Este livro é uma introdução geral à cultura medieval, particularmente à sua literatura, destinada aos que, estudantes ou leitores comuns, precisam conhecer os traços fundamentais dessa cultura. O livro está dividido em oito capítulos, cada um deles concluindo com exercícios de análise e interpretação prática: “Manos a obra” prevendo portanto o seu uso em sala de aula ou em grupos de estudo. A Professora Lídia Raquel Miranda, editora e inspiradora da obra, redigiu cinco capítulos, pelos quais começaremos a apresentação. O primeiro tem como título (tradução nossa):” O medievo em metáforas e apreciações: a cultura popular e a cultura acadêmica na encruzilhada”, e discute como formamos mentalmente nossas ideias acerca do passado. As recordações do passado pessoal e familiar são distintas das elaborações acadêmicas acerca da história das culturas e civilizações, mas existe certa contaminação das imagens comuns, por vezes perpassadas de ideologias, mesmo em sala de aula, por preconceitos e noções deturpadas. É o que explica que a palavra Idade Média seja rodeada de conotações estranhas, mesmo entre pessoas instruídas: teria sido uma sociedade violenta, pobre, sem lei, ou então exótica, vivendo na natureza… A historiadora desenvolve a seguir sua argumentação sobre qual seria o modo mais correto de abordar a Idade Média, já que ela se constitui como a matriz do presente. Aqui radica a questão que conclui o capítulo: porque estudar a Idade Média? Mais do que respostas prontas Lídia Raquel levanta reflexões, indica bibliografia variada, e propõe dois exercícios: um de análise de um texto de autoria de um medievalista da Universidade de Córdova (Argentina), e outro de interpretação de um texto de opereta medieval. A mesma historiadora aborda, no capítulo 5º, a tradição do amor cortês na cultura ocidental. A construção e consolidação da cristandade europeia deu-se através de sucessivas realizações e conflitos, e deu origem a uma cultura diferenciada regionalmente, mas que tinha na região central da Europa seu principal foco de criação de dispersão. Foi aí, na França, que se originou um dos complexos culturais mais significativos e quase onipresentes: o amor cortês. Dele a autora descreve e analisa as variantes e características. Destaque especial merece a obra de André Capelão – Os três livros do amor – extensamente descrito e comentado. No 6º capítulo Lídia Raquel trata da retórica medieval introduzindo o tema sob uma ampla teoria semiótica, e ao mesmo tempo atenta à importância prática e às variedades do discurso medieval; para ter em conta esses diversos aspectos a autora aborda questões da retórica clássica grega e romana, da exegese cristã e da pregação dos primeiros séculos, e da posterior arte de pregar, bem como os modelos do discurso escolástico. A retórica é característica da vida pública e na Grécia nasceu com as práticas jurídicas e políticas, passando depois às educacionais; pouco a pouco nela se distinguiram as partes da comunicação, suas operações e formas. Santo Agostinho recomendava que para o orador cristão é mais importante conhecer as Escrituras (exegese) do que usar os artifícios da oratória, princípio que orientou os sermões medievais; mas o capítulo lembra também os poetas laicos, particularmente os jograis, e sua influência na fala religiosa; menos poético, mais formal e estruturado, foi o discurso acadêmico, que conhecemos como escolástica. O capítulo conclui ressaltando a importância da retórica atual, e propondo vários exercícios baseados em texto literários medievais, e sobre o marketing político (coach). No capítulo 7º Lídia Raquel estuda o surgimento dos idiomas românicos, a partir do latim, sua vulgarização e evolução por influência de outros povos que circularam no continente e ilhas. Dois tipos de idiomas se formaram, em toda a Europa romanizada: os regionais, muito variados e mesclados, e o latim erudito, que permitia a comunicação literária entre as novas nações. A autora detém-se na descrição de como se formou a língua castelhana, estudando não só os processos filológicos, mas também os políticos, que conduziram ao predomínio do castelhano como idioma espanhol, tanto na Península como na América Hispânica. Algumas propostas de exercícios, e a bibliografia auxiliam o estudante a aprofundar as questões, nomeadamente a origem dos vocábulos e as ambiguidades fonéticas. O capítulo final (8º), ainda de autoria da organizadora da obra tem como título “Um estudante perdido no museu: à procura das cores e formas do Medioevo” (tradução nossa); propõe-se ser um guia para que o iniciante se oriente no meio dos significados estéticos medievais: as cores e as formas das imagens. Resume em poucos traços o tipo de arte das várias épocas e lugares – primeiros séculos, bizantina, arte das nações germânicas, arte nos mosteiros, românico, gótico. Feita esta apresentação o capítulo discute os valores humanos transmitidos pelas imagens, pelos espaços divididos e organizados. Assim, no que se refere ao simbolismo da cidade, encontra-se a sobreposição ou justaposição de quatro modelos: Jerusalém, Babilônia, Roma e Bizâncio; conforme as intenções e propósitos o mapa medieval, ou a ilustração, trazem um ou mais desses modelos, substituindo deste modo longas explicações. Outras metáforas e símbolos do espaço são explicadas: o castelo, o labirinto, o mar, a floresta, o jardim, a água… O imaginário medieval passa ainda pelas representações de Deus, de Jesus Cristo, e dos santos, e também do homem e do corpo humano em suas atividades. Lugar importante era dado aos animais (os bestiários) e também aos animais mitológicos. Nas propostas de atividades práticas do capítulo destaca-se a intenção de relacionar entre si as diversas artes medievais e a literatura.
Passamos aos três capítulos elaborados por autores convidados. Jorge Luís Ferrari faz um percurso histórico pela economia e pela sociedade medievais (cap. 2º) dos séculos XI ao XV. Em breves pinceladas Ferrari expõe a composição social do Império Romano, seus conflitos de classe, e as causas da decadência, onde o cristianismo se insere. Entretanto os germanos invadiram o mundo romano, e de toda essa mescla surge o sistema político, social e econômico do feudalismo. Este é descrito em sua estrutura e fundamentos ideológicos e em suas fases e modificações, inclusive pela introdução de técnicas agrícolas. Mecanismos e rotas de mercado explicam o apogeu dos séculos finais da Idade Média, mas a crise do século XIV –peste negra e Guerra dos Cem anos – decretaram o declínio da civilização europeia, enquanto o feudalismo estremecia, e o poder real se fortalecia com o apoio da burguesia. Helga Maria Lell, no capítulo (o 3º) sobre as instituições jurídicas e filosóficas da Idade Média, começa por expor o nascimento das instituições do direito romano para em seguida mostrar como elas se alteraram, ou completaram, com o advento do cristianismo. Essa evolução conduz ao estudo da filosofia, e ao seu uso a serviço da religião cristã. A autora dedica então algumas páginas a expor as doutrinas dos dois principais mestres da filosofia cristã – Agostinho e Tomás – feito o que volta à Hispânia Romana, para se deter na relação entre direito, filosofia e religião durante o domínio visigótico, e apenas lembrando a fase seguinte da Península: as peculiaridades da cultura árabe/muçulmana. É também de forma breve que a autora descreve os traços do direito canônico, da organização universitária, e da consolidação do direito hispânico, sobretudo em Castela. Uma linha de tempo, ou cronologia simplificada, permite abranger em síntese rápida os principais traços destacados no capítulo. O exercício final é bastante extenso e completo, baseado na Carta Puebla, ou ordenação de repovoamento, confrontando-a com um texto de Tomás de Aquino. O capítulo 4º é de autoria de David Rodríguez Chaves; nele se descreve e comenta a literatura irlandesa e inglesa medievais, destacando no título duas características: o sincretismo pagão/cristão, e o uso da alegoria e da metáfora. Da literatura irlandesa e sua continuidade bretã são expostos temas mais conhecidos: as viagens para Ocidente e o ciclo arturiano, mas também outro menos citado: o Sonho da Cruz. As viagens dos monges irlandeses, os imrama, eram um derivado da tradição celta da aventura espiritual incerta em direção ao desconhecido; elas são símbolos da busca da perfeição repassados de fantasias, de encontros com animais fabulosos, homens estranhos, gigantes, visões e miragens, fontes milagrosas, seres meio homens meio animais. O autor não diz, mas sugere, ou subentende, que as Viagens de Gulliver podem ser descendentes desta literatura, até porque seu autor, Jonathan Swift (1667-1745) era irlandês. A narrativa de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde utiliza outro topo de simbolismo para passar do relato pagão para o cristão: os símbolos referentes aos ciclos da natureza. Neles sobressai a passagem da natureza morta para o mundo dos vivos por ação do Sol (Gawain) e da Deusa Mãe. O caso do Sonho da Cruz é inverso: o evento cristão é visto pela cosmovisão pagã celto/germânica, em que a cruz é a árvore Yggdrasil, e Cristo é um chefe guerreiro. No conjunto da obra este capítulo é importante porque é o que mais clara e consistentemente relaciona o apogeu do cristianismo com seus antecedentes da Antiguidade Tardia e com as religiões proto-históricas. Essa interpretação, realizada em poucas páginas, foi possível não só pela habilidade e conhecimentos do autor mas também pelas características da cultura celta, que manteve até aos dias atuais uma capacidade de inserção no cristianismo que lhe deu durabilidade e pervivência. Os exercícios propostos em Mãos à obra dão sequência a essa ideia de interpenetração cultural, ao usar verbos como relacionar, mesclar, amalgamar, influir apontando não só para comparações de formas externas mas de temáticas, que evoluíram sem perder seu significado original.
O livro cumpre os seus objetivos de forma muito adequada e satisfatória: mostra a grande variedade de expressões da cultura medieval, contrapondo-se à ideia comum de uma Idade Média uniforme e monótona; destaca a vitalidade das realizações medievais, e sua criatividade; sugere e desperta curiosidade para futuros estudos de quem lê o livro. Talvez por necessidade pedagógica de se ater ao que é mais usualmente discutido, e ao que é mais diretamente influente na realidade sul-americana os autores optaram por não desenvolver algumas dessas variáveis, sobretudo as que dizem respeito à primeira fase da Idade Média – ou Alta Idade Média – e as que tratam da cultura medieval na Europa do Norte e do Leste. No entanto os diversos capítulos, e o conjunto da obra, oferecem suficientes indícios para que o estudante procure colmatar essas lacunas.
João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
MIRANDA, Lídia Raquel (Editora). La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales. Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, 2015. Resenha de: LUPI, João. “La Edad Media en capítulos” por João Lupi. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 136- 139, 2018. Acessar publicação original [DR]
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