La Grande Strategia dell´Impero Bizantino | Edward Luttwak
Edward Luttwak é um importante analista internacional, talvez um dos mais importantes pensadores vivos sobre estratégia e teoria estratégica. Nascido na Romênia em 1942, vive nos Estados Unidos há muitos anos, onde tem assessorado o Pentágono e o governo americano em questões estratégicas e internacionais (sempre numa perspectiva extremamente conservadora) e produzido um cem número de livros e análises sobre a questão da guerra, a geopolítica contemporânea e a posição dos Estados Unidos no mundo.
Luttwak tem manifestado sempre um imenso interesse e curiosidade pela história antiga e um dos seus livros, publicado originalmente em 1976 e que aborda a grande estratégia do Império Romano (LUTTWAK, 1995), se tornou um clássico, recebendo elogios e críticas contínuas. Tais críticas vieram de várias fontes, mas os historiadores especializados em história antiga ficaram especialmente incomodados quando ele procurou aproximar a estratégia romana da dos Estados Unidos pós-guerra do Vietnã, o que seria um anacronismo imperdoável [1].
Mais de três décadas depois, em 2009, Luttwak voltou ao tema e publicou um novo estudo de estratégia, dessa vez sobre a parte oriental do Império Romano, ou seja, o Império Romano do Oriente, ou Bizantino, que existiu por quase mil anos, entre 395 e 1453 DC. É um trabalho abrangente, com centenas de páginas discutindo e refletindo sobre vários aspectos da história dessa sociedade e desse Estado.
O livro é extremamente detalhista; nele se discute, inicialmente, a formação e a consolidação do pensamento estratégico de Bizâncio, entre os reinados de Justiniano e Heráclio (séculos VI e VII). Depois, menciona todos os outros mecanismos que o Império utilizava para projetar seu poder, como a diplomacia, os casamentos dinásticos, o suborno, o prestígio, os vínculos religiosos etc.
Também analisa com cuidado o sistema militar bizantino (as muralhas de Constantinopla, o “fogo grego”, a organização militar das suas tropas), as heranças militares romanas, suas batalhas e campanhas principais, vitórias e derrotas. Posto isso, Luttwak passa a análises detalhadas dos principais inimigos do Império, como os árabes, os turcos, os búlgaros etc. Por fim, discute e apresenta em detalhes os principais manuais de estratégia bizantinos, como o Strategikon de Maurício e o Taktica, de Leão VI. Não espanta que ele tenha precisado de quase 600 páginas para dar conta de tudo o que ele tinha a escrever.
O livro é muito interessante justamente por essa densidade informativa. Ao lê-lo, temos acesso a informações que poucos não especialistas em história bizantina poderiam conseguir. Os detalhes sobre o elaborado sistema de coleta de impostos imperial e seus mecanismos de recrutamento e treinamento militar são esclarecedores e mitos como que o Império só sobreviveu pelo uso do quase místico “fogo grego” são demolidos por erudição e análise lógica.
Tais informações são úteis especialmente quando as utilizamos para entendermos melhor outras épocas ou mesmo o momento atual. Quando ele menciona, por exemplo, a grande inovação militar que foi o arco composto e seu impacto no campo de batalha, somos informados que a grande vantagem das primeiras armas de fogo com relação a eles não era o alcance ou o poder de penetração, mas simplesmente que um recruta podia ser instruído no uso delas em muito menos tempo do que no caso do arco. Além disso, as armas de fogo não tinham restrições climáticas (ao contrário dos arcos compostos, que não funcionavam bem em ambientes úmidos) e isso explica a sua difusão e importância na criação dos Impérios coloniais português ou espanhol e na derrota dos povos das estepes pelos russos, já em pleno século XVI.
A tese básica, contudo, é relativamente simples. Ele afirma que, já que o Império Romano tinha uma força militar esmagadora, a segurança podia ser alcançada centralmente com esse instrumento, seja pela via da deterrência, seja pelo uso direto, na defesa ou no ataque. Já Bizâncio não tinha tal hegemonia militar e tinha fronteiras expostas, com inimigos para todos os lados. Dada essa situação, a estratégia bizantina, ainda que com variações de contexto e conjunturais, só podia ser diferente e combinava o uso da força militar com instrumentos de persuasão e diplomáticos.
Os romanos, assim, usavam a diplomacia e outros meios para evitar o uso da força, mas, quando a utilizavam, eram implacáveis, enviando suas massas de infantaria legionária para vencer e destruir o inimigo. Já os bizantinos não viam vantagem em destruir seus inimigos (pois outros surgiriam e os inimigos de hoje podiam ser os aliados de amanhã) e nem tinham forças militares fortes o suficiente para isso. Assim, preferiam acordos, negociação e, mesmo em batalha, derrotar o inimigo em manobras, mas sem eliminá-lo, o que só traria perdas e problemas. Os bizantinos teriam sido, pois, mestres na estratégia na sua definição mais simples, ou seja, ter clareza dos objetivos e dos recursos disponíveis e utilizar tais recursos da melhor maneira possível para atingi-los.
Na defesa dessa tese, o autor é bem mais cuidadoso para evitar anacronismos nesse livro. Ao falar do sistema de espionagem e de inteligência bizantino, ele ressalta como ele, apesar de ser eficiente e crucial para a sobrevivência imperial, não era comparável aos atuais, nem em escala nem em capacidade de processamento de dados. Do mesmo modo, também ressalta como não havia uma “estratégia nacional” bizantina, expressa em documentos específicos e escolas, nos moldes atuais. No entanto, haveria uma “cultura estratégica”, formatada em inúmeros manuais e na tradição, as quais permitiriam que ela fosse passada de geração em geração. Uma diferença substancial, é até para evitar a repetição das críticas anteriores frente ao livro anterior.
Fica a dúvida, contudo, se Luttwak atingiu plenamente esse objetivo e alguns problemas já evidentes no livro anterior acabam por se manifestar. Por exemplo, a sua tendência a ver na estratégia fator quase único para explicar a sobrevivência ou queda de uma dada sociedade e Estado. Opções de estratégicas podem ser cruciais, sem dúvida, mas esquecer as denominadas “forças profundas” (para usar os termos clássicos de Pierre Renouvin) que levam a alterações significativas na posição internacional de um Estado, é problemático. Não espanta, assim, que dados mais amplos com relação à demografia, força econômica e militar relativa frente aos vizinhos e outros, apesar de presentes, recebam bem menos importância do que a discussão relacionada à estratégia.
Do mesmo modo, quando recordamos o mundo medieval em que o Império dos Basileus existiu e que o recurso a casamentos dinásticos, suborno, inteligência e outros meios indiretos de poder era algo comum, a excepcionalidade bizantina perde força. Afinal, francos, árabes ou búlgaros, todos usavam esses métodos e os bizantinos, no máximo, teriam aperfeiçoado o seu uso.
Sendo assim, possivelmente o uso refinado da estratégia foi importante na sobrevivência do mesmo, mas era apenas mais um dos fatores que fez o seu Império durar mil anos, e não o único. Judith Herrin (2012), grande bizantinista, argumentou, a propósito, que os insights de Luttwak sobre a estratégia bizantina eram corretos, mas que as causas da longevidade de Constantinopla teriam a ver mais com a combinação de educação grega, energia pagã, sistema administrativo e legal romano e fé cristã do que com uma particular forma de conceber a estratégia.
Por fim, apesar do foco do livro ser o Império Bizantino, parecemos ver a sombra dos Estados Unidos por todas as suas páginas. Nos momentos em que o autor menciona, por exemplo, capítulos do Strategikon de Mauricio, que ressaltam como a única forma de vencer um inimigo que se recusa a combater é compreendendo-o e, se possível, conquistando-se sem o uso da força, parecemos ver a nova estratégia de guerra dos EUA no Afeganistão, a partir de 2010, que transferiu seu centro de gravidade estratégico do combate ao Talibã para a conquista do apoio civil afegão.
As mudanças no contexto internacional também parecem estar presentes em todas as suas páginas. No livro de 1976, a análise de Luttwak refletia os debates geopolíticos nos EUA pós-Guerra do Vietnã e a sua própria configuração da estratégia romana em perigos de “baixa, alta e média intensidade” lembra claramente a Doutrina estratégica que Ronald Reagan colocou em voga poucos anos depois. Ao examinarmos alguns dos pressupostos dessa doutrina, pela qual os perigos de alta intensidade (a União Soviética) deveriam ser enfrentados diretamente pelas tropas americanas e os de média e baixa por seus aliados e protegidos, parece evidente a conexão com a análise que Luttwak faz do Império Romano.
Trinta e três anos depois, a URSS se foi e os Estados Unidos se veem na situação de maior potência mundial, mas perdendo poder relativo frente a outros poderes (a China e os outros BRICs), especialmente no campo econômico e cultural. Mais ainda, Washington se encontra na situação de contar com esmagadora supremacia militar, mas num mundo em que apenas essa supremacia – de resto, sendo lentamente erodida – não se traduz em segurança e hegemonia perfeitas frente aos outros Estados.
O que encanta Luttwak, na história bizantina, é a sua capacidade em, combinando diplomacia, métodos indiretos de poder e força militar, preservar seu Estado e seu modo de vida por quase mil anos, frente a uma série quase interminável de inimigos. Não seria esse o desafio dos Estados Unidos hoje? E não seria essa a resposta sugerida, ou seja, utilizar menos a força militar e mais a diplomacia e o soft power para conduzir o mundo na direção desejada por Washington?
Os contatos entre o olhar ao passado e as perspectivas do presente estão, pois, cristalinos e Luttwak (2009) deixou isso ainda mais claro em conferências e artigos posteriores, quando afirmou que era em Constantinopla e não em Roma que os Estados Unidos deveriam buscar inspiração para sobreviverem e continuarem dominantes por mais um século ou milênio.
Em última instância, isso poderia não ser algo sério, pois os historiadores estão continuamente pensando a História pelos problemas do seu tempo e usando ferramentas analíticas e conceitos que talvez não fizessem sentido para os agentes do período. No entanto, no livro de Luttwak, apesar dos seus imensos cuidados e de avanços metodológicos claros com relação ao livro de 1976, a presença do momento presente está tão forte que pode confundir os não-especialistas no período.
Em resumo, usar Roma ou Bizâncio para pensar os Estados Unidos ou qualquer outro país de hoje não é algo errado. Pelo contrário, é mais do que válido utilizar conceitos e termos modernos para entender o passado e analisar esse para ter elementos para pensar o presente. No entanto, ao colocar Césares ou Basileus nas vestes de presidentes americanos, talvez tenhamos um problema. De qualquer modo, um livro válido e que vale a pena ler e estudar em detalhes, sendo uma pena que, como o anterior, não esteja traduzido para o português.
Nota
1. Para algumas dessas críticas, ver algumas pequenas resenhas que publiquei (BERTONHA, 2000; 2001; 2010).
Referências
BERTONHA, João Fábio. Em nome de Roma (resenha da obra de Adrian Goldsworthy). História: Questões e debates. Curitiba, n. 52, p. 255-259, 2010.
BERTONHA, João Fábio. Frontiers of the Roman Empire – a social and economic study (resenha da obra de C. R. Whittaker).. Boletim do Centro do Pensamento Antigo da Unicamp. Campinas, v. 5, n. 10, p. 281-286, 2001.
BERTONHA, João Fábio. La Grande Strategia dell’Impero Romano – L’apparato militare come forza di dissuassione (resenha da obra de Edward Luttwak). Boletim do Centro do Pensamento Antigo da Unicamp. Campinas, v. 5, n. 8/9, p. 243-248, 2000.
HERRIN, Judith. Back to the eleventh century? Disponível em: http://www.opendemocracy.net/judith-herrin/back-to-eleventh-century . Acessado: 30 jan. 2012.
LUTTWAK, Edward. La Grande Strategia dell’Impero Romano – L’apparato militare come forza di dissuassione. Milano: Rizzoli, 1995.
LUTTWAK, Edward. Take Me Back to Constantinople – How Byzantium, not Rome, can help preserve Pax Americana. Foreign Policy, Nov./dez. 2009. Disponível em: http://www.foreignpolicy.com/articles/2009/10/19/take_me_ back_to_constantinople?page=full. Acessado: 30 jan. 2012
Resenhista
João Fábio Bertonha – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UEM, Maringá/PR, Brasil. Bolsista de produtividade do CNPq. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com
Referências desta Resenha
LUTTWAK, Edward. La Grande Strategia dell´Impero Bizantino. Milano: Mondadori, 2010. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Diálogos. Maringá, v.16, n.1, 339-345, jan./abr. 2012. Acessar publicação original [DR]