Jesuítas e Inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682) | Célia Cristina da Silva Tavares

O livro de Tavares é resultado de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação de Ronaldo Vainfas. Para quem se interessa ou pesquisa a história de Portugal, seus domínios e as questões que emergem desse contexto, Jesuítas e Inquisidores em Goa é um texto atrativo, agradável, denso e, por tudo isso, interessante.

O tema do livro é a relação do Ocidente com o Oriente no período de domínio dos portugueses sobre a Índia. O título do livro já evidencia qual o objeto trabalhado: a cristandade na ilha de Goa num período determinado, utilizando-se para explicar o conceito de cristandade a atuação da Companhia de Jesus e do Tribunal da Santa Inquisição. A autora apresenta como justificativa para a delimitação histórica o espaço de tempo entre o recrudescimento da repressão portuguesa à religião hindu, com a destruição de templos (1540), até a criação de uma congregação religiosa masculina exclusiva de padres nativos – Congregação do Oratório da Santa Cruz dos Milagres (1682), período esse em que tanto a Companhia de Jesus como a Inquisição são bastante atuantes no Oriente como um todo e em Goa de forma particular. A fundação da nova ordem religiosa simbolizou “a atitude do clero nativo diante dos problemas de enquadramento na vida eclesiástica local, mais especificamente, no anseio de participação nas actividades missionárias, e desnuda as grandes contradições do processo de cristianização que se desenvolveu na capital do Estado da Índia” (p. 29).

Olhar para o Oriente é experimentar uma vertigem própria de quem está perto de um precipício imenso que o separa do Ocidente: é esta a primeira conclusão de Tavares, expressa já na introdução:

Esta definição é uma bela metáfora sobre o desafio que se constituiu desenvolver o presente trabalho. Inúmeras vezes a tarefa de estudar a cristianização realizada na Índia por jesuítas e inquisidores nos séculos XVI e XVII pareceu um precipício, um enorme vão que distanciava a possibilidade de realização desse estudo. Apesar dos fios condutores das análises serem os conhecidos olhares dos inacianos e de juízes inquisitoriais, a realidade que eles descortinavam era a do complexo Oriente, de culturas com padrões muito diferenciados do ponto de vista de uma historiografia ocidental. Goa pode ser considerada como símbolo da vertigem, no seu limite. A cristianização, como sinónimo de ocidentalização, confronta-se na cidade com o hinduísmo, a sociedade de castas, o islamismo e uma série de outras redes culturais que se sobrepõem umas às outras, criando as familiaridades e os estranhamentos que são sempre enfrentados pelo historiador. (p. 27)

Para dar conta de explicar o objeto e tema delimitados são apresentados: o processo histórico de expansão comercial do Império Português, ou da criação do Estado da Índia (capítulo I); a história da criação da Companhia de Jesus e suas atividades nos domínios portugueses, destacando a sua atuação como mediadora cultural na Índia (capítulo II); a fundação e o funcionamento do Tribunal da Santa Inquisição em Goa (capítulo III); e a situação de Goa e do Estado da Índia no século XVII, período em que o poder português é questionado e quando se dá uma interpenetração cultural do cristianismo e das religiões e culturas autóctones (capítulo IV). Os capítulos são permeados pela apresentação do debate historiográfico em torno dos conceitos relativos à expansão portuguesa no Oriente, e também pela realização de um balanço historiográfico sobre a atuação, no Oriente, da Igreja e em particular da Companhia de Jesus.

A discussão apresentada se mostra pertinente, pois engloba três assuntos muito importantes para o conhecimento da história de Portugal e, por conseqüência, do próprio Brasil: o Império Português no Oriente, cuja capital era Goa; a atuação da Companhia de Jesus no Padroado português; a atuação da Inquisição em sua especificidade nas terras orientais. Além disso, um tema que perpassa toda a tese e hoje está na ordem do dia é o de interpenetração cultural, expressado no neologismo hinduização criado pela autora. Neste sentido é que se utiliza no texto o conceito de mediador cultural atribuído ao jesuíta em geral na sua atuação como missionário: “Mas com certeza o uso do conceito de ‘mediador cultural’ possibilita visualizar a práxis da evangelização dos jesuítas na sua diversidade” (p. 97). Também é interessante e pertinente a conclusão de que a mediação cultural é maior – ou a ocidentalização dos costumes nativos é menor – quanto menor é o poderio militar da Coroa portuguesa. Exemplo disso é a atuação jesuítica no Japão e na China. O livro de Tavares ganha importância, também, devido à pouca bibliografia existente sobre o assunto, revelando que continua sendo um tema a ser cada vez mais investigado.

A delimitação cronológica é ampla, e isto pode ser tanto um ponto forte quanto um ponto fraco do trabalho. Forte na medida em que é bem justificado para amarrar uma característica da cristandade insular de Goa com a criação formal e institucional de uma ordem religiosa formada apenas por padres brâmanes, mostrando que por causa da presença de uma diversidade muito grande de culturas e religiões em Goa, a hinduização passou pela própria Igreja Católica. A amplitude cronológica do tema pode, no entanto, ser também considerada frágil na medida em que os séculos XVI e XVII apresentam diferenças no domínio português no Oriente, com o fortalecimento dos inimigos nativos e a chegada e competição do poderio militar dos holandeses e ingleses no Índico. Também na religião há diferenças, na medida em que junto com os holandeses vêm os protestantes, que passam a rivalizar em algumas regiões com os missionários católicos. Apesar de compreender um período de 142 anos, a atuação do Tribunal da Inquisição e dos jesuítas não muda tanto, pelo que consta do próprio trabalho, o que pode permitir e justificar a ousadia da autora.

A metodologia utilizada por Tavares compreendeu o uso de fontes primárias, bibliografia historiográfica e bibliografia teórica para embasar suas conclusões. Nas partes em que apresentou tanto o processo histórico da expansão portuguesa como o de sua decadência, fez-se uso de balanços historiográficos.

As fontes foram bastante utilizadas e se mostraram bem diversificadas. Elas foram utilizadas basicamente quando foi apresentada a implantação e atuação do Tribunal da Santa Inquisição e dos padres da Companhia de Jesus; e ainda no último capítulo, quando o assunto é a fundação da nova ordem religiosa como uma espécie de síntese do cristianismo insular de Goa. Cartas jesuíticas, cartas dos governantes e prelados de Goa, relatos de viagens, processos do Tribunal da Inquisição, correspondência dos inquisidores, histórias e memórias coevas, foram fontes vastamente utilizadas por Tavares. É possível que o fato de ter feito um estágio – bolsa-sanduíche – em Portugal a tenha ajudado bastante a conseguir fontes tão difíceis de se ter em mãos aqui no Brasil.

A utilização das fontes foi bem dosada e utilizada principalmente nos momentos da tese em que elas eram necessárias, como, por exemplo, quando se apresenta o funcionamento do Tribunal da Santa Inquisição em Goa, em sua particularidade em relação aos outros tribunais portugueses da Inquisição. Também é muito rica e informativa a documentação utilizada para mostrar as questões polêmicas internas à Companhia de Jesus – como, por exemplo, a radical adaptação do jesuíta Roberto Nóbili, que se tornou brâmane entre os brâmanes –, revelando a existência de discussões acaloradas entre jesuítas do Oriente e o Geral em Roma. Enfim, para dar conta do tema Companhia de Jesus na finisterra da fé, os documentos contidos nas obras Documentação para a história das missões do Padroado Português no Oriente e Documenta Indica foram fundamentais.

Os balanços historiográficos são utilizados quando se apresentam temas que são polêmicos ou contêm polêmica em suas interpretações. É o caso primeiro do processo de expansão comercial de Portugal, ou da formação do Império Português, ou ainda, da formação do Estado da Índia, além do conceito de Império Português: A autora apresenta a discussão historiográfica de autores já clássicos portugueses do século XX (Antonio Sérgio e Jaime Cortesão), mas apresenta, também, a discussão mais atual e crítica portuguesa (Vitorino Magalhães Godinho, Luís Filipe Thomaz, Luis Felipe Barreto), além de trazer à baila discussões de historiadores não portugueses, mas que escreveram sobre o assunto (Charles R. Boxer, Frédéric Mauro, Bailey Difie & George Winius, Pearson, Sanjay Subrahmanyam, Marc Ferro). Apresenta também uma discussão historiográfica sobre as razões da implantação do Tribunal da Inquisição. Finalmente apresenta um balanço sobre a noção de crise e decadência do poderio militar português no Oriente a partir do final do século XVI. Mais do que trazer autores para justificar posicionamentos, Tavares parece querer, com os balanços historiográficos, mostrar que temas que aparentemente seriam inquestionáveis passam a ser bastante problematizados e criticados por uma historiografia mais atual.

A bibliografia utilizada como apoio e referência para algumas questões de fundo indica que o livro pretende ser, também, um exercício de história cultural. O uso recorrente de Braudel, por exemplo, já indicaria, por si só, essa preocupação metodológica. No entanto, quando são apresentadas as mais recentes discussões historiográficas é que a opção metodológica aparece com mais nitidez, na medida em que a própria autora indica a formação acadêmica dos historiadores trabalhados, como o indiano Subrahmanyam, apenas para citar um exemplo. É preciso salientar, no entanto, que não existe ao longo do livro declaração da autora de filiação a esta ou àquela metodologia histórica ou modelo historiográfico; não há, felizmente, uma confissão de fé historiográfica. O que há são indicações, exemplos, citações de autores, que caracterizam o texto como sendo um esforço de se fazer história cultural quando discute a cristandade insular em Goa. Esse esforço é perfeitamente sublinhado pelos conceitos-chave utilizados para sintetizar algumas questões: ocidentalização versus orientalização, hinduização, mediação cultural, etnocentrismo, aculturação etc.

No balanço historiográfico acerca das explicações sobre a situação portuguesa no Oriente durante o século XVII, Tavares mais apresenta a discussão do que propriamente toma partido por alguma teoria, demonstrando preocupação em disponibilizar para o leitor a complexidade da questão:

Portanto, para uns, crise, decadência ou declínio; para outros, reestruturação ou redefinição de linhas de força. Em todo caso, pode-se dizer que o século XVII assistiu a algumas transformações na estrutura do Estado da Índia. Até mesmo a capacidade de centralização das decisões em Goa viu-se abalada pelas pressões militares e perda de posições estratégicas por parte dos portugueses, e também pelo aumento da importância de outras regiões no Oriente, especialmente Macau… (p. 204)

Um mérito do trabalho, independentemente de o leitor concordar ou não com a metodologia e referencial teórico utilizados, é a preocupação em apresentar sempre uma bibliografia de apoio para os que queiram e possam aprofundar uma determinada questão ou aspecto dela.

Célia Tavares teceu seu argumento a partir da contextualização histórica. Foi uma escolha, na medida em que poderia ter ido direto ao assunto e depois voltado para o contexto. Depois de explanar o quinhentos português, destacando o processo de construção do Estado da Índia, ela optou ainda pela contextualização do tema, ao apresentar, sucintamente, a história da Companhia de Jesus e sua chegada a Portugal. Após mostrar os aspectos da atividade missionária dos jesuítas, destacando a mediação cultural deles, apresenta a discussão histórica acerca da instalação do Tribunal da Inquisição em Goa, bem como o seu funcionamento e, por último, os principais alvos da inquisição goesa. Termina seu argumento afirmando que em Goa, pela atividade missionária dos jesuítas, pela presença marcante da Inquisição, pelas características sociais, religiosas e culturais, formou-se uma cristandade típica, peculiar, insular, que teve na criação da ordem de padres católicos nativos uma síntese e exemplo de sua tese.

É no último item do livro que é apresentada a formação da Congregação do Oratório da Santa Cruz dos Milagres como um marco do processo de evangelização cristã daquelas terras. Tavares procura mostrar a discussão acerca da conveniência, no século XVII especialmente, de admitir os nativos à condição de clérigos. Muitos fatores favoreceram essa política, que, no entanto, permaneceu contraditória, na medida em que se aceitavam os nativos para o clero secular, mas não se abria possibilidade para que eles ascendessem na hierarquia; bem como, houve sérias restrições por parte das ordens religiosas, dentre elas a própria Companhia de Jesus, à admissão de padres nativos. A Congregação dos padres goeses foi aprovada pelo papa Clemente XI em 1703, sendo que em 1682 começaram as primeiras discussões em torno de sua criação. A nova ordem seguiu de perto os estatutos da Congregação do Oratório de S. Felipe de Néri, criada em 1550 e introduzida em Portugal em 1668.

A fundação de tal ordem religiosa é mostrada como algo inédito no processo de cristianização do Oriente, sendo resultado, dentre outros motivos, de uma desilusão do clero nativo com a Igreja e as ordens religiosas que, sub-repticiamente, não os tratavam com igualdade.

O argumento central do livro foi construído na direção de valorizar as apreensões historiográficas mais atuais e críticas de um certo etnocentrismo, na medida em que as conclusões apontam para uma interpenetração de culturas, e não somente a imposição de uma cultura – européias, ocidental – sobre outra – nativa, oriental.

Conclui a autora que tanto o Tribunal da Inquisição como a Companhia de Jesus se preocuparam e se ocuparam grandemente da cristianização do Oriente, particularmente de Goa. Ambas as instituições foram as mais importantes hostes do processo de ocidentalização da cultura hindu. No entanto, na prática das suas atuações, a Inquisição se prestou mais ortodoxamente à ocidentalização dos costumes do que a Companhia, a qual procurou – e muito – fazer o papel de mediadora cultural.

Na construção do argumento e na justificativa do tema e objeto não se encontra, de forma clara pelo menos, um julgamento a posteriori tanto dos portugueses que construíram o Estado da Índia como do Tribunal da Santa Inquisição, ou mesmo da atuação dos jesuítas ou outros religiosos. Apesar de em alguns momentos se “ouvir” uma voz de denúncia do etnocentrismo e do uso da violência no processo de dominação portuguesa e de evangelização jesuítica, não se encontra no livro como um todo uma cobrança intempestiva, historicamente falando-se, de atitudes mais ou menos condizentes com os valores iluministas construídos ao longo do século XVIII e tão cultivados entre nós atualmente.

Tavares conclui sua obra procurando demonstrar que a originalidade da cristandade em Goa reside no fato de que aquela cidadela se tornou uma síntese singular de todo um contexto de interpenetrações, constituída a partir da “ocidentalização dos hindus, a orientalização ou indianização dos portugueses e a insularidade do catolicismo goês, finisterra da cristandade lusitana” (p. 249).

Finalmente é conveniente informar que o livro de Tavares é prefaciado por José Eduardo Franco, professor do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira da Universidade Católica de Portugal, que faz uma interessante discussão sobre o tema da complexidade na história.

Quem tiver a grata oportunidade de ler Jesuítas e Inquisidores em Goa terá em mãos um livro caprichosamente editado, cuidadosamente escrito; e terá, também, a sensação de ter sido colocado a par de um tema de vital importância para, inclusive, os estudos acerca da formação histórica e cultural do Brasil.


Resenhista

Célio Juvenal Costa – Professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: costacelio@terra.com.br


Referências desta Resenha

TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682). Lisboa: Roma Editora, 2004. Resenha de: COSTA, Célio Juvenal. Diálogos. Maringá, v.9, n.2, 223-229, 2005. Acessar publicação original [DR]

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