A obra de Jorge Ferreira intitulada João Goulart: uma biografia, lançada em 2011, retrata a vida pessoal e política do presidente deposto pelo golpe militar em 1964. Logo em sua introdução, o autor trata de desmistificar a imagem, recorrente em boa parte da historiografia, de João Goulart como um político demagogo e impotente diante das crises políticas do período em que foi presidente. Ferreira demonstra que essa alegoria sobre Goulart foi criada pelas administrações políticas subsequentes, interessadas em afetar a imagem de qualquer liderança que estivesse ligada ao trabalhismo ou demonstrasse complacência com a corrente comunista.
Professor titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, Ferreira também publicou outros livros que focaram a política nacional, especialmente o chamado populismo, entre eles: O imaginário trabalhista – getulismo, PTB e cultura política popular; Prisioneiros do Mito – cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956); além de ter organizado O populismo e sua história, debate e crítica2 . Graduado em História pela mesma instituição na qual leciona, obteve o título de doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, lidera um grupo de pesquisa na própria UFF chamado Brasil Republicano – Pesquisadores em história cultural e política e é pesquisador também em outro grupo dessa universidade denominado Núcleo de pesquisa e estudos em história cultural.
O livro em questão está dividido em introdução, palavras finais e mais treze capítulos que compõem o perfil biográfico de Jango. Partindo da infância de Goulart em São Borja (RS), o historiador narra, embasado em depoimentos orais e em documentação recolhida junto a arquivos públicos e privados, a trajetória política dessa figura nacional. Nota-se a preocupação em relacionar os acontecimentos da vida particular com os da vida pública e política. Como consequência, encontra-se quase obrigatoriamente, a menção a diferentes personalidades da Terceira República no Brasil, como Leonel Brizola, Carlos Lacerda, Henrique Teixeira Lott e os ministros militares3 que intentaram o golpe. Publicada pela editora Civilização Brasileira, a obra em sua primeira edição possui 713 (setecentos e treze) páginas, sendo 612 (seiscentas e doze) delas dedicadas à narrativa biográfica do personagem em ordem cronológica, salvo algumas retomadas de direção, flutuando entre o político e o pessoal, para facilitar a compreensão do leitor.
O primeiro capítulo do livro é dedicado à infância de Goulart e aos episódios familiares ocorridos na estância em São Borja onde cresceu. O capítulo seguinte reconstitui o período em que Jango graduou-se e, posteriormente, assumiu e prosperou nos negócios da família na fazenda. Jango então é apadrinhado politicamente por Getúlio Vargas e cresce dentro de um partido recém-formado: o PTB.
Narra-se, no capítulo posterior, o período em que Jango assumiu como ministro a pasta do Trabalho, durante o último mandato de Vargas, tendo sua atuação marcada pelo forte poder de negociação com os sindicatos, desburocratizando o contato com as classes trabalhistas e recebendo líderes sindicais em seu escritório no Hotel Regente, quando ainda era o Rio de Janeiro a capital da República. Também é relatado o aval de Vargas para que fossem tomadas decisões políticas sem a consulta prévia ao presidente. Vê-se que Goulart despertava a fúria dos udenistas e de membros conservadores do PSD, enfrentando oposição majoritária da imprensa (Tribuna de Imprensa e O Globo, principalmente).
As crises relatadas no quarto capítulo, que se seguiram até o suicídio do então presidente, eram relativas à duplicação do salário mínimo e às acusações de apoio aos movimentos grevistas por parte do ministro. Dentro do partido, Jango assumiu uma postura autoritária com expurgos dos políticos contrários às suas medidas. Nas eleições de 1955, enfrentou oposição de alas conservadoras do PSD que não concordavam com a aliança entre o ex-ministro e o já popular Juscelino Kubitschek. Enquanto isso, a imprensa ligada a Carlos Lacerda fazia seguidas denúncias de corrupção que logo eram rebatidas. Vencendo a proposta de candidato único feita por Café Filho junto aos udenistas, Jango assumiu como vice de JK, com o apoio militar da Frente de Novembro comandada pelo marechal Lott, que possibilitou a posse. As dificuldades no livro anunciadas como “dilemas de um vice” se devem ao fato de que, alinhado com o plano nacionalista de resistência ao imperialismo norte-americano, Goulart teve que enfrentar os problemas de lidar com a política de tendência liberal e de desenvolvimento de Kubitschek.
Em seguida, no capítulo seis, o autor refere-se à luta pela posse de Goulart, quando, sem apoio político, Jânio Quadros renunciou à Presidência da República sete meses após ser eleito. Aparecem, nesse cenário conturbado, as ações políticas de Quadros, algumas na direção contrária às de sua própria coligação. Outra questão relevante diz respeito às tentativas de Quadros em minar, em alguns momentos, a influência política de Jango. A formação da Rede da Legalidade no sul, sob o comando de Brizola, simbolizou o processo político para que Goulart assumisse como presidente. Nesse trecho específico, vale destacar o espaço dado pelo autor aos acontecimentos daquele momento tenso em que as forças lideradas por Brizola puseram-se em confronto com lideranças golpistas. Ferreira conduz o leitor a adentrar o Palácio Piratini, palco de ameaças de ataque por parte dos que desejavam impedir que Jango assumisse a presidência, retratando com cores intensas o conturbado momento político do país.
Os próximos quatro capítulos narram o período em que João Goulart esteve na presidência, inicialmente com a formulação de um governo parlamentarista por meio do qual dividia forças como os ministros militares e, após o plebiscito, com a confirmação e a posse integral dos poderes no cargo. Destaca-se o esforço do presidente para colocar em prática as reformas de base, um extenso programa político que incluía, entre vários pontos, a reforma agrária. A intensidade das discussões sobre as reformas promoveu radicalizações de todos os lados, fazendo com que Jango perdesse apoio político inclusive da esquerda, liderada por Brizola, que não aceitou a proposta parlamentarista, opondo-se à maneira conciliatória como era conduzida a política nacional. Também evidencia-se o crescimento da influência dos militares de alta patente que apoiavam a UDN e diziam temer a “esquerdização” do país, tornando-o propenso ao comunismo. Conclusivamente, Ferreira dedica um capítulo aos últimos dois dias em que Goulart esteve na presidência até que fosse concretizado o golpe de Estado. Recorda-se ainda que Brizola propôs um contragolpe não aceito pelo presidente deposto, alegando que era necessário evitar derramamento de sangue.
Os últimos três capítulos do livro discutem o exílio de Jango, primeiramente no Uruguai e depois na Argentina, até sua morte na cidade de Mercedes, em 1976. Essas passagens merecem atenção, pois indicam que a morte de Jango pode não ter sido uma morte natural, visto que não foi realizada a autópsia no corpo, o que levanta suspeitas de um possível envenenamento, questão ainda hoje polêmica.
A obra escrita por Jorge Ferreira pode ser entendida como uma contribuição para uma nova perspectiva sobre a Terceira República, período que tem sido melhor e mais detidamente analisado nas últimas duas décadas, no momento posterior ao fim da ditadura em 1985. Até então boa parte das obras sobre Jango e os anos 1960 era influenciada por uma visão negativa do período, como o próprio autor esclarece:
Ele se tornou uma personalidade esquecida no quadro político nacional – o que não é casual. Apesar da grande mobilização política e social vivida pelo país na época de seu governo, após o golpe militar uma determinada versão surgiu e se consolidou. Os militares e seus aliados civis passaram a afirmar que tudo antes de março de 1964 era corrupção, demagogia, caos econômico e subversão da ordem. (FERREIRA. 2011, p. 11)
Assim, o esforço do autor implica em elucidar, por meio de ampla pesquisa documental e análise historiográfica aprofundada, esse período da história nacional encoberto pela radicalização da direita e que vem despertando mais interesse recentemente com a liberação ainda incompleta para consulta de documentos antes escondidos nos “porões da ditadura”.
No decorrer do livro, pode-se perceber a preocupação de Ferreira em mostrar ao leitor o caráter conciliatório presente nas relações políticas de Jango desde o início de sua carreira. Salienta-se a facilidade do mesmo em lidar com as classes trabalhadoras, desde sua infância em São Borja até as visitas de líderes sindicais ao Hotel Regente sem prévios agendamentos. Essa alternância entre a vida pessoal e a carreira política presente no livro se mostra eficaz e bem trabalhada uma vez que se faz possível entender em que grau elas se relacionam.
Outro aspecto abordado é a dissonância entre as posições de Goulart em seus discursos políticos e aquelas que adotava no âmbito particular. Estancieiro e rico, a legitimidade de suas intenções é posta em xeque em vários momentos do livro, já que se pautava essencialmente no apoio das classes trabalhadoras, defendendo, e por vezes conseguindo, a expansão dos direitos trabalhistas, sempre almejando as reformas de base.
Quanto aos obstáculos enfrentados por Jango pontualmente, em quase todos os capítulos destaca-se a atuação da oposição em três instâncias: a imprensa, a esquerda (base política de Jango) e os próprios militares. Segundo o autor, o golpe deve ser entendido como um processo e não um fato isolado, chegando a defender que esse episódio só não se concretizou anteriormente porque a direita se encontrava dividida e pouco mobilizada.
Finalmente, a biografia se apresenta como uma pesquisa que procura avaliar criteriosamente os julgamentos e críticas comuns às obras acadêmicas sobre o período. Evidentemente, biografar a vida de Jango já implica em uma posição política e o autor deixa isso claro aos seus leitores. Com uma linguagem fluente e uma linha de raciocínio lógica e sequencial, encontra-se nessa obra um campo extenso de pesquisa para historiadores, inclusive analisando a historiografia anterior e destacando os posicionamentos sobre o mesmo tema em diferentes obras.
Mas, para além do trabalho acadêmico de grande fôlego, a obra de Jorge Ferreira merece ser lida e entendida por leitores também de fora do espaço acadêmico. A história recente do país ainda sofre com a falta de trabalhos e pesquisas de peso e é fora de dúvida que Ferreira dá novo impulso à historiografia sobre Jango e sobre o Brasil dos conturbados anos 1960.
Notas
2 Obras publicadas em 2005, 2002 e 2001, respectivamente.
3 Odílio Denys (Exército), Gabriel Grün Moss (Aeronáutica) e Sílvio Heck (Marinha).
Resenhista
Thales Moura Brasil Alegro – Discente do curso de História na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) e pesquisador de Iniciação Científica com o projeto “A turbulência política durante o governo de João Goulart: análise das justificativas para a ditadura militar no Brasil”, sob orientação do Prof. Dr. Mário Danieli Neto.
Referências desta Resenha
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: ALEGRO, Thales Moura Brasil. Cultura Histórica & patrimônio, v.1, n. 2, p.175-179 ,2013. Acessar publicação original [DR]
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