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La diffusion numérique des données en SHS: guide des bonnes pratiques éthiques et juridiques | Véronique Ginoves, Isabelle Gras

Em um artigo intitulado “Comment s’élabore la mémoire collective sur le web”, a socióloga francesa Valérie Beaudouin, ao estudar sites, blogs e fóruns on-line sobre a Primeira Guerra mundial, constata que a memória coletiva é escrita na internet pelos mais diversos atores e se apoia majoritariamente em documentos (textos, fotos, filmes) provenientes, em sua grande maioria, de fundos de arquivos públicos (Beaudouin, 2019). O estudo demonstra que a digitalização de documentos de arquivo e sua difusão na internet é, hoje, um fato que revela, igualmente, a diversificação dos usos e usuários dos arquivos. Ainda que esses documentos sejam descontextualizados, como conclui o estudo de Leyoudeck (2015).

Essas considerações iniciais têm como objetivo contextualizar, na sua dimensão arquivística, o livro A difusão digital de dados em ciências humanas e sociais, que analisa e busca soluções práticas para o problema da produção e difusão de dados na internet. Desde o início, o grupo de pesquisa do qual as organizadoras participam destaca seu engajamento numa reflexão coletiva sobre os usos do digital em ciências humanas e sociais (evolução do livro, salvaguarda e acesso ao patrimônio cultural, arquivos de pesquisa), com a finalidade de promover as pesquisas colaborativas por meio do compartilhamento de dados, instrumentos e métodos. Um enunciado claramente em defesa da ciência aberta.

Dito isso, o livro é o resultado dos estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Ética e Direito em Ciências Humanas e Sociais, fundado em 2011, do qual fazem parte as duas organizadoras e cujo projeto inicial se desenvolveu em um blog.1 O objetivo principal da coletânea é apresentar respostas rápidas aos problemas concretos aos quais os pesquisadores são confrontados cotidianamente. Apesar de conter a palavra “guia” no título, o livro é muito mais que isso, como iremos expor adiante. Com vários autores de diversas áreas do conhecimento assinando os capítulos, num total de 340 páginas, pode-se constatar a preocupação com a busca de um equilíbrio entre discussão teórica e aspectos práticos. A questão ética e jurídica, evocada no título, contou com a colaboração de sete juristas.

Embora a obra seja tributária de questionamentos dos pesquisadores em ciências sociais e humanas sobre alguns aspectos de suas atividades, inclusive com os resultados das pesquisas e sua difusão para a sociedade, ela não é indiferente aos arquivistas, que também trabalham com esse material e têm a responsabilidade de recolher, tratar, garantir seu acesso e sua difusão, ao mesmo tempo em que devem proteger dados pessoais. Numa oficina intitulada “Questions juridiques et éthiques: diffusion des données de la recherche” organizada, em 2015, pelo grupo de pesquisa das organizadoras da obra em questão, a justificativa do evento vai ao encontro das preocupações atuais dos arquivistas:

Produzir, usar e editar fontes digitais agora faz parte do trabalho diário do pesquisador. Inseparável do desenvolvimento da web, esse formato digital facilitou muito a disseminação de recursos documentários, iconográficos, de áudio e audiovisuais no mundo da pesquisa e, além disso, para cidadãos cada vez mais curiosos e interessados nos documentos produzidos por cientistas. Nas instituições dedicadas à pesquisa, os responsáveis pelos projetos nem sempre sabem como responder às questões de respeito aos direitos autorais e das pessoas entrevistadas ou representadas nos documentos quando estes são publicados on-line. Os pesquisadores, que agora publicam regularmente em formato eletrônico, enfrentam uma série de questões legais e éticas que devem ser respondidas. (Casanova, 2015, tradução nossa)

De fato, há muito tempo, os arquivistas ultrapassaram a visão na qual a profissão se ancorava, isto é, a de “guardiões” dos arquivos, o que significava, concretamente, a ênfase na proteção, em primeiro lugar, dos produtores dos arquivos, os usuários sendo secundários nesse processo. A essa “missão” se substituiu, pelo menos desde o final da década de 1970, em muitos países, o princípio de que uma das principais finalidades do trabalho do arquivista é disponibilizar e valorizar os arquivos, sendo os usuários os principais sujeitos dessa ação. Entretanto, a transformação radical da produção de arquivos em suportes os mais variados, o advento da internet, a produção exponencial de documentos em formato digital (nativos digitais ou digitalizados a posteriori) e, principalmente, a luta pelo direito à informação e a exigência de transparência dos atos governamentais suscitaram novas questões aos arquivistas. A principal delas, talvez, diga respeito à ética na divulgação, por exemplo, de dados pessoais (MacNeil, 2019).2

Nesse sentido, um dos aspectos interessantes do livro, no qual os arquivistas podem se inspirar e usufruir das reflexões, são as fichas práticas que o grupo de pesquisa produziu com a colaboração da jurista Anne-Laure Stérin,3 abordando uma série de situações envolvendo a divulgação de dados ou de publicações científicas que dependem de uma abordagem jurídica ou da ética científica. Além disso, outros capítulos do livro trazem estudos de caso que, de certa forma, apresentam respostas passíveis de serem aplicadas em situações similares, sinalizando para o desenvolvimento de boas práticas nesse campo, conforme destacado no título.

Outro aspecto a ser ressaltado – o que normalmente não vemos ser defendido – é que a mesma jurista, Anne-Laure Stérin, tem uma posição bastante pragmática sobre o assunto. Para ela, quando se trata de tomar uma decisão, na ausência de um jurista deve-se considerar a jurisprudência, a hierarquia das normas ou mesmo a interpretação das leis, quando estas não são suficientemente claras. Evidentemente, nesses casos, os profissionais devem saber a quais leis e normas o material sobre o qual ele trabalha está circunscrito. Mais uma vez, os arquivistas ou quaisquer outros profissionais responsáveis pelo tratamento e difusão de arquivos digitais podem usufruir dessas orientações.

A segunda parte do livro merece um olhar especial. Dividida em três grandes temas, aborda desde a particularidade dos arquivos orais, a noção de “dados” sensíveis,4 até as questões próprias ao mundo digital. Assim, problemas como a difusão de dados on-line, adesão ao open

archives, contratos de edição e dados de pessoas falecidas são objeto de reflexão.5 Ademais, trazendo ainda uma vez a temática do livro para o campo da arquivologia no que diz respeito à questão ética, a historiadora Florence Descamps destaca que os arquivos orais suscitam problemas de ordem jurídica, tais como: o estatuto jurídico dos fundos de arquivos orais conservados em instituições científicas é público? Quais são os direitos autorais que lhes são inerentes? Quais os impactos de sua difusão sobre a vida privada dos indivíduos?6 De todo modo, quando se trata de fontes que exprimem certos aspectos da vida privada das pessoas, nem sempre os dispositivos do direito são suficientes para nos ajudar a decidir a respeito da difusão de dados pessoais e das modalidades de difusão. É preciso mobilizar, então, aspectos éticos. Tendo em vista o campo onde o livro se inscreve – as pesquisas em ciências sociais e humanas – o recurso à deontologia profissional dos cientistas é um parâmetro a ser seguido. Lembrando que esse é também o caso para os arquivistas.

Uma contribuição muito interessante nessa obra é a de Mélanie Dulong de Rosnay, pesquisadora do Institut des Sciences de la Communication do Conseil National de la Recherche Scientifique (CNRS) e doutora em direito. Seus eixos de pesquisa são: a governança dos bens comuns; acesso ao conhecimento; transformações da regulamentação jurídica e técnica; acesso aberto aos dados científicos e políticas comparadas para a digitalização das obras de domínio público. Dulong de Rosnay defende que as instituições que custodiam, na sua expressão, “fundos patrimoniais”, deveriam adotar prioritariamente políticas abertas de difusão visando a existência de um domínio público digital, em vez de criar novas barreiras. Nesse sentido, ela faz eco a outros pesquisadores franceses que estudam a questão do big data, sua relação com open data e a proteção de dados pessoais, os quais concluem que os parâmetros estritos do direito, tal como os conhecemos, não dão mais conta da complexidade do fenômeno.7 Ela faz igualmente uma defesa de uma certa autonomia dos profissionais quanto às questões éticas e jurídicas, no sentido de que eles devem discutir suas experiências entre si, as soluções encontradas, que nem sempre vêm dos juristas.

A título de conclusão, podemos afirmar que muitas questões levantadas na obra podem ser controversas, mas o princípio que a permeia é o de marcar uma posição contra a privatização do conhecimento – especialmente o digital – mas, ao mesmo tempo, adotar uma postura de precaução no que se refere à proteção de dados pessoais. A exemplo do que preconiza a lei brasileira de acesso à informação (LAI), tem-se o acesso como princípio, e o sigilo como exceção. Parece-nos que, no essencial, o livro defende a tese de que a restrição do acesso deve ser pautada na ética e no direito (este último renovado e atualizado para a complexidade do mundo digital). É com essa compreensão do problema que os arquivistas também precisam se preparar para enfrentar a tensão entre garantir o direito de acesso à informação e, ao mesmo tempo, ter argumentos claros para explicar e justificar aos usuários – pesquisadores ou simples cidadãos – sua restrição. No mundo digital convivem, hoje, o big data e o open data como realidades incontornáveis, mas que exigem reflexão. Devemos compreender esse “novo” mundo e buscar as melhores respostas para as demandas e os problemas que dele advêm.


Notas

1 Ver: https://ethiquedroit.hypotheses.org.

2 Nesse sentido, ver o livro da arquivista Heather MacNeil (2019).

3 Autora, dentre outros títulos, de Guide pratique du droit d’auteur: utiliser en toute légalité textes, photos, filmes, musiques, internet, proteger ses creations. Paris: Maxima, 2011.

4 Segundo a Comission National Informatique et Libertés (CNIL), criada em 1978, órgão responsável, na França, pela proteção de dados pessoais e por acompanhar a inovação e preservar as liberdades individuais, dados sensíveis formam uma categoria particular de dados pessoais. Ver: https://www.cnil.fr/fr/definition/donnee-sensible. Acesso em: 20 jan. 2020.

5 Recomendamos, nesse caso, a leitura de Mallet-Poujol (2019).

6 Professora de metodologia de recolhimento e tratamento de fontes orais na École Pratique des Hautes Études em Paris (EPHP), publicou, em 2019, Archiver la mémoire: del’histoire orale au patrimoine immaterial. Paris: EHSS, 2019.

7 Ver, por exemplo, a coletânea organizada por Daniele Bourcier e Primavera De Filippi (2016).


Referências

BEAUDOUIN, Valérie. Comment s’élabore la mémoire collective sur le web? Une analyse qualitative des pratiques d’écriture en ligne de la mémoire de la Grande Guerre. Réseaux, Paris, v. 2-3, n. 214-125, p. 141-169, 2019. Disponível em: www.cairn.info/publications-de-Valérie-Beaudouin–15643.htm. Acesso em: 10 jan. 2020.

BOURCIER, Daniele; DE FILIPPI, Primavera (org.). Open data & Big data: nouveaux défis pour la vie privée. Paris: Éditions Mare&- Martin, 2016.

CASANOVA, Nathalie. Atelier du numérique: questions juridiques et éthiques. Diffusion des données de la recherche par Anne-Laure Stérin, juriste et Isabelle Gras (SCD AMU). PôleImage-Son, Paris, 26 mar. 2015. Disponível em: https://imageson.hypotheses.org/1987. Acesso em: 30 nov. 2019.

LEYOUDECK, Lénaike. Reconstruire le sens associé à l’archive: mobilisations sémiotique et documentaire du Linked Open Data. In: BROUDOUX, E.; CHARTRON, G. (org.). Big data – Open data: quelles valeurs? Quels enjeux? Actes du colloque “Document numérique et société”, Rabat, 2015. Paris: De Boeck Supérieur, 2015. Disponível em: https: //www.cairn.info/big-data-open-data-quelles-valeurs–9782807300316.htm. Acesso em: 10 jan. 2020.

MACNEIL, Heather. Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos. Tradução de Monica Tenaglia e Shirley Carvalhedo Franco. Belo Horizonte: UFMG, 2019.

MALLET-POUJOL, Nathalie. Internet e o direito ao esquecimento digital. RICI, Brasília, v. 12, n. 1, p. 145-170, 2019.


Resenhista

Georgete Medleg Rodrigues – Doutora em História Contemporânea pela Université de Paris (Paris IV – Sorbonne), com pós-doutorado pela Université Paris Nanterre, França. Professora da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: georgete@unb.br


Referências desta Resenha

GINOVES, Véronique; GRAS, Isabelle (Org.). La diffusion numérique des données en SHS: guide des bonnes pratiques éthiques et juridiques. Aix-en-Provence: Presses de l’Université de Provence, 2018. Resenha de: RODRIGUES, Georgete Medleg. A difusão digital de dados em ciências humanas e sociais: Guia de boas práticas éticas e jurídicas. Acervo. Rio de Janeiro, v. 33, n. 3, p. 221-225, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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