DOSSE, François. La marche des idées – histoire des intellectuels, histoire intellectuelle. Paris: La Découverte, 2003. 339p. Resenha de: RODRIGUES, Helenice. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.48, 2004.
Em momentos de crise e de impasse, nos quais a nebulosidade do pensamento e das ações impossibilita uma inteligibilidade política, a “intelligentsia” francesa tende a se auto-atribuir uma missão. Do “caso Dreyfus” à guerra da Bósnia, passando por Maio de 68 e pela guerra da Argélia, a “intelligence” esteve presente em todas as frentes de combate do século XX, em nome do dever de uma “consciência crítica”. No entanto, as mutações históricas e intelectuais dessas últimas décadas modificaram radicalmente a tradicional imagem do intelectual: a representação do indignado, militante e crítico, cedeu lugar à figura e à cultura do especialista e do chamado “intelectual midiático”.
Ao lado de uma história intelectual e dos intelectuais, François Dosse, nesse recente livro, retraça, em filigrana, uma história da história dos intelectuais, mostrando, através de uma vasta literatura, as imbricações que subtendem sua relação com o espaço público, a história e os esquemas de pensamento. Revisitando as diversas publicações francesas e estrangeiras sobre esses dois domínios, o autor apresenta um importante trabalho de síntese. Embora estruturadas separadamente, a história dos intelectuais e a história intelectual, em razão mesmo de suas indeterminações e indistinções epistemológicas, se justapõem ao longo desse livro, revelando assim o caráter interativo e transversal desses dois objetos.
Paralelamente a uma história dos intelectuais, desenvolvida na França a partir da década de 1980, emerge uma história intelectual tendo por ambição elucidar as obras intelectuais na sua historicidade. Esse “obscuro objeto” que constitui a história intelectual surge, segundo o autor, do intercruzamento de uma história das idéias, de uma história das mentalidades e de uma história cultural. Com efeito, a sua gênese encontra-se na própria tradição epistemológica francesa: a história do pensamento cientifico (Koyré, Bachelard, Foucault), assim como no projeto arqueológico desse último: o pólo crítico e hermenêutico.
Menos preocupado com definições e com problemáticas, François Dosse opta por mostrar as diversas tendências dessa história intelectual: contextualismo (Skinner), semântica histórica (Kosseleck), hermenêutica (Ricoeur), assinalando a necessidade, para a sua prática, de ultrapassar as análises internalistas e externalistas. Para tal, a hermenêutica, como método, parece constituir uma das suas condições de possibilidade: “Cabe à história intelectual como à história dos intelectuais a interrogação da vida das idéias através de um vai-e-vem constante entre o passado e as questões que formulamos, ao passado, a partir do presente”.
Ora, tributária do contexto histórico nacional, a história dos intelectuais, na versão francesa, apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de uma abordagem política, tendo por principais referenciais os engajamentos, as gerações e os lugares institucionais. Do ponto de vista ético, o intelectual é, antes de mais nada, portador de valor, de engajamento e de missão.
A pluralidade de acepções semânticas sobre o objeto “o intelectual” conduzem François Dosse a explorar os trabalhos de autores clássicos que, de maneira diversa, pensaram a relação do intelectual com o poder. De Benda a Said, passando por Sartre e Gramsci, esse autor apresenta um vasto panorama de análises onde se combinam, igualmente, comentários críticos sobre as obras e sobre os autores. Esse “obscuro objeto”, no contexto intelectual francês, remete, fatalmente, ao modelo do “caso Dreyfus” e às representações, positivas ou negativas, de um engajamento político. Complementando essa abordagem histórica dos intelectuais, os estudos sociológicos inspirados nos trabalhos de Pierre Bourdieu contribuem, sobretudo, para a elucidação das redes de poder e dos mecanismos de produção de idéias, fortemente dependentes dos lugares de enunciação (estudos comparativos entre “campos” intelectuais diversos). Mas, se essa perspectiva sociológica, como pretende François Dosse, revela seus limites, a história dos intelectuais, fundada na versão da história política, por sua vez, não permite a apreensão da própria produção intelectual.
Ora, a atividade intelectual encontra-se presente, segundo o autor, nas modalidades diversas de leitura e de apropriações de textos. A propósito, como ele bem salienta, a teoria de recepção de Hans Jauss é, por exemplo, fundamental em um trabalho de apreensão da produção intelectual. Nesse sentido, a nova história cultural francesa (em forma da história do livro, da edição, da recepção, dos símbolos e da prática cultural, por exemplo), pela própria complexidade da sua abordagem, possibilita explorar as diversas maneiras de pensar e representar o mundo. Desse modo, “a atividade intelectual na história cultural” (um dos capitulos, a nosso ver, mais pertinentes) permite uma melhor compreensão das múltiplas interações entre essas duas fronteiras: cultura e intelecto. Através de diferentes obras, intermediárias entre a história cultural e a intelectual, François Dosse apresenta exemplos de sua prática: os lugares de elaboração e de produção cultural (Carl Schorske em Viena, fim de século), os momentos de apropriação e de recepção de autores estrangeiros (Elias, Weber, Freud, Hegel), e a complexidade mesmo do ato de leitura (Menocchio de Carlo Ginzburg).
Outra variante da história intelectual, a história dos conceitos, em suas diferentes versões (a escola de Cambridge, a semântica histórica com Reinhart Kosseleck e a história conceitual da política, com Pierre Rosanvallon), situando-se nas margens de uma história da epistemologia, da filosofia política e da disciplina história, é tributária de contextos intelectuais diversos. François Dosse percorre esses diferentes campos de investigação, mostrando como a partir de um corpus de textos já tidos por esgotados (os textos de Maquiavel, por exemplo), “a posição enunciativa e a natureza dos destinatários dos mesmos sugere profundos deslocamentos de sentido”. Significativa da guinada hermenêutica, essa abordagem questiona o pensar e o agir nas sociedades passadas e presentes.
Se, como mostra o autor, a escola de Cambridge é passível de críticas em razão de um certo historicismo, o desenvolvimento mesmo da história conceitual no mundo anglo-saxão, graças às contribuições da “linguistic turn”, contribuiu, substancialmente, para uma abordagem mais filosófica da história política. A história intelectual, por exemplo, ilustrada através dos trabalhos de Rosanvallon sobre a democracia, apresenta-se sob a forma de uma “história conceitual do político”. François Dosse destaca a importância particular da “begriffsgeschichte”, pelo viés dos trabalhos de Reinhart Kosseleck e da sua difusão nos países ocidentais. Aliás, a influência dessa corrente intelectual se manifesta, atualmente, através da formação de uma rede internacional de pesquisadores.
Domínio incerto e hesitante, a história intelectual, como conclui o autor, pressionada entre uma lógica diacrônica da história das idéias e sincrônica das cartografias e dos cortes socioculturais, reveste uma “indeterminação epistemológica”. Para os leitores que conhecem os trabalhos anteriores desse autor em história intelectual, essa conclusão, no entanto, parece insuficiente, uma vez que ela exclui toda tentativa de questionamento metodológico e epistemológico. Apesar de se tratar de um livro de referência em história intelectual, a “marche des idées”, talvez pela sua própria proposta, não responde às expectativas daqueles que a praticam e que buscam, através dela, novas respostas.
Helenice Rodrigues da Silva – Résidence Les Récollets, 150-154, rue du Faubourg Saint Martin, 75010 Paris, Tel: 00 – 33 153262149.
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