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Jinga de Angola: A rainha guerreira da África | Linda M. Heywood

Muito se fala sobre a Rainha Jinga1: os adjetivos utilizados para mencioná-la não lhe poupam as características marcadamente de poder e ousadia. “Jinga de Angola: A rainha guerreira da África”, recente trabalho da historiadora Linda Heywood, lançado em língua inglesa no de 2018 e publicado no Brasil em 2019, não foge a esta regra. Dividida em sete partes, que acompanham cronologicamente a vida de Jinga, e com um posfácio assinado por Luís Felipe de Alencastro, a obra ressalta a perspectiva da liderança feminina e astúcia da rainha africana que é conhecida por muitos e cuja atuação histórica é relembrada em cantos de congado e cantos populares pelo Brasil.

Jinga Mbande Gambole, Ana de Sousa, Ngola Kiluanje e Ngola Jinga Ngombe e Nga — estes são todos os nomes adotados por Jinga em diferentes circunstâncias, de sua longa vida, na qual testemunhou e vivenciou ativamente, mudanças profundas, de origem externas, mas também internas. Essa adoção de diferentes nomes revelavam a busca por identidade e também apontavam para sua destreza, em circular por mundos e culturas diferentes e ainda assim, registrar sua marca e presença.

A pesquisadora Linda Heywood é conhecida no Brasil, especialmente, pela organização da obra “Diáspora negra no Brasil“, publicada em língua portuguesa no ano de 2008 — trabalho que fala sobre o legado dos africanos da África Central na América. No estudo vigoroso que empreende sobre a Rainha Jinga, Heywood relata toda a história de vida desta emblemática líder feminina, transitando por diferentes fontes históricas, alocadas em acervos distintos. Fruto de uma pesquisa de longa data, o livro é uma biografia, com uma notável riqueza de detalhes. Poder, liderança, gênero e espiritualidade são as questões orientadoras da pesquisa empreendida por Heywood, que constrói uma narrativa envolvente e muito bem articulada, agradável a leitores historiadores e não-historiadores.

A introdução da obra centra-se em uma contextualização bem fundamentada sobre o ano de nascimento de Jinga, 1582. E relata os aspectos geográficos, políticos e sociais do Congo, Ndongo e Matamba. O passeio histórico por esta região, embora se oriente pela presença europeia, não deixa de mencionar as características naturais, as organizações sociais dos povos que ali viviam e serve de base para compreensão das posteriores transformações que seriam operadas por Jinga, nestas regiões. Ainda nessa parte introdutória, evidencia-se o papel das mulheres na vida social do Ndongo (atual Angola), desmitificando uma suposta posição de subalternidade destas.

A primeira parte do livro, intitulada de “O reino de Ndongo e a invasão portuguesa” fala sobre a consolidação do Ndongo, enquanto uma força poderosa na África Central e os confrontos ocorridos com a chegada dos portugueses em 1560. Nesse cenário pregresso ao nascimento de Jinga, relata-se brevemente a atuação de seus antepassados, membros de uma linhagem real, que remontavam à fundação do Ndongo. As fontes históricas utilizadas por Heywood na construção desta narrativa são marcadamente cartas de padres e missionários que estiveram na região, e em especial a obra do missionário capuchinho italiano, Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo. Contudo, a narrativa não privilegia a ótica marcadamente europeia e estereotipada destas fontes.

As ações dos portugueses nas lutas por subordinação dos territórios e regiões vizinhas de Ndongo, que também eram operações de captura de escravizados, são descritas como sangrentas e até mesmo macabras. A partir da carta do padre Baltasar Afonso, por exemplo, relata-se a feral prática adotada pelos portugueses de se cortar o nariz de nativos que eram mortos nas batalhas e de enviá-los, posteriormente, aos acampamentos portugueses como troféus. Em uma destas batalhas, 619 narizes de soldados do Ndongo teriam sido cortados.

Em “Crise e ascensão de Jinga“, é relatada a conjuntura do Ndongo com o avanço dos portugueses no estabelecimento da chamada “Angola Portuguesa”, o crescimento do tráfico de escravizados e a ampliação do cristianismo. A expansão da presença portuguesa no Ndongo e as derrotas sofridas pelo Ngola2 Mbande, irmão de Jinga, são os principais fatores históricos que levam Jinga ao contato diplomático e notório com os portugueses. Jinga recebeu o título de Jinga Mbande Gambole, que a identificava como enviada oficial do Ngola Mbande, ao ser enviada em uma missão diplomática para um encontro em Luanda, com governador português João Correia de Souza, em 1622. Nessa mesma ocasião, Jinga demonstrou sua habilidade para negociar e também, decidiu passar pelo batismo público cristão — ação estratégica que garantiu um tratado entre os portugueses e o Ndongo. Neste mesmo período, após seu batismo, Jinga adotou o nome cristão “Dona Ana de Sousa “, com o qual ela assinava as correspondências oficiais que trocava com os portugueses.

A terceira parte da obra, “Uma rainha combativa“, relata a ascensão de Jinga à posição de líder de Ndongo. Sucessora indicada para assumir o trono após a morte do irmão Ngola Mbande, Jinga adota o título de Rainha de Angola (Ngola Kiluanje) e exige que tanto seu povo, quanto os portugueses, a tratem por essa alcunha. Marcada por fatos instigantes e relatos peculiares, a trajetória de Jinga é descrita a partir de suas destacadas habilidades intelectuais e físicas, evidenciadas em estratégias diplomáticas e militares, que não omitem os aspectos espirituais, as tradições do Ndongo e os dramas pessoais desta imponente figura.

Em “Política Traiçoeira“, Heywood segue a trilha espetacular das fugas e reaparições de Jinga, após os portugueses resolveram nomear e reconhecer um figura masculina, Ngola Hari, como rei de Ndongo. Para os portugueses, Jinga não era uma rainha e nem podia sê-lo, por ser mulher — essa opinião demonstrava o desconhecimento estrangeiro sobre a importância das mulheres do Ndongo, na governança.

Na quinta parte da obra, intitulada de “Guerra e Diplomacia” o leitor é imerso no universo diplomático e militar entre os anos de 1630 e 1648, no qual Jinga transitava muito bem. Embora se encontrasse numa situação delicada, já que suas duas irmãs, Kambu e Funji, eram mantidas como reféns em Luanda, Jinga continuava a empreender manobras contra os portugueses. As iniciativas diplomáticas e militares de Jinga ofuscavam a figura de Ngola Hari, e a reafirmavam enquanto a legítima líder do Ndongo. Jinga impunha sua presença aos portugueses, escrevendo diretamente ao governo estrangeiro, instalado em Luanda. Além disso, utilizava-se de seu privilegiado conhecimento dos territórios para bloquear as rotas de comerciais de interesse português, evidenciando aos estrangeiros, que a prosperidade de seus interesses comerciais dependia de um sistema de governança local estável.

É também nesta etapa de sua vida que Jinga aproxima-se das tradições e rituais dos imbangalas — também conhecidos como os temíveis guerreiros jagas — após casar-se com o imbangala Kasa, em 1625. Heywood destaca que essa proximidade de Jinga com as cerimônias que Cavazzi classificava como “sacrifícios bárbaros e danças obscenas”, fez parte da adoção de um novo estilo de liderança, que envolvia práticas cotidianas de sacrifícios humanos e canibalismo.. É nesta etapa de vida, que ela adota o nome de Ngola Jinga Ngombe e Nga (Rainha Jinga, Mestre de Armas e Grande Guerreira).

Em “Um ato de Equilíbrio“, mais uma vez, a engenhosidade de Jinga — a essa altura, uma mulher de 66 anos de idade — é evidenciada como propulsora de suas estratégias de liderança. A vida de Jinga entre os anos de 1648 e 1656 é marcada por reviravoltas e tomada de decisões que a levam à liberdade a sua irmã Kambu e ao reconhecimento de seu direito de governar Matamba, como um reino independente, com fronteiras definitivas, e ao estabelecimento de um tratado de paz com os portugueses, após décadas prolongadas de guerras.

Na sétima parte, nomeada de “A caminho dos ancestrais“, o leitor é levado a conhecer os sete últimos anos da vida de Jinga e suas transformações nos planos político e pessoal. Etapas essas, consolidada pela transformação de Matamba em um reino cristão, estável, aprovado pelo Vaticano e apto a ser governado por sua irmã, Kambu. Outro acontecimento emblemático é o casamento cristão e monogâmico ao qual Jinga adere, numa cerimônia pública e exemplar para seus súditos. Há ainda um epílogo, no qual Heywood reflete sobre as representações e papéis evocados posteriormente, sobre a figura de Jinga.

Mais que uma nova biografia sobre a rainha Jinga, a publicação desta obra de Heywood, tem significados múltiplos para o campo dos estudos africanos no Brasil. Nesse sentido, destaca-se três aspectos fundamentais: 1) o livro publicado em língua portuguesa, colabora para a derrubada do mito de que o acesso aos estudos sobre África no Brasil, são limitados a determinados públicos, porque estão publicados em outros idiomas; 2) a escrita da biografia de uma mulher africana, por uma pesquisadora afro-americana e empenhada há vários anos, na construção de narrativas históricas que considerem o lugar de vivência e a atuação histórica destes sujeitos, é extremamente significativa, ao considerar-se que a própria escrita da história não está isenta do lugar de fala, que os historiadores e pesquisadores se encontram; E por fim, 3) a escrita desta obra preocupa-se também com aspectos fundamentalmente humanos e nos apresenta uma Jinga para além dos estereótipos e categorizações. A história de Jinga que nos é contada, não se deixa enredar pela ótica europeia das fontes históricas e transcende a vertente puramente estereotipada sobre as organizações sociais e culturais das sociedades centro-africanas, à época dos encontros com os portugueses.

Mudanças de nome; casamentos e alianças sociais — estabelecidas com grupos africanos e europeus; transformações no estilos de liderança; releituras e adaptações de universos religiosos distintos; lutas contra o domínio político e cultural, pretensamente imposto pelos portugueses; diplomacia; estratégias militares diversas; tradições e inovações — todos esses aportes confluíramse na figura de uma mesma mulher. Jinga nos é apresentada por Heywood, sobretudo, enquanto uma mulher de seu tempo: que viveu entre as tradições do Ndongo e as novidades trazidas pela presença dos portugueses e que soube ler e operacionalizar os códigos sociais de todo esse cenário.

Notas

1 Adotou-se nesse texto a mesma grafia do nome Jinga utilizada na obra Jinga de Angola: A rainha guerreira da África. Contudo, o nome étnico desta rainha, comporta outras grafias.

2 Título do governante ou rei.


Resenhista

Rogéria Cristina Alves – Doutoranda em História Social da Cultura pelo programa de Pós Graduação em História, da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGHIS/UFMG).


Referências desta Resenha

HEYWOOD, Linda M. Jinga de Angola: A rainha guerreira da África. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Editora Todavia, 2019. Resenha de: ALVES, Rogéria Cristina. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.02, n.02, p. 134 – 137, abr. 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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