-du-Marché, e nomeação como um cânone na Igreja de Sainte-Croix. Apesar de ter feito inimigos – Ele foi fortemente a favor da manutenção das muralhas da cidade Loudun, adquirindo uma perigosa atitude anti-Richelieu, e uma postura anti-monarquista. Grandier também tinha ganhado o apoio de muitos homens influentes no início de sua carreira. Por doze anos, ele foi um grande sucesso. Sua situação privilegiada não durou muito. Parte de sua personalidade hollywoodiana, aliada a uma predileção por se envolver com diversas mulheres, levou-o a perder apoio e a ser odiado por homens poderosos, para não falar de sua perigosa opinião política. Um evento crucial que contribuiu para a queda de Grandier foi a “Sedução de Philippe”, a filha do proeminente Louis Trincant, promotor do rei em Loudun e um dos mais ferrenhos amigos e apoiadores de Grandier. Embora não possa ser comprovado, é provável que Philippe foi engravidada por Grandier. Depois que Philippe ficou grávida, á vida de Grandier começou a degringolar, perdera seus aliados3 e seus vícios que não combinavam com um padre começaram a ser revelados.
No processo jurídico-eclesiástico contra Grandier, consta como prova conclusiva um pacto, ou seja, um documento encontrado entre os papéis do réu devassados depois de sua prisão, pretensamente assinado com sangue por ele e pelo demônio Asmodeus. Grandier, mesmo sofrendo cruel tortura, jamais confessou ser o responsável pelos acontecimentos em Loudun.
A política
Um de seus mais ferozes opositores era La Rocheposay, o bispo de Poitiers. Grandier ignorava os votos de celibato, relacionando-se sexualmente com várias mulheres. Em 1632, quando as freiras do convento das Ursulinas apresentaram sintomas de uma histeria coletiva, então interpretada como possessão, o padre foi acusado de ter invocado demônios, Asmodeus e Zabulon, para que fossem forçadas a cometerem atos indecorosos com ele.
As irmãs Ursulinas do convento local começaram a ouvir vozes, sentir presenças de espíritos e rir involuntariamente. Algumas tinham convulsões, e em 01 de Outubro de 1632 o diabo foi declarado responsável. A relativamente nova ordem religiosa, as Irmãs Ursulinas, abriu seu primeiro convento de Loudun em 1626. Por volta de 1632, o jovem Jeanne des Anges assumiu como prioresa dirigindo assim um convento de dezessete monjas jovens com idade média de vinte e cinco anos. Ela foi descrita como portadora de uma “vontade forte, manipuladora, muito nervosa, e uma atriz brilhante”. quando ela decidia assumir um caráter particular, seja de grande caridade, grande aprendizado, grande misticismo, ou grande poder, outras a seguiriam. “Não é difícil imaginar como Prioresa , uma posição poderosa de no convento combinada com seu carismático jeito de se pode ter persuadido as outras freiras de sua própria possessão.
As possessões começaram pouco depois da crise da peste que atingiu em 1632. Eles começaram quando uma freira, irmã Marthe, teve uma visão do Padre Moussaut, confessor recentemente falecido da freira. As visões do Padre Moussaut logo transformado em visões eróticas de Urbain Grandier, a quem as freiras nunca conheceram. Sonhos lascivos com Grandier se espalharam entre as freiras, incluindo Jeanne des Anges, que se tornou a peça central dos exorcismos públicos posteriores; ela foi considerada a mais fortemente possuída. Como as possessões se expandiram, muitos começaram a vê-las como a revelação da vontade de Deus, mostrando que Deus estava de fato irado com a Igreja Católica por causa dos protestantes. Um bem sucedido exorcismo pelos padres iria demonstrar o poder da Igreja para vencer o Diabo e reforçar o Catolicismo, e talvez até mesmo incentivar conversões. Por outro lado, reconhecendo as possessões como uma farsa seria equivalente a uma declaração de que em a ordem católica haveria mentido, afastando as vocações de jovens e ricas noviças, algo lucrativo para o catolicismo, ou que membros do clero católico, eram brincalhões mal-intencionados, ou insanos, tudo isso frente a ameaça do crescimento protestante.
Os exorcismos foram impressionantes, e o lascivo e bizarro comportamento das jovens freiras durante os exorcismos atraiam um público cada vez maior. As freiras gritavam palavrões, vociferavam, se expunham, falavam uma forma deturpada do latim (que elas não sabiam), e contorciam seus corpos em posições obscenas e estranhas.
Mais política
Finalmente, o Coroa e o Cardeal Richelieu intervieram. A sedução de um sacerdote de uma paroquiana foi um fato grave demasiado flagrante para ser ignorado, e por isso se sentiu obrigado a assegurar a punição de Grandier em nível pessoal, Richelieu tinha sofrido uma humilhante derrota pública por Grandier alguns anos antes de sua ascensão ao poder como primeiro-ministro do rei. E politicamente, Grandier tinha garantido a animosidade de Richelieu quando ele veementemente se opôs à ordem real para demolir as muralhas da cidade de Loudun.
Quaisquer que sejam as razões para tomar um interesse no caso, a intervenção da Coroa havia selado o destino de Grandier. Um grupo de magistrados locais foi montado pelo Comissário do Rei (pai da ofendida), o Intendente Laubardemont (outro desafeto de Grandier), foi nomeado para presidir o corpo de juízes. Ao todo, setenta e duas testemunhas apareceram no julgamento.
As provas e testemunhos Anti-Grandier incluíam afirmações de que Grandier tinha convidado alguém para um Sabath4, que tinha feito um pacto com o diabo, e que seu corpo deu insensíveis ” marcas diabólicas”. Esse ultimo fato foi “atestado por médicos” que apesar dos gritos de Grandier durante os exames afirmaram que o padre tinha insensibilidade em certas partes do corpo, algo tido pela cultura europeia como sinal do pacto demoníaco.
O registro do julgamento foi gravado em cerca de cinco mil folhas em tamanho ofício, e durou 18 dias. Grandier apareceu perante os juízes de 15 a 17 de Agosto. Ele foi considerado culpado de feitiçaria, conjuração de feitiços malignos, e possessão das Ursulinas, bem como algumas mulheres não religiosas. Em 18 agosto de 1634, Grandier foi torturado e queimado na fogueira.
As possessões não foram extintas com a morte horrível de Grandier; eles continuaram , e o último exorcismo foi realizado em 1638. Durante o julgamento, as freiras foram determinadas, tanto pela igreja e Estado, terem sido possuídas. Só mais tarde é que as pessoas acreditaram que as freiras tinham sido escolhidas para suportar as possessões para a glória da Igreja.
A prioresa Jeanne des Anges emergiu do caso com grande notoriedade, e sua fama só continuou a crescer depois de da morte de Grandier. Ela tornou-se famosa por supostamente ter o poder de cura surgimentos das marcações milagrosos que apareciam em sua mão com os nomes de Jesus, José, Maria e Saint François de Vendes (obviamente riscadas a faca). O rei e a rainha, bem como Richelieu, insistiram em conhecê-la , quando ela viajou para Paris, onde também visitou os nobres parisienses. Jeanne des Anges foi considerado santa por muitos; após sua morte, sua cabeça foi preservada em um relicário, e venerada no convento das Ursulinas em Loudun, que foi reconhecido amplamente como um lugar sagrado.
Analise de algumas obras feitas por Certeau
Dentre as inúmeras obras consultadas uma chama atenção, a Histoire des Diables de Loudun do autor Aubin. Este trabalho foi publicado em 1693, e sua página de título apresenta um lobo investigando uma colmeia em uma árvore. Em 1716, a sua título aparece como Cruels Effets de la Vengeance du Cardinal de Richelieu. A mudança de título indica a vontade de reconhecer as implicações políticas do julgamento de Grandier. Os encontros e influencia de Grandier com o autoridades locais e os problemas decorrentes da sua conduta crioram uma celeuma no meio religioso e secular que Aubin destaca, não apenas como fato perigoso para Loudun, mas como uma ameaça aos valores reais e religiosos. O autor, Nicolas Aubin, era um ministro huguenote que tinha vivido em Loudun, e escreveu este livro cerca de cinquenta anos após a execução de Grandier. Aubin descreve a sedução, de Philippe como simplesmente um rumor. Como huguenote, Aubin contou a história das possessões a partir de uma perspectiva anti-católica. Embora autores católicos mais tarde discordassem com a versão de Aubin O exame do escritor e frei La Menardaye, da obra “Critique de l’Histoire des Diables de Loudun” apresenta a posição católica sobre a possessão e é uma clara resposta à obra de Aubin. La Menardaye apoiou a visão católica, afirmando que as evidências apresentadas no julgamento era válidas; e que comportamento estranho das freiras foi devido a sua possessão; afirmava que Richelieu não foi motivado por vingança pessoal; e os indivíduos envolvidos no caso, os exorcistas, juízes e Laubardemont, foram irrepreensíveis.
Outra obra A “Histoire de la abrégée Possession des Ursulines de Loudun, et des Peines” do Padre Surin, que foi o mais dedicado exorcista de Loudun foi publicado em 1828. Padre Surin escreveu esta peça depois de deixar Loudun como exorcista de Jeanne no final de 1640. Como muitos outros de sua época, Surin acreditava em possessões e demônios, e como Exorcista de longo prazo da Jeanne, ele sinceramente acreditava que ela estava possuída. A primeira metade dos 21 textos se concentra em Loudun e suas experiências como exorcista de Jeanne; no segundo semestre, Surin descreve sua própria possessão.
A obra de Alphonse Bleau, “d’Histoire sur la Ville et les Possédées de Loudun” (1877) se discorda das publicações anteriores sobre a possessão das freiras de Loudun. Bleau argumentou que a doença mental e que acometia as freiras. Além disso, ele afirmou que Urbain Grandier morreu vítima de um “assassinato judicial.
A Biblioteca consultada também foi uma cópia da autobiografia Jeanne des Anges “, “Soeur Jeanne des Anges, Supérieure des Ursulines de Loudun”, que ela escreveu em torno de 1644. Grandier é quase não mencionado; Jeanne se concentra principalmente na sua possessão e como ela superou isso. O verdadeiro alvo de seu livro parece ser os huguenotes, em vez de o Diabo ou Grandier. No encerramento deste livro, duas cartas de Jeanne são reproduzidas em formato dobrável. Eles são a “Lettre du Démon Asmodée5 – Ecrite de la main de Soeur Jeanne des Anges” e “Lettre de Soeur Jeanne des Anges à Laubardemont“. Este trabalho é parte de um conjunto maior de obras da editora intitulada Bibliothèque Diabolique, que inclui uma outra obra sobre a possessão de uma freira, intitulado “La possession de Jeanne Fery”.
Conclusão de Certeau
Com muitas obras se contradizendo, e muitas vozes dizendo fatos discordantes só pode significar uma coisa, nenhuma delas é verdadeira, a partir daí Certeau quer achar a verdade e traduz em uma serie de coisas que os documentos não diziam. Acha então as vozes caladas pela história.
Como se vê, Certeau denuncia o subtexto do fato relatado por varias obras. Ele conclui que Grandier foi julgado não por motivos mágicos e diabólicos mas por motivos políticos. Como influente numa importante cidade comercial local ele foi contra a ordem real de derrubar os muros, se alinado com a ameaça Huguenote. Uma ameaça que amarrava as mãos de Richelieu, devido aos contatos comerciais com esses protestantes. Ao mesmo tempo precisava se livrar de um incomodo e poderoso padre em uma cidade influente da França e impedir novas conversões ao protestantismo. Um teatro de exorcismo foi providencial para mostrar o poder místico da igreja católica, ainda que contrariando o recomendado no ritual romano de se fazer exorcismo as portas fechadas, ao contrario, tornou-se um teatro. Com isso ainda Richelieu reafirmou sua influencia na corte real trazendo uma “Santa” (Jeanne des Agnes) para curar a doença do jovem infante.
De Certeau conseguiu ver o subtexto consultando obras além da historia oficial e o folclore sobre o local atual, entrevistou pessoas e chegou a conclusão de uma outra face da história. O relato possessão em Loudun revela algo talvez mais assustador que demônios reais, pois denota que fatos históricos são deslocados para a mentira6, deslocando os conflitos de seus verdadeiros focos: a luta entre poderes religiosos e políticos, os mais sujos interesses humanos são escondidos e culpam algo sobrenatural. Como próprio autor diz é sempre uma crise humana e não sobrenatural, a maldade (características dos demônios) são negadas pelo homem que é capaz de fazer muita crueldade que pode ser muito humana.
Sobre possessões
Demônios sempre apareceram, melhor sempre são relatados em crises, e há inúmeros relatos na historia. A possessão também é um termo caro na antropologia. É um relato comum em varias culturas e religiões diferentes, mas sempre está ligado a uma situação de crise, alguns relatos oficiais declaram o episódio da possessão, não se pode afirmar cientificamente que uma figura demoníaca exista, mas os relatos estão bem registrados na historia, o que importa é que milhares de pessoas acreditam e isso perfaz um quadro cultural passível de estudo nas Ciências humanas e médicas.
Milhares de caso são registrados em diversas culturas. As mais antigas referências à possessão demoníaca vêm dos sumérios, que acreditavam que todas as doenças do corpo e da mente eram causadas por “demônios de doenças” chamados gidim. Nas culturas xamânicas e animistas é um termo recorrente.
Alguns casos relatados na história famosos são: O caso relatado na Cidade Salem, inúmeros registros na idade média, mais atualmente o caso de Anneliese Michel, George Lutkins, Robbie Mannheim, Michael Taylor, Clara Germana Cele e inúmeros relatos nas igrejas pentecostais.
Os diabos sempre aparecem em situações de crise e comoção social, por isso em meio ao pentecostalismo brasileiro, um público sempre oprimido por uma situação econômica e social difícil é comum o quadro de possessão demoníaca. Também cresce no Brasil e na Itália padres católicos exorcistas numa tentativa de conter o crescente ateísmo e conversões a outras religiões. Em meio as crises, a falta de percepção do quadro político econômico, as pessoas precisam culpar alguém por seus diversos fracasso ou de seus amados, porque não culpar o demônio ao invés do alcoolismo ou da drogadição de seu filho, ou de sua conduta criminosa, porque culpam os políticos ou porque não culpar o diabo?
Assim o homem perde a sua responsabilidade, perde a responsabilidade de seus crimes. Passar a responsabilidade para uma pessoa, ainda que seja algo não humano do sentido que fala Latour, é uma tendência humana, apenas superando tal tendência é que se encaminha para a melhora do gênero humano e a cura interior de seus próprios erros.
Notas
1 Tradução e adaptação livre do resenhista.
3 Não é de admirar, se a sedução de Philippe de Grandier fosse um fato, o círculo de homens Loudun que se alinharam como inimigos amargos contra Grandier levou estreitos laços de família ou amizade Philippe e seu padreLouis Trincant, como Robert Rapley mostra em um caso de Feitiçaria: O Julgamento de Urbain Grandier (Montreal: McGill University Press-queen, 1998), 25-29.
4 Ritual demoníaco.
5 Inicialmente durante os exorcismos, faz parte do ritual romano, livro reconhecido pelo magistério católico de como exorcisar, forçar o diabo possessor a se identificar, porem durante os exorcismos eles não se identificavam. Porem mais tarde o chefe dos demônios se identificou como Asmodeu, largamente associado ao demônio da luxuria e um dos príncipes do inferno segundo a narrativa mística judaica – cristã revelada na chave menor de Salomão, um grimório que explica os papéis e invocações dos demônios.
6 No pensamento judaico cristão o chefe dos demônios é o pai da mentira.
Referências
CERTEAU, Michel de ( [1970], Ed. 2005) La possession de Loudun. Paris, Gallimard ed.
Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa – Graduado em Ciências Sociais e filosofia pela UNESP, Mestre em filosofia pela UNESP, Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista, Doutorando em Ciências Sociais e filosofia pela UNESP, Professor substituto de Antropologia da UNESP –FAAC.
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