No final dos anos 1980, quando o historiador francês Alain Corbin escreveu sobre o nascimento do desejo da beira-mar, ele demonstrou minuciosamente o quanto um hábito local é culturalmente constituído de significados que são mutantes no tempo histórico. Assim, aquilo que atualmente parece ordinário ànossa relação com as férias, como as viagens à praia, àserra ou aoutro país, advém de uma prática social construída historicamente.
Na América Latina, o tempo livre, seus usos e representações tem sido objeto de estudo no campo da antropologia e da sociologia do trabalho e do lazer. Esses temas tambémvem desvelando novas possibilidades de investigação no campo historiográfico, que tem prestigiado a investigação do objeto por meio de estudos comparativos, ressaltando e clareando o intercâmbio de práticas e saberes relacionados ao tempo livre e a história dos balneários marítimos no Cone Sul.
O livro La conquista de lasvacaciones: breve historia del turismo enla Argentina, de Elisa Pastoriza se inscreve nessa perspectiva. Seu período de investigação divide-se em três tempos: partindo do final do século XIX, com o surgimento de Mar del Plata e a instalação dos primeiros balneários, prossegue com o fenômeno democratizador e a fundação de novos balneários nos anos 1930, e finaliza com apopularização econsolidação das férias e da vilegiatura marítima nas décadas de 1940 e 1950.
Tanto na Europa quanto nos mares do Sul da América Latina, as águas marítimas foram procuradas inicialmente com finalidades terapêuticas. Neste contexto, o hábito de ir ao mar era uma prática aristocrática, que posteriormentefoi incorporado ao gostodasclasses sociais, tornando-se, inclusive, uma conquista trabalhista. Desde os primórdios até sua democratização, Mar del Plata permite uma reflexão sobre a ascensão e o progresso da sociedade argentina, quereivindicava espaços apropriados para integração e sociabilidade.
Ao que concerte este aspecto que permite uma vida atemporal junto aos espaços de descanso, os centros costeiros podem ser analisados por meio dos seus espaços de sociabilidades, como a orla marítima, arambla, o hotel, o cassino e os clubes de divertimento. Esse arquétipo de balneário europeu teve expressão na América Latina, que ao reconhecer a necessidade do ócio social, incorporou ao imaginário social a ida aos banhos de mar, criando espaços apropriados de integração durante a estação estival.
Para tal hábito, a inauguração do Hotel Bristol em 1888, marca um dos primeiros intentos de modelar a cidade balneária a exemplo dos balneários franceses e ingleses, pois Mar del Plata era o ponto de encontro preferido pela elite portenha. Estas mudanças que se operavam no modo de vida da sociedade Argentina, iam ao encontro da necessidade do ócio e a vida junto à natureza.
Muitos dos balneários surgidos na Argentina nesta primeira fase foram consolidados em terras privadas e seguiram a experiência modelar citadina, com igreja, hotel, serviços, cafeterias e transportes. Este progresso local teve visível impacto no meio ambiente, pois para edificar as cidades necessitou-se conter o movimento das areias por meio do plantio de espécies “adequadas” como pinus, alamos e tamareiras, que acabaram por homogeneizar a paisagem. Ao que concerne esta questão, a autora não contempla em sua análise algumas problemáticas relacionadas ao impacto ambiental, como a drenagem de dunas, a urbanização, a erosão costeira e a poluição, que tanto a vilegiatura marítima quantoo turismo de massa desencadearam no litoral.
As estações balneares podem ser analisadas como um negócio de investimento, que tiveramcomo personagensempresários belgas, franceses e uruguaios, cujo intento foi criar estações marítimas semelhantes aquelas de seus países. A transformação de Mar del Plata em balneário vincula-se ao projeto de modernidade periférica, que por meio de investimentos público e privado, urbanizaram um grande balneário argentino. Além disso, o auspício de Mar del Plata também está relacionado à expansão ferroviária, que apesar de ter sidoum meio de transporte para famílias abastadas, facilitava o acesso de curistas e turistas à beira-mar.
Neste sentido, diferentemente do Brasil, o desenvolvimento de muitas cidades balneárias ocorreram devido à rede ferroviária, no entanto, apesar da ferrovia ser mencionada ao longo do livro, a investigação não prestigia aspectos para uma história das sensibilidades, que poderia abranger o prazer de viajar, a percepção e assimilação da paisagem mutante, a relação com os demais passageiros, ou até mesmo, o antes e o depois da viagem.
Para a maioria da população argentina, osonho de passar férias junto ao mar foi possível a partir da década de1930, quando houve a democratização dos balneários devido à implantação de uma variedade de políticas públicas. Neste período, as estações balneares experimentaram transformações significativas na paisagem social e na estrutura urbana, sendo o governo responsável pelos investimentos em estradas, parques, pavimentação, e ainiciativa privada a responsávelno cuidado com o embelezamento das vias, construção da rambla e dos hotéis. Esta democratização social dos balneários implicou em uma tensão entre a velha e a nova elite, que incorporaram o veraneio com diferentes usos sociais, diferentes daqueles dos primórdios de uma vilegiatura aristocrática.
Com a democratização dos balneários, foram criadas ao longo de uma década novas alternativas para atrair turistas a Mar del Plata e acabar com a ideia de que o veraneio era algo caro e acessível somente a quem possuía recursos financeiros. Para analisar essa questão, a autora investigou fontes diversas, como propagandas de rádio, filmes, revistas, jornais, guias, folhetos e cartões-postais. Sua analise também destaca outros meios de incentivo ao turismo, como a diminuição do valor dos bilhetes de trem, introdução da categoria de segunda classe, criação de pacotes em hotéis, colônias de férias e calendário com programação especial durante o verão.
Na medida em que o veraneio tornou-se turismo possível a todas as esferas sociais, novos lugares de descanso passaram a ser procurados pelos argentinos. Esses locais tinham uma conotação mais alternativa e estavam conectados com a natureza, sendo uma forma de contraponto ao perfil urbano e massivo que Mar del Plata havia adquirido. Assim, a paisagem da serra de Córdoba, as cataratas de Iguaçu e as novas praias solitárias, como Pinamar e Villa Gesell, “marcaram o futuro dos novos âmbitos do turismo na Argentina”.
Elisa Pastoriza sublinha que esses novos balneários se distinguiram dos anteriores devido à nova concepção do traçado urbano e pela valorização do meio natural, que até então não contemplavaespaços para passeios e praças. Como exemplo deste novo modelo de balneário está Pinamar, que surgiu em 1943, como resultado da parceria entre Jorge Bunge e Valeria Guerrero Cárdenas. Estes, por sua vez, intentaram a harmonia entre a natureza e a urbanização moderna, constituindo um espaço de ócio, que se denominava como um “lugar que se recomenda de amigo a amigo”.
O impacto e a significação social das férias se consolidaram na memória coletivadurante os anos do governo peronista, sobretudo para a classe trabalhadora. Em sua presidência, Perón colocou em prática um programa de políticas públicas que, juntamente com as iniciativas geradas desde a sociedade civil, buscava responderas demandas sociaispelo tempo livre em âmbitonacional. É diante deste marco que se apresenta a conquista das férias pagas, que já era privilégio de alguns nos anos 1930, mas que se generalizou nos primeiros anos do governo peronista. Este fator também aumentouo consumo a outros entretenimentos populares, como salas de cinema, espetáculos esportivos e, consequentemente, o crescimento do turismo.
Tal programa de ócio e turismo peronista estava ligado a um discurso político, de caráter nacional, no qual o tempo livre sugere um fomento ao amor à terra em que o indivíduo nasceu, elegeu para viver, mas que pouco conhecia. A ampliação deste “projeto de turismo social” deu-se através de uma aliança entre o governo e os sindicatos, que foram responsáveis por orientar o povo com o argumento de que “viajar, passear e fazer férias era um meio de enriquecer a cultura e conhecer outros trabalhadores”. Sobre as problemáticas e questões relacionadas as férias trabalhistas, a autora sinaliza que esta conquista não deve ser considerada uma mera reinterpretação ou réplica dos costumes da elite, carecendo um melhor cuidado por parte dos historiadores na interpretação dos fatos.
Assim, de alpargatas à beira-mar, os argentinos constituíram uma história da vilegiatura marítima em seu país, da qual a passagem da conquista do veraneio para o princípio do turismo de massa é o fio condutor apresentado por Elisa Pastoriza. A conquista das férias implicou uma nova paisagem, que corresponde a mudanças físicas no território por meio de uma série de equipamentos, como hotéis, ramblas, casinos, estradas, parques e outros, mas também transformações sociais, políticas, culturais e rituais que refletem na prática do veraneio. Este estudo permite repensar as relações entre os países da América Latina, possibilitando novas investigações que fortalecem a identidade eas histórias individuais de cada paíspor meio de um hábito comum que se repete todos os verões à beira mar.
Joana Carolina Schossler – Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas.
PASTORIZA, Elisa. La conquista de las vacaciones: breve historia del turismo en la Argentina. Buenos Aires: Edhasa, 2011. Resenha de: SCHOSSLER, Joana Carolina. Urbana. Campinas, v.4, n.2, p.184-187, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
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