La Mente y sus Problemas – Temas actuales de filosofia de la psicología – RABOSSI (P)

RABOSSI, E. (Org). La Mente y sus Problemas – Temas actuales de filosofia de la psicología. Buenos Aires: Catálogos S. R. L., 2004. Resenha de: TEIXEIRA, João de Fernandes. Principia, Florianópolis, v. 9, n.1–2, p. 213–220, 2005.

Estamos diante de uma obra de grande porte. Uma iniciativa louvável tanto pela sua unidade como pela sua diversidade. À unidade temática que junta num só volume os principais problemas da filosofia da mente contemporânea contrapõe-se a diversidade de tratamentos dados a cada um deles. Isto faz com que a obra espelhe, com grande riqueza, a produção filosófica latino-americana nesta área — uma lacuna que precisava urgentemente ser preenchida.

Digo latino-americana não porque abarque o continente, mas pelo fato de nela encontrarmos artigos nas duas grandes línguas da América do Sul: o espanhol e o português brasileiro.

Há quatro grandes temas (cada um correspondendo a um capítulo) que compõem o livro: a natureza da psicologia popular, isto é a chamada folk psychology; a discussão acerca das arquiteturas mentais e a questão da modularidade; o problema da causação mental e a questão da ontologia dos qualia. Cada um desses temas é analisado em profundidade por um grupo seleto de autores. Não podendo falar de todos — por óbvias questões de tempo e espaço — optei pela estratégia de comentar um de cada seção, sem que isto signifique, em hipótese alguma, uma escolha por relevância.

O professor Eduardo Rabossi inicia a coletânea, com um artigo panorâmico discorrendo sobre o estado da arte nas discussões contemporâneas sobre a folk psychology. É uma apresentação completa e impecável de como esse termo (criado em 1981 por Daniel Dennett) acabou por assumir uma grande importância no cenário da filosofia da mente, chegando, posteriormente, a desdobramentos como os da “folk physics” e da “folk biology.” Nesta primeira parte chama a atenção o último artigo, de Pim Haselager e Maria Eunice Q. Gonzales “Conhecimento comum e auto-organização.” No seu percurso, os autores tocam em temas candentes, que incitam à reflexão. Eles se referem, por exemplo, à teoria da auto-organização (TAO). Mas existirá algo como uma teoria da auto-organização ou não será este apenas um conceito intuitivo, oriundo de algum tipo de “folk science”? E, neste caso, uma abordagem da psicologia popular baseada na TAO, não correria o risco de circularidade? Ficamos sem saber se a brevidade com a qual os autores se referem a TAO é parcimônia deliberada ou se reflete dificuldades teóricas ainda não contornadas. A segunda hipótese parece ser a mais provável.1 Senão vejamos. O conceito de auto-organização é inegavelmente controverso, apesar de sua utilização cada vez mais freqüente no discurso da ciência cognitiva contemporânea. Michel Debrun, um dos maiores entusiastas da TAO chega a afirmar que “uma organização ou forma é auto-organizada quando se produz a si mesma.” Mas será isto suficiente para iluminar o conceito de autoorganização? Não continuaria esse conceito apenas desempenhando o papel de medida da nossa ignorância, ou seja, preenchendo nossa necessidade de explicar o que ainda não podemos compreender? Ou não estaríamos, por acaso, beirando uma tautologia ao utilizarmo-nos de um conceito que apenas confunde descrição com explicação? Dificuldades teóricas semelhantes percorrem a TSD, mencionada pelos autores. Dificuldades estas que, aliás, já foram cuidadosamente apontadas por autores como Elliasmith (1996) e que, pelo que me consta, ainda permanecem ser resposta. O encanto intuitivo da idéia parece ir se desmoronando a medida em que uma análise conceitual mais precisa vai desvelando sua vagueza inerente.

Parece-nos, no final, que a idéia de auto-organização acaba por denotar apenas algo como o reconhecimento ou observação de uma implícita espontaneidade (animista?) que queremos atribuir ao modo como os fenômenos naturais se sucedem.

Passemos para a segunda parte da coletânea. Esta nos traz um excelente artigo de Verônica Ramenzoni, “De la máquina sintáctica a la máquina biológica; desafiando la metáfora computacional.” Seu ponto de partida é uma recapitulação dos pressupostos teóricos da GOFAI (Good and Old Fashioned Artificial Intelligence) para em seguida explorar uma comparação entre os diferentes modos de conceber arquiteturas cognitivas. Verônica distingue entre “sistemas com arquitetura fechada” e “sistemas com arquitetura aberta.”

Sistemas fechados utilizam-se de símbolos físicos e partem do pressuposto da cognição entendida como representação. Sistemas abertos, além de corporificados e situados estão em contato com o mundo que os cerca. Aos primeiros corresponde o paradigma simbólico da Inteligência Artificial, aos segundos, as abordagens alternativas vindas do conexionismo, da vida artificial e da robótica de Brooks.

Mas poderão estes últimos de fato estabelecer uma conexão com o mundo, uma conexão que os contextualize e não apenas os situe fisicamente no ambiente? Creio que esta pergunta só poderá ser respondida se pudermos um dia desenvolver uma arquitetura que estabeleça uma relação a-conceitual (de re) destes sistemas com seu ambiente, uma possibilidade que ainda permanece distante.

A terceira parte da antologia traz um debate sobre um dos temas mais polêmicos da filosofia da mente contemporânea: a noção de causação mental. Apesar da inegável qualidade filosófica das análises empreendidas por Wilson Mendonça e Charbel Niño El Hani é preciso notar que a polêmica em torno deste tema parece repousar sobre um equivoco monumental: o paradoxo de Kim.

O paradoxo de Kim consiste em tomar como ponto de partida o pressuposto dualista cartesiano para depois mostrar que, para admitir a existência da causalidade mental tal pressuposto deve ser jogado fora, pois ele necessariamente leva-nos a uma reductio ad absurdum, ou seja, força-nos a desembocar necessariamente no fisicalismo.

Embarcamos numa canoa furada desde o início. E para tirar a água de dentro dela, faz-se um furo maior, ao lado do primeiro.

Afirmar a existência da causação mental implica negar cidadania ontológica para o mental. Ou seja, a única maneira de admitir a existência da causação mental é negando seu componente mental.

Por outro lado, negá-la significa simplesmente dar meia volta e sucumbir ao dualismo, de onde se extrai a óbvia conclusão pela impossibilidade de que algo imaterial seja causalmente eficaz. Em outras palavras, a Kim podemos atribuir a proeza de usar o conceito de causação mental para tornar tanto o materialismo como o dualismo posições insustentáveis. O filósofo da mente assume a tristeza de Groucho Marx, de “nunca admitir entrar num clube que o aceitasse como sócio.”

 O problema de Kim parece repousar em duas premissas altamente questionáveis. A primeira é tomar como ponto de partida — como dado bruto — a existência do mental para depois tentar recuperar sua possível eficácia causal. A segunda diz respeito à noção de “fechamento causal do mundo físico” — a própria noção de mundo físico que ele utiliza é altamente questionável como muito bem aponta Paula Mousinho Martins no capítulo “Reducionismo psicofísico, realismo e ideologia” que encerra esta seção. Kim afirma que não há problemas em afirmar que o mental causa o mental (será que não? Quem nos disse que a relação entre estados mentais é causal?) e sim em afirmar que o mental pode afetar o físico.

Ao tomar o mental como causa, o partidário da causação mental parece ter esquecido que este poderia ser concebido como efeito.

Aliás, sobre este tópico, parece que todas as confusões parecem se basear numa permuta equivocada entre o que deve ser considerado causa e o que deve ser considerado efeito. A psicossomática foi a disciplina que mais colaborou nos últimos anos, para que concedêssemos uma cidadania ontológica à idéia de “causa mental.” A medicina tradicional estaria confundindo causa e mecanismo. Para o médico tradicional, um aumento da freqüência cardíaca seria causado pela produção de adrenalina. Para o psicossomatista, este na realidade não passa de um mecanismo que leva à taquicardia. A verdadeira causa estaria na esfera psíquica: numa desilusão, numa dificuldade, num drama existencial. O psicossomatista também não aceita que a causa de um infarto é a obstrução de um ramo das artérias coronárias, pois novamente estaríamos excluindo o psiquismo como origem do evento orgânico. Tampouco a descoberta de certas substâncias no tecido cerebral do esquizofrênico não aclara em nada as causas da psicose. Ela simplesmente aprofunda o conhecimento dos mecanismos (que não são as causas) presentes nesse tipo de situação.

Ora, a distinção entre causa e mecanismo nos parece correta.

Mas dela não se pode inferir ipso facto que a causa desses transtornos tenha de ser necessariamente mental nem tampouco que tenhamos de admitir a existência da causação mental como um dado, como um ponto de partida para a filosofia da mente. Há uma alternativa que parece ter sido descartada: batimentos cardíacos irregulares ou infarto não precisam ser vistos necessariamente como manifestações físicas de um problema emocional. A tristeza, o medo, etc é que podem ser manifestações mentais de um problema físico.

Neste caso, estaria errado tomar o mental como causa, pois ele é, na verdade, efeito. O mesmo valeria para as emoções: experimentamos emoções em nosso corpo e não em nossa mente. William James já dizia “estou triste porque choro” e não “choro porque estou triste.” Neste sentido, é talvez preciso reconsiderar o que vem sendo escrito sobre causação mental tomando como ponto de partida o mental — o mental como um dado bruto.

Ora, haveria ainda que explicar como as terapias (as talking cures) podem modificar o físico. Mas aqui não há motivos para postular a existência de mistérios a não ser que queiramos saltar, deliberadamente, a dimensão comportamental destas terapias, sejam elas de qualquer tipo de orientação. A relação entre terapeuta e paciente é uma relação mediada por comportamentos verbais. São estes que afetam mutuamente os cérebros daqueles envolvidos na relação terapêutica. Sabemos, hoje em dia, que comportamentos verbais freqüentemente funcionam como estímulos que especificam contingências produzidas pelo comportamento verbal da própria pessoa.

E que, ao fazê-lo, o sujeito, através de sua própria narração, modifica seu comportamento e seu psiquismo. Para superar o impasse da causação mental neste caso, é preciso que admitamos, na nossa ontologia, entidades tais como comportamento e linguagem. Entidades cuja cidadania ontológica extrapola o conjunto de partículas elementares da física, como é o mundo causal de Kim. Entidades que podem — e provavelmente são — compostas por estas partículas, mas que certamente não se reduzem a elas. Ou seja, como diz lucidamente Paula Mousinho Martins, para que nos livremos dos problemas colocados por Kim é preciso nos livrar dessa idéia ingênua de natureza — aquilo que ela chama de “materialismo ideológico” e que, no inicio do século passado Husserl batizara, na sua Filosofia como Ciência Rigorosa, de materialismo popular. O materialismo popular é regido por uma ontologia do tipo Dr. Johnson (o saudoso gramático do século XVIII citado por Quine), onde se prova a existência do mundo exterior e de sua natureza dando chutes em pedras.

Mas antes de entrar na quarta parte da antologia, é preciso comentar o artigo de André Leclerc, também sobre causação mental.

A causação mental é utilizada por ele como uma máquina de guerra contra o eliminativismo. Ela reformula o problema mente-cérebro na sua direção inversa, perguntando como o mental pode afetar o físico. Novamente encontramos a pergunta que todo psicoterapeuta de bairro deve fazer, partindo como sempre, do vestígio indelével de nossa herança cartesiana que coloca a existência do mental (Penso logo existo) como o início de toda ciência. Atirando-se contra moinhos de vento, Leclerc alinha dois argumentos em favor da existência da causação mental, que oscilam entre o truísmo e o equívoco que impregna a batalha contra o materialismo eliminativo — esse tigre de papel que repugna os filósofos.

Não há dúvida de que Leclerc está correto ao assinalar que o materialismo eliminativo, ao tentar se livrar de toda folk psychology e com ela a idéia comum de crença, impede-nos de acreditar numa teoria neurofisiológica do mental. O materialista eliminativo estaria jogando fora o bebê junto com a água do banho. Leclerc também está certo, quando, relembrando Frege, assinala que se reduzirmos toda ciência ao cérebro — e com esta todas as suas proposições — chegaríamos, no limite, à situação de ter de atribuir valores de verdade a diferentes regiões cerebrais (!). Este seria um paradoxo semântico inaceitável.

Mas — justiça seja feita — não é isso que o materialismo eliminativo almeja: ele não pretende eliminar o mental reduzindo-o ao cerebral — ao cérebro como uma coisa ou um algo — e sim apostar na tradução (futura) do vocabulário psicológico para o vocabulário de uma teoria neurofisiológica, operando uma redução ontológica de termos que não resistiriam à sua navalha de Ockham. Se isto era o que Leclerc queria dizer, não é essa, contudo, a interpretação imediata que emerge da leitura de seu texto.

Mais do que isto, Leclerc parece disparar suas críticas contra o alvo errado. O que o eliminativista contemporâneo pós-década do cérebro precisa perguntar é pelo estatuto da neurociência como conhecimento. Poderá esta dissolver as questões filosóficas da mesma maneira que Ryle achava que a terapia da linguagem (herdada de Wittgenstein) poderia fazê-lo? Quais questões filosóficas sobrariam após desvendarmos os mecanismos cerebrais da percepção, das emoções e da angústia? Qual a distância entre a Angst do Dasein e o alívio proporcionado por um comprimido de Lexotan? Estas parecem ser as questões que realmente interessam na discussão de versões contemporâneas da redução psiconeural como as propostas, por exemplo, por J. Bickle. Que a neurociência sucumbe a argumentos do tipo terceiro homem não parece ser novidade. Haldane, em 1932 já tinha notado isto ao afirmar que se sustentamos a proposição de que todos os nossos estados mentais são produtos do metabolismo do cérebro, isto inclui a própria sentença que acabamos de afirmar, o que tornaria este argumento auto-contraditório: ele seria apenas o resultado passageiro de um estado pelo qual o cérebro acaba de passar. Eis aí o mito de Oroborus. Aliás, qual o discurso — aí incluído o discurso filosófico — que não sucumbe ao Oroborus, ou o mito da cobra que devora sua própria cauda? Finalmente, a quarta parte da coletânea de Rabossi é dedicada ao tema dos qualia e conta com dois artigos, um de Maria Clara Dias e outro de Carolina Scotto. Maria Clara Dias aponta, lucidamente, para alternativas à qualiofilia que já se arrasta há décadas, valendo-se para isto de um argumento desenvolvido por Michael Tye. A partir do argumento de Tye, Maria Clara Dias mostra que não há sentido em conceber qualia como entidades inefáveis. Não há sensação sem cognição, ou seja, não há sensação isolada da cognição, uma vez que sempre podemos falar de nossas sensações. Assim sendo, os qualia só fazem sentido quando entram em proposições, ou seja quando de conteúdo não-conceitual passam a ser conceitualizados na medida em que compõem proposições.

Ora, não estaremos aqui desmontando o mito do acesso privilegiado — o mito cartesiano cuja extensão seria a ontologia dos inescrutáveis qualia? E serão eles, afinal, tão importantes assim? A leitura do artigo de Maria Clara Dias não deixa de me trazer à lembrança as críticas que Dennett tem disparado contra os qualiófilos nos últimos anos, especialmente a última, “What RoboMary Knows.” Creio, contudo, que o mais importante em todas essas críticas e debates — que não terminaram e não parece que vão terminar tão cedo — é notar que talvez não devamos atribuir tanta importância a esse problema como se tem feito nas últimas décadas.

Quero finalizar esta resenha com uma palavra de entusiasmo para o leitor. Embora a filosofia da mente contemporânea esteja marcada por muitas indústrias filosóficas para as quais não se possa vislumbrar muitas saídas ou progressos a curto prazo, vale a pena inteirar-se delas. E este livro nos dá uma boa oportunidade para isto. Aliás, o que na filosofia não se transforma em indústria ou máquina especulativa?

Referências

Bickle, J. 2003. Philosophy and neuroscience. The Netherlands: Kluwer Academic.

Debrun, M. 1996. “A idéia de auto-organização.” In M. Debrun, M. E. Q. Gonzales, O. Pessoa (orgs.), Auto-organização: estudos interdisciplinares. Campinas: CLE-UNICAMP, vol. 18.

Dennett, D. 2005. “What RoboMary Knows.” Sweet Dreams. Cambridge, Mass.: The MIT Press.

Elliasmith, C. 1996. “The third contender: a critical examination of the dynamicist theory of cognition.” Philosophical Psychology 9 (4): 441–63.

Haldane, J. B. S. 1932. The inequality of man. Londres: Chato & Windus.

Husserl, E. 1961. La filosofia como ciencia estricta. Buenos Aires: Nova (Texto original publicado em 1913).

Teixeira, J. de F. 2005. Filosofia da Mente: neurociência, Cognição e comportamento. São Carlos: Editora Claraluz.

Nota

1 Para uma crítica mais pormenorizada da utilização da TSD na explicação psicológica veja-se Teixeira, J. de F. (2005), pp. 89–100.

João de Fernandes Teixeira – Departamento de Filosofia, UFSCar jteixe@terra.com.br

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