Uma ficção que preenche as lacunas que a História oficial recusa-se a contar e, ao mesmo tempo, rompe “a muralha de silêncio” (para usar as palavras do Bernardo Kucinski) que ainda está erguida ao redor deste trecho da História brasileira. O livro K. se esforça por re-contar a História da ditadura militar brasileira a partir da visão dos vencidos.
Na introdução, o escritor nos alerta: é um livro de ficção, embora quase tudo tenha realmente acontecido. Após 40 anos do desaparecimento de A. (é apenas a inicial que aparece no livro), a família conseguiu reconstruir um quebra-cabeça cheio de falhas sobre esta história ainda proibida. Sabe-se que ela foi presa pelo Estado, talvez torturada, morta e, seu corpo, foi desaparecido. O esforço de K. (o livro e o personagem) é recriar o “como”. A ficção que busca dar conta do que o real se nega a contar.
O esforço de contar a história da família, a história de um país, para Pollak1, é o esforço de contar a própria história e construir a própria identidade – de pessoa, de povo, de nação. O narrador recria, inclusive, a figura de Wilson Silva, esposo de A. que também foi desaparecido pelo Estado. Seu sogro, K., personagem central do romance, só saberá deste casamento após o desaparecimento dos dois. É importante destacar que Wilson é um dos poucos personagens do romance que é chamado pelo seu nome completo. Assim como A., ele ganha do narrador uma descrição mais detalhada de sua fisionomia e de seu caráter. Talvez, uma tentativa de provar que eles existiram de verdade, que nasceram, cresceram, casaram, lutaram e foram desaparecidos (p.80), sem nunca encerrar o ciclo, porque, até hoje, não existem corpos, não existem lápides.
A relação com a ficção, entretanto, não deixa de ter suas tensões: a ficção que ajuda a recontar a História, é a mesma que serviu de arma de tortura contra familiares – uma tortura que nunca cessou de acontecer. O narrador relata diversos casos em que o Estado se utilizou de ficções, estruturadas histórias (pp. 69, 71, 141, 147), sobre o paradeiro de A. a fim de torturar, “quebrar a espinha” (p. 74) de K., o velho judeu solitário em busca de sua última ligação com o Brasil – uma filha desaparecida.
Assim como sua filha, K. foi um preso político, mas um sobrevivente. Ao comparar as duas histórias, ele repete sempre que, nas prisões nazistas, havia registros de entrada e saída de presos (vivos ou mortos). Ele, inclusive, foi a julgamento, teve uma acusão formal contra si e pôde se defender. Por isso, para K. é ainda mais impossível entender como a filha foi engolida pelo “sorvedouro de pessoas” que se tornou o Estado brasileiro. Nas entranhas de uma burocracia kafkaniana, não há rastros nem vestígios da materialidade de A., é como se ela não existisse. Todas as pistas são falsas e a burocracia não pode jamais ser vencida.
Esta é só uma das tensões com e feridas do judaismo expostas no romance. K. nunca foi um judeu religioso, mas conhece profundamente sua cultura. Entretanto, é a partir do desaparecimento da filha que ele parece tomar consciência do conservadorismo subjacente na cultura/religião judaica no Brasil. Não são os rabinos que o ajudam em sua busca, mas bispos e um cardeal da igreja católica. Por outro lado, um grupo judaico norte-americano o auxilia em sua busca e ele fala de um rabino que fez os ritos de morte do jornalista judeu oficialmente suicidado. Ou seja, existe a tensão, e a resistência perpassava toda a sociedade brasileira, mesmo dentro das religiões.
Mesmo dentro das Universidades. Um dos poucos documentos oficiais que aparecem no texto para compor a ficção é a ata de uma reunião do departamento de Química da Universidade de São Paulo, onde A. lecionava quando foi desaparecida. A reunião confirmou a desligamento por abandono de emprego da professora que, àquela data, provavelmente já estava morta. A Universidade que foi foco de resistência, também cedeu à pressão do Estado repressor.
Chama a atenção o fato de este ser o único capítulo em que todos os personagens são nominados, ganham voz, personalidade. Também um capítulo em que o narrador aparece ele também, claramente, como parte da história. Talvez, para tentar fazer justiça, já que o país se nega a fazer Justiça. Por uma necessidade premente de recontar essa parte da História e expor uma ferida ainda aberta.
Todo o texto, aliás, é perpassado por essa tensão entre a necessidade de contar, de fazer memória da vida de A., de criar aquilo que ainda permanece encoberto por um véu; e, por outro lado, o castigo, a tortura que nunca cessa ao recontar, reviver a história da barbárie.
Ao retomar essa história, 40 anos depois, o narrador reencontra muitos fantasmas, que estão presentes nas fotografias de A., nas fotografias de um Wilson que permanecerá desconhecido para a família dela, nas cartas que não cessam de chegar endereçadas a ela. Retomando o conceito de Vecchi2: fantasmas que são todos esses vestígios e rastros da existência de A..
O romance, então, se torna uma lápide possível para um corpo para sempre tragado pelo sorvedouro de gentes. Uma tentativa, dentre tantas outras, de encerrar o ciclo de vida de A. e de toda a família, de, enfim, viver de fato o luto como período de cura. A quebra do silêncio da família – do país – é uma tentativa de ultrapassar a melancolia e a culpa por ter sobrevivido (p. 161), de devolver essa culpa ao Estado.
A história – pessoal e nacional – da ditadura é perpassada por imensas culpas. O romance inteiro é eivado dessas culpas, cheio de possibilidades que não se concretizaram. A culpa que K. carregou por não ter prestado mais atenção à filha, a culpa de um narrador ausente da história familiar, a culpa de A. e Wilson por não terem abandonado a resistência. Romper o silêncio ao redor de tantas culpas é, talvez, uma forma de exorcizá-las. Desconstruir a muralha de silêncio, que esconde não só segredos, mas uma ignorância alienada e confortável que envolve parte da nação – e da qual K. se sentiu tão culpado.
Entretanto, K., escritor e poeta, não conseguiu ele próprio romper a muralha de silêncio. Embora tenha tentado relatar ele mesmo os seus sentimentos diante da barbárie, não pôde encontrar palavras suficientes. Ele se pergunta se seria uma limitação do íidiche (p. 133), língua em que escreve, mas acaba por admitir que há limitação em qualquer língua diante da barbárie. O íidiche aparece, então, como mais um fantasma, como signo de sua culpa por se dedicar mais a uma língua morta do que à filha.
Notas
1 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, nº 3, 1989.
2 VECCHI, Roberto. Das relíquias às ruínas, fantasmas imperiais nas criptas literárias da Guerra Colonial. In: RIBEIRO, Margarida Calafate e FERREIRA, Ana Paula. Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo. Porto: Campo das Letras, 2003..
Resenhista
Gabriela Amorim – Mestranda em Letras Universidade Federal de Sergipe..
Referências desta Resenha
KUCINSKI, Bernardo. K. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Resenha de: AMORIM, Gabriela. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.5, n. 10, p.119-122, abr./out. 2012. Acessar publicação original [DR].
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.