Jesuítas e Modernidade | Antíteses | 2021

Além da missionação, aspecto que, por muito tempo, mais atenção recebeu da historiografia – para exaltar as atividades dos religiosos, numa primeira vertente, e para rever os resultados dos encontros e tensões culturais entre eles e os “nativos” ou povos originários, num outro movimento –, os jesuítas se envolveram em discussões teológicas, com a manutenção de fazendas, de hospitais e de enfermarias, com a investigação e utilização da natureza, com o sistema escravista (sua justificação e sua participação), com a sistematização de línguas até então desconhecidas dos europeus, com a instrução formal, básica e universitária (de indígenas, de colonos e de reinóis), com a política em seus mais diferentes níveis – vide, por exemplo, as querelas com Marquês de Pombal que desencadearam na expulsão desses religiosos dos domínios lusos –, enfim, com uma gama ampla de camadas que envolviam o cotidiano moderno, muito além da atribuição primeva de zelar pelas almas. É sobre essa múltipla atuação da Companhia de Jesus, uma das ordens religiosas mais presentes – senão a mais – no Brasil ao longo do chamado período colonial, nas então colônias da Coroa espanhola na América e em diversos territórios à leste, como em Macau e Goa, além da própria Península Ibérica, que os estudos aqui reunidos se debruçam.

O acesso a essa miríade de aspectos vem, sobretudo – mas não só –, dos registros escritos que os padres jesuítas nos legaram. O escrever constante, consistente e persistente é, aliás, um dos traços distintivos da Ordem, tanto pelas normas que regem aquela “escritura para mostrar”3 como a própria atividade de observação seguida da anotação– e mesmo exegética – levada a cabo pelos jesuítas desde os tempos primevos. Embora não sejam, é verdade, os únicos4 a ter deixado, em papel e tinta, marcas de sua ação e da forma como leram o mundo, eles nos dão conta de uma série importante e muitas vezes sistemática de informações, em grande parte devedores de sua intensa atividade de comunicação – e sua circulação5 –, através da feitura e envio de cartas, relatórios e observações aos Gerais da Companhia e a outros irmãos em missão, ainda pelas obras de maior fôlego que eles produziram, em documentos de natureza administrativa e mais burocrática, como inventários, registros e documentos doutrinais, e, ainda, como crônicas, dicionários, compêndios de botânica e livros de cunho médico-cirúrgico ou farmacêutico.

É justamente sobre esse último conjunto documental, relativo a um espaço situado no sul do continente americano, que o artigo que abre esse volume, intitulado “Sobre inventários do mundo natural e intercâmbios locais e globais: a Companhia de Jesus e a circulação de conhecimentos científicos na Época Moderna”, discute a visão – fundamentada na percepção da existência de uma dicotomia entre prática científica e cultura católica – de que o mundo ibero-americano e a Companhia de Jesus pouco aportaram para a história das ciências da Época Moderna. A partir da análise de um manuscrito de cirurgia escrito nas reduções da Província Jesuítica do Paraguai, no ano de 1725, Eliane Cristina Deckmann Fleck descortina as evidências da circulação de conhecimentos, que envolveu informantes nativos, missionários jesuítas e homens de ciência europeus, e discute sua contribuição na reconfiguração da construção do conhecimento científico moderno. De acordo com a autora, mais do que revelar a difusão e apropriação dos conhecimentos de medicina, de cirurgia e de farmácia vigentes na Europa do Setecentos, o Libro de Cirugía pode contribuir para o desvendamento da produção de novos saberes e técnicas resultantes do contato com as populações locais e indígenas e, sobretudo, com a natureza do Novo Mundo.

Pensando, também, na contribuição dos religiosos da Companhia para as ciências médicas, mas mais a leste, e com um foco direcionado aos usos medicamentosos de alimentos, que se estrutura “Manuscritos médico-farmacêuticos jesuítas e as dietas recomendadas aos doentes (Brasil e Goa, século XVIII)”. Nele, Ana Carolina Viotti nos lembra que entre as atividades plurais levadas a cabo pelos jesuítas em sua atuação missionária, o tratamento corporal dos fiéis ocupou lugar nada desprezível. Ela argumenta que, além de atender os doentes em hospitais e enfermarias, religiosos da Companhia de Jesus produziram e registraram seu conhecimento médico e farmacológico em documentos que, grosso modo, podem ser chamados de “cadernos” ou “coleções de receitas”, sendo que três exemplares manuscritos, produzidos no século XVIII, nas então possessões lusas, na América e na Ásia, são discutidos no presente estudo: um que dava conta das boticas dos “quatro cantos do mundo”, um goense e um atribuído aos inacianos. O artigo se detém nas recomendações alimentares que acompanhavam essas fórmulas medicamentosas, procurando sublinhar o que deveria ser consumido, evitado ou proibido aos doentes durante os tratamentos, com o objetivo de depreender o entendimento desses religiosos sobre o adoecimento e a cura – incluindo os achaques mais frequentes, posto que mereceram destaque, e os referenciais anunciados que respaldavam suas prescrições –, além dos elementos disponíveis para sanar os males corporais dos enfermos.

Avançando um pouco no tempo e voltando-se para o espaço brasileiro, nomeadamente o amazônico, Karl Heinz Arenz analisa, em “O cotidiano em verbetes: o Dicionário de Trier e a vida em uma missão jesuíta da Amazônia portuguesa em meados do século XVIII”, aspectos substanciais da vida cotidiana em uma missão naquele território no contexto das reformas pombalinas. Valendo-se do “Dicionário de Trier”, redigido no vale do Xingu, antes de 1756, e redescoberto, em 2012, na Europa, são consideradas as inserções de numerosos comentários e exemplos que permitem perceber traços dos modos e das condições de vida que vão além da narrativa, tida, pelo autor, como padronizada nas crônicas. O autor nos convida a refletir sobre as diversas camadas que os verbetes nos contam, na medida em que reproduzem o falar e o sentir dos indígenas que, mesmo enquadrados num regime de controle, conseguiram preservar elementos essenciais de suas tradições originais.

No ambiente das ações de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, e a consequente expulsão dos jesuítas dos domínios americanos de Portugal (1759) e, depois, de sua expulsão das possessões espanholas (1767), José Eduardo Franco e Susana Alves-Jesus questionam o papel de “desumanizadores por excelência da história da humanidade, inimigos dos Estados modernos e paganizadores da Igreja” ao qual os religiosos dessa Ordem foram associados. Em “O Drama dos Juízos Contrastantes: Os Jesuítas como desumanizadores ou como precursores dos Direitos Humanos?”, a intensiva propaganda anti-jesuítica pombalina, em que eles são identificados como a causa principal, quando não única, de todos os males acontecidos na Igreja e nas sociedades coevas, numa leitura radicalmente negativa, de um lado, e outras radicalmente contrárias, que fazem dos inacianos modernizadores da Igreja, qualificados assessores de Reis e Príncipes, precursores dos direitos humanos, de outro, são nuançadas pelos autores. É, pois, no revisitar dessas duas visões contrastantes, analisando criticamente a estilização da ação dos religiosos, ora agentes de desumanização, ora de humanização, que a reflexão proposta pelos dois historiadores se pauta.

Por fim – e já em uma proposta que avança no Setecentos –, o último texto que integra este dossiê, “A Misericórdia de Lisboa e os edifícios jesuítas do século XVIII: história e patrimônio”, se debruça sobre o espaço então “metropolitano” do Império português, privilegiando justamente aquele aspecto que é extratextual, ou melhor, utiliza-se das noções de patrimônio material, no caso, os edifícios, para repensar e recontar a atuação missionária que, a bem da verdade, extrapolou a evangelização e a espiritualidade e chegou ao atendimento dos corpos físicos. As Misericórdias são, aqui, local, de fato, privilegiado para a análise, posto que, desde a sua fundação até o presente, se dedicam a assegurar o cumprimento da sua atividade assistencial. Joana Balsa Pinho recorda que, em 1768, a Misericórdia de Lisboa se instalou na Casa Professa dos Jesuítas em Lisboa – a Casa Professa de São Roque, e a partir desse espaço e contexto, procura aprofundar o processo de ocupação da casa professa de Lisboa e, simultaneamente, refletir sobre a relação que as Misericórdias estabeleceram com o espaço edificado, que, desde o início da sua fundação, sempre se mostrou particular e determinante. Não só o processo da doação do edifício de São Roque à Misericórdia, mas, também, a doação do colégio de Santo Antão para a instalação do Hospital Real de Todos-os-Santos e a dos bens das extintas confrarias instaladas na casa professa são tomados pela autora como objetos de análise, com o objetivo de pensar como elas concorreram para consolidar a posição da Misericórdia, reforçando as suas condições estruturais e financeiras para uma mais conveniente execução dos seus objetivos assistenciais.

Para além do grande tema – a múltipla atuação da Companhia de Jesus na Modernidade – abordado nos artigos reunidos nesta Seção, há outro aspecto que merece ser mencionado, a saber, a afiliação de seus autores à Sociedade Internacional de Estudos Jesuítas. A SIEJ é uma organização científica internacional que agrega estudiosos das mais variadas áreas científicas – com especial destaque para a História Social e Cultural do Mundo Moderno, História das Ciências e dos Saberes, História da Teologia e da Filosofia, História da Educação, Ciências da Educação, Ciências Políticas, Ciências Económicas, História da Geografia, da Arquitetura, das Artes Visuais –, cujos interesses de pesquisa se voltam para “a produção de um saber crítico sobre a Companhia de Jesus, em todos os aspectos respeitantes a esta Ordem, ao longo de uma história de mais de 450 anos, em diversos espaços do mundo”.6

A ideia de organizar uma sociedade científica voltada para os estudos jesuítas advém do crescente interesse que a Ordem e sua trajetória multifacetada têm despertado nos último vinte anos, de modo que os estudos da atividade desses religiosos e sua participação não só na História religiosa, mas, também, como sublinhamos, suas contribuições políticas, culturais, artísticas, filosóficas, teológicas, pedagógicas e científicas, desde a Época Moderna até os nossos dias, pudesse ser organizada, posta em diálogo, disseminada e conhecida. A reunião de pesquisadores dessas diferentes temáticas, dedicados a temporalidades distintas e geografias ampliadas, têm permitido desde a análise dos processos de transição entre as sociedades do Antigo Regime até os grandes impérios coloniais nacionais e a construção dos Estados-Nação, no contexto da segunda colonização e na sequência das guerras e dos processos políticos de independência nacionais, sempre relacionadas com a atuação desses religiosos.

Os artigos ora publicados, que se propõem a discutir tais aspectos, vão ao encontro dos objetivos anunciados pela SIEJ, isto é, o de colocar em diálogo pesquisas realizadas em diversos continentes e idiomas, através de um olhar detido sobre a ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola. Oportuniza, ainda, a discussão de temas que se aproximam de uma série de questões tratadas pela historiografia recente – como a produção, experimentação, apropriação e circulação de conhecimentos por múltiplos agentes, em espaços cada vez mais alargados, incluindo-se aí o próprio movimento – e que debatem, a partir do foco dado a tais temáticas, aspectos teórico-metodológicos relevantes não apenas para os que se debruçam sobre a atuação jesuíta.

Por fim, esperamos que as pesquisas divulgadas pelos membros da SIEJ, que contemplam desde o patrimônio material legado pela Ordem, visível nos edifícios por ela mantidos na então metrópole e de onde padres e irmão jesuítas partiam rumo às terras de missão, até o conhecimento produzido nos confins do além-mar luso e hispânico, inspirem novas discussões e continuem a fomentar os debates e trabalhos dedicados a esse grande tema que, partindo da atuação de uma ordem religiosa, descortina outros e novos mundos.

Notas

3 Martins; Paz (2018).

4 Palomo (2016).

5 Castelnau-L’estoile et al. (2011).

6 Informações institucionais disponíveis em: http://www.siejesuitas.org/

Referências

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de et al. (ed.). Missions d’evangelization et circulation des savoires (XVIe-XVIIIe siècle). Madrid: Casa de Velázquez, 2011.

MARTINS, Maria Cristina Bohn; PAZ, Carlos Daniel. Las reducciones de la Compañía de Jesús: una introdución. Antíteses, Londrina, v. 11, n. 21, p. 9-17, jan./jun. 2018.

PALOMO, Federico. Written empires: franciscans, texts, and the making of early modern iberian empires. Culture & History Digital Journal, Madrid, v. 5, n. 2, p. 1-8, Dec. 2016. Disponível em: http://cultureandhistory.revistas.csic.es


Organizadores

Eliane Cristina Deckmann Fleck – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Orcid: https://orcid.org/0000-0002- 7525-3606

Ana Carolina de Carvalho Viotti – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3244-3514 .


Referências desta apresentação

FLECK, Eliane Cristina Deckmann; VIOTTI, Ana Carolina de Carvalho. Apresentação. Antíteses. Londrina, v.14, n. 28, p. 370-377, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.