Ouvimos falar de Justa Freire pela primeira vez no seminário Autobiografías y voces escolares, dirigido pelos professores María del Mar del Pozo Andrés e Antonio Castillo Gómez, na Universidad de Alcalá de Henares. Inicialmente, ela foi citada como um exemplo de professora que foi depurada e presa pela ditadura franquista, mas que conservou muito bem os documentos escritos sobre a sua trajetória social. Em outro momento, soubemos que María del Mar terminava uma biografia sobre esta professora, que teve uma atuação considerada de vanguarda nos anos 20 e 30 do século 20 e cujos fragmentos eram comentados em aula com o entusiasmo da pesquisadora encantada pelo seu objeto de pesquisa.
Em junho de 2013 publicou-se a esperada biografia de Justa Freire, uma obra com mais de trezentas páginas e composta de vinte e cinco pequenos capítulos. A leitura desse livro se impôs como um desdobramento do seminário, bem como uma forma de revisitar a história da educação espanhola entre a abertura cosmopolita da conjuntura da belle époque e o fechamento autoritário do regime franquista, que pautou a Espanha durante boa parte do século 20.
A apresentação, intitulada Justa Freire, una maestra y su circunstancia, feita pela própria autora da obra, é interessante na medida em que apresenta elementos que justificam o empreendimento realizado para ler a vida de uma professora primária da Espanha no século 20. María del Mar afirma que Justa Freire “fue una persona ordinaria a la que su circunstancia convertió en extraordinaria” (p. 11). A primeira circunstância é de ordem histórica, porque Justa Freire, assim como Lorenzo Luzuriaga, Angel LLorca e Ortega y Gasset, dentre outros, pertenceu à chamada Geração de 1914, um conjunto de pensadores que desejaram europeizar e modernizar a Espanha.
A segunda circunstância que, segundo Maria del Mar, transforma Justa Freine numa biografada extraordinária é a conservação do seu arquivo pessoal, que foi doado por sua família à Fundação Ángel Llorca. O fato de Justa Freire produzir documentos autobiográficos como diários, notas diversas, correspondências e conservá-los na esfera privada é refletido à luz do conceito de arquivar a própria vida, de Philippe Artières, e da premissa de que arquivar a própria vida obedece a um projeto autobiográfico, da historiadora brasileira Ana Chrystina Venâncio Mignot.
Como a história da sociedade espanhola no século 20, a vida de Justa Freire é dilacerada pela Guerra Civil Espanhola. O ano de 1939 é considerado o annus horribiles, que proporcionou um divisor de águas, tanto do ponto de vista social, quanto biográfico. O primeiro capítulo procura compreender a educação familiar e escolar da biografada, iniciando com o seu nascimento, em 4 de agosto de 1896, em Moraleja del Vino-Zamora, um povoado que vivia da indústria viticultora de forma relativamente desenvolvida. O que chama a atenção na infância de Justa Freire é o fato de ela aprender a ler sozinha aos três anos, a partir de livros infantis fornecidos por sua mãe, o que lhe conferiu destaque na comunidade.
De outra parte, frequentou uma escola isolada e teve professores tradicionais, que se pautavam na memorização, o que era comum no mundo rural espanhol daquela época. Com esse percurso educacional, em 1910, já órfã de pai e mãe, ingressou na Escola Normal de Zamora – cidade-polo da sua região de nascimento – e, quatro anos depois, formou-se normalista, sendo distinguida com um prêmio pelo excelente desempenho nos exames finais. Nessa escola foi marcada pela professora de História da Pedagogia, María Cebrián, que lhe apresentou pela primeira vez as ideias de Pestalozzi. Mais tarde, Justa Freire registrou: “Desde que estudié Pestalozzi, que tendría entonces 18 años, pense que nuestros métodos de enseñanza estavan equivocados” (p. 24).
A obra de María del Mar detalha e contextualiza a carreira profissional de Justa Freire, como professora e diretora de escola do ensino primário, nas duas décadas que antecederam a Guerra Civil Espanhola. Depois de passar alguns anos em Madrid, onde fez contato com a elite docente, Justa começou a sua carreira, em 1919, numa escola isolada de Casillas, Ávila. Mas dois anos depois ingressou no Grupo Escolar Cervantes de Madrid, considerado um centro de ensaios pedagógicos, na época dirigido pelo já célebre professor Ángel Lllorca, com quem fez uma amizade sólida e duradoura.
Como professora, integrou um corpo docente muito bem formado e em sintonia com o movimento da Escola Nova, que se tonificou após a Primeira Guerra Mundial. Um excelente sintoma da atmosfera de renovação pedagógica é o fato de que os professores do Grupo Escolar Cervantes faziam viagens, na época de recesso escolar, para conhecer experiências educativas modelares em países europeus. Assim, no mesmo ano em que ingressou no grupo escolar, Justa Freire integrou um grupo de professoras que foram visitar escolas francesas e belgas. Em 1925 fez parte do corpo docente do Grupo Escolar Cervantes que visitou o Instituto Rousseau, em Genebra, e participou do terceiro congresso da Liga Internacional da Educação Nova, que se realizou em Heidelberg. Justa Freire, portanto, estava numa escola de vanguarda, vincada por experiências pedagógicas da Escola Nova.
Com a instituição da Segunda República, em 1931, a escola pública teve uma valorização sem precedentes. Assim, no início dos anos 1930, houve expansão da rede pública de ensino, o que implicou a contratação de novos profissionais para as escolas. Nessa conjuntura, Justa Freire foi aprovada num concurso para gestores de escolas e, no final de 1933, foi nomeada diretora do Grupo Escolar Alfredo Calderón, localizado em Madrid, iniciando suas atividades em janeiro do ano seguinte. Por um lado, Maria del Mar focaliza o encantamento de Justa Freire em organizar uma escola renovadora à luz da experiência acumulada no Grupo Escolar Cervantes, ajudando a construir o nascente regime republicano.
De outra parte, são exploradas resistências dos professores devido à diferentes estilos metodológicos e à questão de gênero. Boa parte dos docentes do Grupo Escolar Alfredo Calderón vinha da escola unitária e não aceitava facilmente os métodos renovadores estimulados pela diretora. Contudo, para María del Mar, as tensões entre parte dos professores e a diretora devia-se ao fato de uma mulher dirigir professores-homens, fato ainda incomum na Espanha da década de 1930. Com o início da Guerra Civil Espanhola, o Grupo Escolar Alfredo Calderón funcionou de forma precária, especialmente como residência infantil para filhos de republicanos, mas logo fechou as portas. Durante esse conflito fratricida, Justa Freire atuou, junto com Ángel Llorca, na coordenação de comunidades familiales de educación, instaladas na Província de Valência.
Como diretora do Grupo Escolar Alfredo Calderón, Justa Freire foi convidada a integrar a Comissión de Reforma Escolar, uma instituição republicana criada no início de 1935 que, segundo María Del Mar, é ainda pouco explorada pela historiografia da educação. Trata-se de um grupo de trabalho formado por técnicos, pedagogos e professores do ensino primário, que tinha como meta o estabelecimento de um currículo inovador para o ensino primário espanhol.
O arquivo de Justa Freire conserva o documento intitulado Plan de estudios para las escuelas primarias, datado de 2 de março de 1935, que foi, provavelmente, um primeiro esboço do currículo nacional, com a prescrição de novos saberes e métodos, com destaque para os centros de interesse de Decroly. Esse acervo pessoal também guarda um projeto de livro, com vinte capítulos, dos quais nove versavam sobre a organização do sistema escolar público, dez focalizavam as metodologias das matérias da escola primária e o último tinha como título Ensayos de nuevos métodos de educación activa: ¿cómo aplicar estos métodos en nuestras escuelas? (p. 115). Não há registro da publicação dessa obra, mas o projeto editorial revela a importância do movimento da Escola Nova para boa parte dos professores na Segunda República e, em especial, para Justa Freire.
Para a Espanha, o ano de 1939 representou o fim da experiência republicana e, para Justa Freire, o início de uma ruptura biográfica que marcaria a sua vida pessoal e profissional. A partir de acusações de ensinar conteúdos comunistas aos alunos e ser continuadora fiel de don Ángel Llorca, entre outras, Justa Freire foi presa no dia 24 de maio daquele ano, mas, nove dias depois, foi colocada em prisão domiciliar. Todavia, voltou a ser condenada à vários anos de prisão, sendo encarcerada em 18 de novembro no Cárcel de Mujeres de Ventas.
A humilhação sofrida por mulheres nos primeiros anos da ditadura franquista, descrita por María del Mar, marcada pela alimentação precária, sadismo e superlotação, é quase tão impactante quanto El guernica, de Pablo Picasso. A despeito disso, Justa Freire abriu pequenas brechas de liberdade na prisão pelo cultivo de amizades e por liderar iniciativas de solidariedade. Nesta direção, tornou-se professora-alfabetizadora de presidiárias adultas e organizadora de coros, fatos eternizados por suas colegas em verso e prosa. Em boa medida devido ao seu comportamento colaborativo, em 31 de maio de 1941, Justa foi colocada em liberdade condicional.
Os últimos sete capítulos do livro colocam o foco na vida da biografada desde a saída da prisão até a sua morte, em 15 de julho de 1965. Seguindo o lema es lo único que yo sé hacer, enseñar, Justa Freire reestruturou sua vida, inicialmente ministrando aulas particulares e, em meados de 1944, ingressou no Colégio Britânico como auxiliar da secretaria. Esse colégio internacional, fundado em Madrid no final de 1940, era uma escola primária vinculada ao British Británico e que, curiosamente, funcionou até o final dos anos 1960 sem inspeção do Ministério da Educação (p. 236).
Da secretaria Justa Freire migrou logo para funções docentes, como substituta de professores faltantes, firmando-se como docente de religião e de aulas especiais de espanhol. De outra parte, Justa lutou para ser reabilitada como professora de escola pública, fato que só ocorreu em 1953, mas com um viés punitivo, porque, segundo determinação do governo franquista, ela não poderia atuar em Madrid e nem ocupar cargo de direção. Assim, no início do ano letivo de 1954, foi nomeada professora primária de uma escola em Manresa, Cataluña, mas, devido ao seu apego a Madrid, pagava uma professora para trabalhar no seu lugar, prática corrente durante o franquismo.
Contudo, por redes de influência acumuladas, sobretudo, no Colégio Britânico, Justa Freire foi nomeada técnica no Centro de Orientación Didáctica del Servicio Nacional Del Magistério, onde dedicou-se a difusão de técnicas de alfabetização e desenvolveu um método constituído por “palabras representativas de valores para el nino” (p. 297), que, segundo a biógrafa, lembra as palavras geradoras do pedagogo brasileiro que tem o mesmo sobrenome da professora espanhola: Paulo Freire. Ademais, Justa envidou esforços para rememorar Ángel Llorca, considerado por ela o maestro de maestros, por meio da publicação de artigos sobre ele em revistas educacionais e da tentativa de reeditar as suas principais obras, esforço que resultou fracassado, em boa medida, devido à repulsa da ditadura franquista ao antigo diretor do Grupo Escolar Cervantes e educador sintonizado com a vanguarda pedagógica mundial.
A representação da vida de Justa Freire realizada por Maria del Mar del Pozo Andrés prima pelo rigor historiográfico e pelo texto fluente e criativo. A biógrafa é professora catedrática de História da Educação e historiadora que domina vários temas da educação espanhola na época de Justa Freire, como a escola graduada e o movimento da Escola Nova. Ela tem reflexões sobre Ángel Llorca, cuja boa parte da vida está entrelaçada com a biografia de sua colega no Grupo Escolar Cervantes e no projeto das comunidades familiales de educación, o que contribuiu para iluminar a vida de Justa Freire. Usou, com maestria, as abundantes e diversificadas fontes históricas produzidas pela sua biografada, como diários profissionais, notas biográficas, correspondências, artigos, fotografias, gravações de falas, bem como produziu fontes novas por meio da coleta de depoimentos de pessoas que conviveram com a sua biografada. No entanto, notamos que as fontes iconográficas, reunidas no miolo do livro, com o título La vida de Justa Freire en imagens, poderiam ter sido ainda mais integradas à narrativa histórica.
A trajetória social de Justa Freire, produzida por María del Mar, coloca o foco, sobretudo, e de modo consistente, na sua carreira profissional. A maioria dos capítulos explora a atividade da biografada como docente e diretora de escola pública, professora do Colégio Britânico, técnica em assuntos educacionais e pedagoga-escrevente. Essa faceta pública da vida de Justa Freire é cuidadosamente enredada na história da Espanha e do mundo ocidental, cumprindo a promessa feita pela autora na apresentação, qual seja: conectar lo individual con lo global.
Na Espanha, a vida de Justa Freire está enquadrada nos diferentes regimes políticos da primeira metade do século 20, bem como integra, constrói ou recusa as políticas educacionais. Em nível global, Justa Freire integrou-se à onda renovadora da pedagogia ocidental, representada, sobretudo, pela Liga Internacional da Educação Nova, por meio da participação em seus congressos, da leitura de suas publicações e por fazer parte da sua seção espanhola. De outra parte, a vida privada da biografada é pouco explorada, com exceção do digressivo capítulo 6, que focaliza as relações pessoais entre Justa Freire e Ángel Llorca e das suas relações de amizade, particularmente com a família Cabello.
Enfim, no ensaio biográfico da historiadora María del Mar, a efervescente e trágica história da Espanha no século 20 é vista por meio da trajetória sócio-profissional de uma professora devotada à sua profissão. Como nos quadros de Joaquín Sorolla, Justa Freire é pintada, na tela do computador de María del Mar, com muita luz, como uma professora extraordinária.
Gladys Mary Ghizoni Teive – Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil. E-mail: gladysteive@gmail.com.
Norberto Dallabrida -Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil.
E-mail: norbertodallabrida@hotmail.com.
ANDRÉS, María del Mar del Pozo. Justa Freire o la pasión de educar: biografia de una maestra atrapada en la historia de España (1896-1965). Barcelona: Octaedro, 2013. Resenha de: TEIVE, Gladys Mary Ghizoni; DALLABRIDA, Norberto. Biografia de uma professora extraordinária. História da Educação. Santa Maria, v.18, no. 43, Mai./Set. 2014. História da Educação (Asphe) Consultar publicação original
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