“O Capital” segue sendo uma das grandes obras da Modernidade, porém, tão referenciada quanto pouco lida e pouco estudada. A magnitude e a complexidade de seu conteúdo certamente contribuem para isso: trata-se de vários tomos, alcançando, a depender da edição, até 700 páginas. O que faz da obra um clássico é o fato de, apesar de mais de 150 anos da sua primeira “aparição” e das evidentes mudanças que nos separam do século XIX, expressa um pensamento incontornável, do qual partem os que insistem em decifrar o mundo contemporâneo. Partindo da hipótese de que as diferentes expressões do capitalismo requeriam uma análise profunda, rigorosa e científica – como pretendeu seu autor–, Marx buscou, com esse empreendimento intelectual de notório fôlego, explicar as leis e dinâmicas próprias do âmago do capitalismo. Longe de ser uma obra acadêmica, o trabalho destinava-se a contribuir com o movimento socialista do qual Marx era um militante, a partir da ideia de que não seria possível vencer o verdadeiro inimigo dos trabalhadores (e da humanidade) sem que estes conhecessem profundamente os mecanismos essenciais de seu funcionamento. Como esse trabalho chegou às mãos de seus leitores e leitoras, como foi interpretado, quem o publicou, quais os formatos das primeiras edições, como circulou entre os meios socialistas e entre operários e operárias? As edições acessíveis, hoje, no mercado editorial, correspondem aos originais escritos a punho por Marx? Qual a contribuição de Engels nesse processo? Como e quando foram vertidos os diferentes livros para as línguas dos países da periferia do capitalismo?
Essas são algumas das questões que encontram respostas consubstanciadas no trabalho do historiador argentino Horacio Tarcus. Organizado em cinco capítulos, o livro trata especialmente das edições em espanhol, em particular as que ocorreram na Espanha e na Argentina. Uma das mais conhecidas dos leitores brasileiros é a que foi editada por Signos, na Argentina em 1971, com apresentação de José Aricó. Diz o autor: “es imposible separar la difusión española de la latino-americana”, ou seja, “antes que estamos en frente a una historia española o latino-americana, estamos ante un caso de historia transatlántica (TARCUS, 2018, p.39, grifo nosso). Apesar de Marx ter escrito o livro na Inglaterra, a primeira versão em inglês somente ocorreu em 1887. A primeira tradução de O Capital foi para o russo, em 1872, com 3.000 exemplares, projeto liderado pela juventude populista. German Lopatin, físico e matemático, conversou com Marx, diretamente, e garantiu uma publicação de qualidade. Dessa tradução participou Bakunin, que já havia traduzido para o russo o Manifesto Comunista. A segunda tradução foi a francesa, feita por outro editor libertário (Joseph Roy), c0m supervisão de Marx, que ajudou a simplificar o texto. Foi editada entre 1872 e 1875, teve 10.000 exemplares e prólogo de Marx:
Aplaudo la idea de publicar por entregas periódicas la traducción de Das Kapital. En esa forma la obra será más acesible a la clase obrera, consideración que para mi prevalece sobre cualquier otra. (TARCUS, 2018, p. 31)
A publicação de uma obra literária ou científica em partes era uma prática bastante comum até meados do século XX, seja em fascículos específicos e por encomendas, ou através de trechos em revistas e jornais, muitas vezes antecipando a edição da obra completa. A preocupação com as versões populares se mantém ao longo dos anos, desde a edição popular de Gabriel Deville, no século XIX, ou a de Wenceslau Roces, na década de 1930, na Espanha. Foi assim que, rapidamente, O Capital ficou conhecido como “a bíblia do proletariado”, expressão usada originalmente por Jean-Phillipe Backer, durante congresso da Primeira Internacional realizado em Bruxelas, em 1868.
Na trajetória de publicação de El capital encontram-se as chaves de vários desentendimentos conceituais que, até hoje, alimentam os debates no campo marxista. Tarcus analisa conceitos-, entre os quais mais valor e mais valia, modo de produção e/ou sistema de produção, cujas interpretações diversas repousam em diferentes traduções, gerando dissensos. Apresenta ainda a questão da participação de “coautores”, cuja presença na obra influenciou leituras diferentes dos escritos originais. Isso inclui desde “a interferência autorizada” de Engels até a versão preparada por Kautsky, que foi modificada pelo regime stalinista, em 1950. Tarcus assinala que as diferenças presentes nas versões e traduções têm sido alvo de reparação pela equipe do projeto MEGA, levado a cabo pelo Internationalen Marx-Engels Stitftung desde 1990, na tentativa de redimensionar o trabalho realizado anteriormente, em bases menos comprometidas com o stalinismo, a recuperação da complexa trajetória da obra escrita de Marx e de Engels.1
O título do livro alude não apenas à referência histórica, anteriormente citada, mas expressa ironicamente a crítica a perspectivas “ideologizadas”, que sacralizavam os escritos de Marx e pretendiam controlar as diferentes leituras e adequações de sua obra ao contexto contemporâneo. A forma pela qual o próprio Marx realizou seu trabalho expressa o quanto ele era ciente da complexidade de seu trabalho e ao mesmo tempo, sua auto-exigência no sentido de analisar com perfeição o Capital.
Trata-se de un autor-artesano siempre inconforme con los resultados de más de dos décadas de labor, que hace y rehace sucesivos borradores que luego desecha para volver a comenzar una nueva redacción, que pospone una y otra vez la entrega de los originales prometidos a sus editores. (TARCUS, 2018, p. 100)
Sobre o autor é importante destacar que desenvolve há décadas um sólido trabalho sobre a história do pensamento marxista na América Latina, tendo publicado vários livros sobre esse assunto. Além deste consistente trabalho, Tarcus é um dos idealizadores e coordenador do Centro de Documentación e Información sobre la cultura de las Izquierdas, em Buenos Aires, que contém um precioso acervo de materiais e documentos produzidos no âmbito do movimentos socialista na nossa região. Advém deste as ilustrações do livro, nas quais podemos apreciar as diferentes capas de praticamente todas as edições de O Capital referidas ao longo do livro.
Nota
1 MARXHAUSER, Thomas. História Crítica das Obras Completas de Marx e Engels (MEGA). Crítica Marxista 39, 2014, p. 95-104.
Resenhista
Carmen Susana Tornquist – Doutora em Antropologia e Mestre em Sociologia pela UFSC. Professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Sócio Ambiental e do Departamento de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: carmentornquist@hotmail.com
Referências desta Resenha
TARCUS, Horacio. La biblia del proletariado: traductores y edictores de El capital en el mundo hispanohablante. Buenos Aires: Siglo Veinteuno, 2018. Resenha de: TORNQUIST, Carmen Susana. PerCursos. Florianópolis, v. 20, n. 44, p. 310 – 314, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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