Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império | CAMPOS Adriana Pereira Campos, Andréa Slemian e Kátia Sausen da Motta

Em 2017 foi publicado o livro juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império escrito por Adriana Pereira Campos, Andréa Slemian e Kátia Sausen da Motta. Trata-se de um trabalho sobre a institucionalização da figura do Juiz de Paz e a estratégia de treinamento lançada por parte das autoridades imperiais brasileiras. Este livro faz parte da Coleção de Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito que é coordenada por Fernando Rister de Sousa Lima. Nesta coleção temos títulos de diversas áreas, mas todas em diálogo com o Direito e, mais precisamente, com a pesquisa jurídica. A perspectiva interdisciplinar da coleção lançou o livro que aqui é resenhado numa concepção de aproximação dos debates entre História e Direito.

Adriana Pereira Campos é historiadora formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a tese intitulada Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Atualmente é professora da UFES. Andréa Slemian, também docente da UFES, é historiadora formada na Universidade de São Paulo (USP) onde também fez o mestrado e doutorado em História. Sua tese foi intitulada Sob o império das leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822 – 1834). Kátia Sausen Motta é historiadora formada na UFES onde também fez o mestrado e doutorado sob orientação de Adriana Pereira Campos. Sua tese foi defendida em 2018 com o título Eleições no Brasil do oitocentos: entre a inclusão e a exclusão da patuleia na cidadela política (1822 – 1881). 1

O livro é resultado de uma pesquisa coletiva chamada Opinio doctorum que foi financiada pela Fundação de Apoio à Inovação e à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). A produção que resenhamos aqui foi construída a partir da reflexão acerca duas obras publicadas na década de 1820 sobre a atuação dos juízes de paz: 1) Commentarios a Lei dos Juizes de Paz de Bernardo Pereira Vasconcellos; 2) Guia do juis de pas do Brasil no desempenho de seus deveres [por um deputado, amigo da instituição] de Diogo Antônio Feijó. Segundo as autoras, esses manuais eram uma tentativa de Vasconcellos e Feijó fornecerem uma orientação aos juízes de paz sobre os procedimentos e ritos judiciais. (CAMPOS; SLEMIAN; MOTTA, 2017, p.09)

A obra está dividida em três capítulos e anexos. Antes dos capítulos temos a Apresentação da biblioteca que é uma breve nota explicando a coleção Biblioteca de Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito. Em seguida temos a Apresentação que foi escrita pelas três autoras na qual elas fazem uma breve síntese da obra e contextualizam a publicação dos manuais escritos por Bernardo Pereira Vasconcellos e Diogo Antônio Feijó.

O Prefácio foi escrito por José Murilo de Carvalho (2017) que ressaltou a escassez de estudos históricos sobre as “instituições judiciárias para cumprir os dispositivos da Constituição de 1824” (CARVALHO, 2017, p.13). Além de uma apresentação das autoras, Carvalho fez uma síntese dos capítulos e contextualizou o recorte da pesquisa. Ele lembrou que a década de 1820 era um momento em que o Brasil estava em processo de transição do absolutismo para o sistema monárquico constitucional e a constituição de 1824 foi caracterizada como liberal (CARVALHO, 2017, p.14). José Murilo de Carvalho traçou uma breve cronologia da aprovação de algumas leis relacionadas com o funcionamento do magistério de paz e explicou que esta inovação tinha inspiração na legislação existente na França, Inglaterra e EUA. A lei do juiz de paz, assim como do júri, Guarda Nacional e o Ato Adicional são reformas liberais dentro do Estado brasileiro (CARVALHO, 2017, p.14-15). Antonio Carlos Wolkmer (1997) também enquadra o magistrado de paz dentro das inovações realizadas pelas forças liberais no nascente Estado brasileiro e explica sobre esse juizado:

De fato, no período que sucede à Independência do país, a junção de forças liberais com grupos de aliados nativos determinou alguns avanços político-jurídicos, como o sistema de Júri popular e o de juízes locais eleitos, aptos para a conciliação prévia de causas cíveis em geral. Ainda que os juízes de paz não fossem juízes pagos e exercessem funções de menor importância, tratava-se de uma alteração importante na organização de um judiciário reconhecidamente exclusivista e centralizador. (WOLKMER, 1997, p.28)

Em 1841, os juízes de paz tiveram seus poderes de polícia e judiciais reduzidos diante de um processo de centralização do Estado brasileiro (CARVALHO, 2017, p.18). O prefácio foi concluído com a indicação da obra como um impulso para os estudos sobre os juizados de paz no Brasil. (CARVALHO, 2017, p. 19)

O primeiro capítulo é intitulado O Farol da boa prática judiciária: dois manuais para instrução dos juízes de paz e foi escrito por Adriana Pereira Campos (2017). A contextualização da formação do magistrado de paz e a formação dos manuais são os elementos centrais do texto de Campos. As obras de Feijó e Vasconcellos, que estavam sendo analisadas e anexadas no livro, foram caracterizadas por Adriana Campos como “manuais” por conta do caráter normativo das práticas judiciárias (CAMPOS, 2017, p. 23). Este capítulo é esclarecedor sobre a formação do magistrado eletivo que, segundo a autora, foi criado para combater o judiciário colonial e começou a ser desestruturado com a constituição de 1824 (CAMPOS, 2017, p. 25-26). Essa proposta já tinha uma similar na constituinte com o projeto do deputado paulista Souza e Mello para a criação da figura dos “juízes dos povos”. O fechamento da constituinte e a outorga da constituição de 1824 não impediu a formação de propostas de inovação judiciária no Brasil. O tema voltou a ser debatido na Assembleia Geral em 1826 com Diogo Feijó e Bernardo Pereira Vasconcellos que deu pressa ao tema e em 1827 já tinha avançado para o senado. Para os Senadores, os juízes de paz seriam os substitutos dos antigos almocatés e contando com um processo eletivo. (CAMPOS, 2017, p. 30-32)

Em 1829, Feijó e Vasconcellos publicaram seus manuais que “destinavam-se a fomentar certo conhecimento acerca da nova instituição e sua prática no Brasil” (CAMPOS; SLEMIAN; MOTTA, 2017, p.39). Os autores dos manuais apresentaram abordagens diferentes, mesmo tendo participado da criação da lei que instituiu os juízes de paz. Esses manuais defendiam a autonomia dos juízes e exerceram uma função de orientação e estabilização da instituição: “Os manuais apresentavam-se, assim, como veículos para estabilização da instituição, especialmente em relação aos procedimentos judiciais”. (CAMPOS; SLEMIAN; MOTTA, 2017, p.44)

No segundo capítulo, intitulado Dois projetos de justiça, uma mesma autoridade: os juízes de paz segundo Diogo Antônio Feijó e Bernardo Pereira Vasconcellos (1829), foi escrito por Andréa Slemian e disseca os dois manuais ao debater como a figura do juiz de paz foi abordado por Diogo Antônio Feijó e Bernardo Pereira Vasconcellos. O texto foi iniciado com uma breve contextualização explicando que a instituição da figura do Juiz de Paz no magistrado brasileiro era justificada pela falta de juízes e pela representação dos direitos dos cidadãos e que o projeto de Nicolau Vergueiro sobre os municípios serviu de base para o projeto de criação do juizado de paz (SLEMIAN, 2017, p. 48-49). Foi abordado a divergência entre Feijó e Vasconcellos na qual o primeiro considerava o juiz de paz como um conciliador local e o segundo apontava esse magistrado com “ampla jurisdição” (SLEMIAN, 2017, p. 49-50). A autora traçou um breve perfil biográfico para em seguida apontar as características das obras de ambos na qual a linguagem do manual de Feijó foi marcada pela simplicidade. Na sua obra, Feijó reforçava a perspectiva conciliadora do juiz de paz e negava o caráter administrador e subordinado às câmaras. (SLEMIAN, 2017, p. 52-53)

O texto de Bernardo Pereira Vasconcellos tinha uma característica mais acadêmica e demonstrava preocupação com a falta de caráter autoexplicativo da lei ao lançar uma série de notas no texto anexado. Essa preocupação era justificada pelo fato do juiz de paz ser uma autoridade leiga. Para Vasconcellos, os juízes de paz eram autoridades ordinárias que deveriam estar atentas desde as posturas municipais até com o trato referente às diversas situações de modo a garantir a ordem pública. Além disso, eles seriam os únicos que poderiam lançar a força armada para conter os motins (SLEMIAN, 2017, p. 58-59). É importante ressaltar que a autora traça o percurso dos dois personagens durante o período regencial inclusive mencionado o apoio de ambos à regência. (SLEMIAN, 2017, p. 63)

O último capítulo intitulado Memórias de uma justiça: manuais e juízes de paz na Inglaterra, Estados Unidos e França foi escrito por Kátia Sausen da Motta que lançou uma abordagem comparativa com os manuais publicados nos três países mencionados no título. Kátia Motta (2017) iniciou o texto afirmando que a literatura jurídica tem na História do Livro o caminho metodológico (MOTTA, 2017, p. 65). Ela traz como uma das reflexões, fundamentada em Alfredo Flores, que aponta as publicações nos anos iniciais da vida independente brasileira como parte da formação de um direito brasileiro. Porém, nossas experiências não eram desconectadas de outras experiências estrangeiras. Feijó e Vasconcellos eram cientes da experiência francesa, americana e inglesa com os juízes de paz e assim como a existência desse magistrado, também circulava nesses países alguns manuais. (MOTTA, 2017, p.66-68)

Motta fez uma breve análise dos manuais publicados na Inglaterra, França e EUA por serem as experiências mais ressaltadas por Feijó e Vasconcellos. Na Inglaterra, os manuais foram publicados desde o século XVI, porém o juiz de paz tinha sido instituído muito antes e com o objetivo de melhor administrar o território dentro de uma lógica centralizadora de Estado: “Instituído pela coroa no século XIV, o juiz de paz na Inglaterra originou-se, portanto, da política de centralização e consolidação do poder real sobre a administração do território”. (MOTTA, 2017, p.69)

Para discutir a experiência americana a autora usou como referência Alexis Tocqueville que reconheceu a herança inglesa na ex-colônia (mesmo com as diferenças), mas ressaltou que o modelo americano foi considerado próximo dos ideais democráticos da república pensada para a ex-colônia britânica. A principal tarefa do juiz de paz americano, observado por Tocqueville, era de policiar a localidade fiscalizando a saúde pública, ordem e moralidade dos cidadãos. (MOTTA, 2017, p. 73-74)

A experiência francesa está relacionada com o prosseguimento da Revolução. Segundo Motta a historiografia francesa não possui consenso acerca das rupturas e continuidades nas mudanças entre o antigo modelo judiciário e a formação dos juízes de paz (MOTTA, 2017, p. 77) e o “O novo juiz surgia, então, como solução para justiça rápida, gratuita, simples e, principalmente, acessível a todos os distritos franceses”. (MOTTA, 2017, p.78-79)

Kátia Motta finaliza associando a história dos juízes de paz com a história dos manuais desse magistrado e compara os trabalhos estrangeiros com as produções de Feijó e Vasconcellos. Segundo Motta, muitos manuais estrangeiros apresentaram modelos de formulários, atas e despachos. Feijó e Vasconcellos adotaram esse perfil em suas obras, mas se diferenciaram por produzirem materiais mais curtos e práticos para o uso e condução (MOTTA, 2017, p. 86). Por fim, ela aponta que tais manuais serviram como guia para os políticos no recém independente Brasil. (MOTTA, 2017, p.88)

O livro foi concluído com a anexação dos dois manuais debatidos: 1) Commentarios a Lei dos Juizes de Paz de Bernardo Pereira Vasconcellos; 2) Guia do juis de pas do Brasil no desempenho de seus deveres [por um deputado, amigo da instituição] de Diogo Antônio Feijó.

A leitura dos manuais nos ajuda a analisar a forma como determinadas informações circulavam entre as autoridades. Adriana Pereira Campos (2017) cita Thomas Flory para afirmar que os juízes de paz brasileiros não receberiam treinamento e vencimento na sua ideia original na constituição (CAMPOS, 2017, p.34). Talvez no sentido de capacitação para o exercício da função eles não fossem treinados tal qual os juristas que passavam pelas faculdades de direito. Porém, não podemos descartar que os manuais e obras literárias foram um dos recursos utilizados para ajustar formas de atuação das autoridades e das elites.

O magistrado de paz possuía alguns limites dentro do que poderíamos chamar de “treinamento” por não passarem obrigatoriamente por espaços que eram melhores destinados a isso como as universidades como explicou Ilmar Rohloff de Mattos (2004): “Sem dúvida, a educação superior foi um poderoso elemento de unificação ideológica da “elite” imperial, sobretudo por meio da formação jurídica, que fornecia um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades.” (MATTOS, 2004, p. 194)

José Murilo de Carvalho também chamou atenção para a homogeneidade de treinamento como estratégia para redução dos conflitos intra-elites num contexto próximo ao das independências da América Ibérica, mas especificamente na América portuguesa:

A homogeneidade ideológica e de treinamento é que iria reduzir os conflitos intra-elite e fornecer a concepção e a capacidade de implementar determinado modelo de dominação política. Essa homogeneidade era fornecida sobretudo pela socialização da elite, que será examinada por via da educação, da ocupação e da carreira política. (CARVALHO, 2014, p. 21)

O livro é recomendado para estudiosos da formação das autoridades brasileiras oitocentistas. Trata-se de uma contribuição não só para os estudos históricos como também para os estudos jurídicos. A obra demonstra preocupação em contextualizar duas produções oitocentistas que tinham como finalidade a orientação ao magistrado leigo brasileiro.

A inovação do corpo jurídico brasileiro demonstrava atenção com experiências estrangeiras, mas também se preocupava com a organização social e política brasileira. Na lei e nos manuais o mundo da escravidão não escapou do conjunto normativo e pedagógico, respectivamente, quando a preocupação com a formação de quilombos e resgate de escravos fugidos aparecia na norma e nas orientações dos autores. É um livro com preocupação notória em debater a formação jurídica brasileira e, assim faz, de modo a contribuir com pesquisadores de campos como História Política, História Intelectual e História do Direito. Não podemos desprezar a contribuição para a História Social na medida em que as autoras terminam por contextualizar a formação de um magistrado leigo que exercia suas funções e intervenções de modo a impactar diferentes estratos da sociedade na nascente Brasil Império.

Nota

1As informações foram obtidas na consulta ao currículo lattes das autoras. Algumas dessas informações estão disponíveis na orelha do livro.

Referências

CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017.

CAMPOS, Adriana Pereira. O Farol da boa prática judiciária: dois manuais para instrução dos juízes de paz. In.: CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017.

CARVALHO, José Murilo de. Prefácio. In.: CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro das sombras: a política imperial. 9ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MOTTA, Kátia Sausen da. Memórias de uma justiça: manuais e juízes de paz na Inglaterra, Estados Unidos e França. In.: CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017.

SLEMIAN, Andréa. Dois projetos de justiça, uma mesma autoridade: os juízes de paz segundo Diogo Antônio Feijó e Bernardo Pereira Vasconcellos (1829). In.: CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017.

WOLKMER, Antonio Carlos. A magistratura brasileira no século XIX. In.: Sequência. Florianópolis-SC, v. 35, p. 24-30, 1997.


Resenhista

Rafael Sancho Carvalho da Silva – Mestre e doutorando em História pela Universidade Federal da Bahia e professor de História do Brasil e da Bahia da Universidade Federal do Oeste da Bahia.  E-mail: rsanchosilva@gmail.com


Referências desta Resenha

CAMPOS, Adriana Pereira; SLEMIAN, Andréa; MOTTA, Kátia Sausen da. Juízes de paz: um projeto de justiça cidadã nos primórdios do Brasil Império. Curitiba: Juruá, 2017. Resenha de: SILVA, Rafael Sancho Carvalho da. O projeto do judiciário de paz no Brasil Império: resenha do livro Juízes de Paz: um projeto de justiça cidadã nos Primórdios do Brasil Império. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 16, n. 2, p. 278-285, Jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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