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Je suis um monstre qui vous parle: rapport pour une acedémie de psychanalystes | Paul B. Preciado

Paul Beatriz Preciado é filósofo, ativista e curador. Um dos teóricos mais importantes da teoria queer. É uma das vozes críticas das desigualdades nas relações de poder que dominam o mundo capitalista, colonial e heteropatriarcal. O autor tem se proposto na sua atividade intelectual agir como um corpo falante, dessa forma, tem sugerido desconstruir as tecnologias sexuais que o oprimem em termos de género, sexo e natureza. Outras obras importantes do seu percurso são: Pornotopía (2010), Testo Yonqui (2009), Manifesto Contrassexual (2000), Um apartamento em Urano (2020b).

Je suis un monstre qui vous parle: rapport pour une académie de psychanalystes1 é o título do discurso através do qual Paul B. Preciado faz uma crítica radical à academia de psicanalistas de Paris. Reunidos ao redor do tema “Mulheres na psicanálise”, nas Jornadas Internacionais de l’Ecole de la cause freudienne, o autor encarnou um desafio do nosso tempo: repensar a crise do paradigma epistemológico-ontológico para transgredi-lo, não só no interior dos debates psicanalíticos, mas também em outras áreas do saber.

Para exemplificar este procedimento, Preciado escolheu se identificar com um sujeito mutante: o macaco kafkiano Pedro, o Vermelho (1917)2 um sujeito que não se sente em casa no próprio corpo. O autor expõe através dessa metáfora a prisão do paradigma hegemônico, visibilizando e construindo articulações analíticas ao propor um outro paradigma das monstruosidades falantes. Distingo três aportes centrais da sua argumentação:

1) Crítica à epistemologia dominante (racional-científica) da diferença sexual.

Contra a universalidade do pensamento proposto pela Lei paterna em Freud e Lacan, Preciado propõe a crítica à epistemologia dominante (racional-científica) da diferença sexual. Ao contribuir com a visibilidade do contexto cultural e político na produção e reprodução do conhecimento, ele denuncia o regime heteropatriarcal, colonial e capitalista.

Segundo o autor, a teoria psicanalítica precisa de ser revisitada para elaborar novas ferramentas de trabalho, pois ela compartilha três taxonomias: a diferença sexual; o racismo eurocentrado; e o sistema binário entre a norma e a patologia. Ao situar o contexto económico-político e social do nascimento da teoria psicanalítica, Preciado procura argumentar a produção da invisibilidade dos corpos mutantes que falam. O seu objetivo é desmontar o sistema heteronormativo na abordagem psicanalítica da sexualidade relembrando, ao mesmo tempo, uma “crítica ao humanismo colonial europeu e as suas taxonomias antropológicas” (PRECIADO, 2020: 16). Como argumenta o autor:

É interessante pensar a psicanálise freudiana, como teoria do aparelho psíquico e como prática clínica, que foi inventada justamente na época em que se cristalizaram as noções centrais da epistemologia das diferenças raciais e sexuais: raças evoluídas e raças primitivas, o homem e a mulher definida como anatomicamente diferentes e complementários por seu poder reprodutivo, como figuras potencialmente paternas e maternas, respectivamente, nas instituições familiares coloniais burguesas; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade entendidas respectivamente como normais e patológicas (PRECIADO: 77).3

Nos discursos coloniais psicanalíticos há uma ausência cognitiva: o trauma como produto histórico da opressão sexual, de género, de raça e de classe e as suas consequências na conformação da psique. Um abismo que reproduz o sistema em que as alteridades subordinadas constituem o exótico, estranho e monstruoso reflexo da branquitude heteronormativa (ESPINOSA, 2007).4

Mas, quais são os impactos de viver o corpo e a sexualidade como uma doença? O procedimento de identificar, diagnosticar e solucionar as patologias individuais, apoiado pela suposta autonomia do saber médico, quando é aplicada aos estudos da realidade social em geral, produz a patologização da mesma. De fato, o exclusivismo epistemológico e a intervenção da saúde pública em corpos diversos criou o ambiente propício que leva a pensar estes corpos no marco da doença. O sofrimento causado pela hegemonia do saber biomédico potencializou formas de dominação, exploração e exclusão que reproduz zonas de não ser (FANON, 2009). Nas palavras do autor:

O corpo trans é a Colônia (…). A psicologia clínica e a medicina participam de uma guerra para a imposição e normalização dos corpos trans.

O migrante perdeu o Estado-Nação. O refugiado perdeu a sua casa. A pessoa trans perdeu o seu corpo. Eles atravessam todos as fronteiras. As fronteiras os constituem e atravessam. Os destitui e os derruba (Preciado, 2020a: 5).

A destituição da pretensão universalista, tão cara à teoria psicanalítica da sexualidade,5 acaba por se limitar à energia psíquica heteropatriarcal (HALBERSTAM, 2008) ao potencial reprodutor (pênis ereto, penetrante e que ejacula), e à posição de poder discursiva e institucional. É crucial uma revisão não só do Complexo de Édipo, mas também de outras noções tais como: a organização da libido; atividade-passividade; inveja do falo; complexo de castração; mulher fálica; amor genital; histeria; masoquismo; bissexualidade; androgenia; fase fálica; posição edipiana; estados pré-genital e genital; perversão; coito; prazer preliminar; homossexualidade e heterossexualidade.

Da mesma maneira, não é unicamente uma questão do inconsciente estruturado como linguagem, como faz Lacan no seu meta-sistema sobre a ordem simbólica do real. Segundo Preciado, o autor também contribui à normatização/regulação, por exemplo, de crianças intersexuais e a patologização da transexualidade (PRECIADO, 2020a: 92-93).

Para Lacan, os transexuais são as vítimas psicóticas de um erro: “eles confundem o órgão com o significante”. É possível se livrar do órgão, mas não é possível se livrar do “significante” da sexuação, da ordem simbólica que divide todos os seres em masculino e feminino, afirma Lacan (PRECIADO: 102).

O sistema de diferença sexual não pode esquecer que a linguagem está inserida dentro de um sistema racial, do binarismo sexual e da genealogia patriarcal da sociedade, em outras palavras, das suas relações de poder desiguais e da exclusão social e econômica entre gêneros, sexualidades e raças. A redução da realidade social à linguagem ou à discursividade cria um abismo entre as práticas não discursivas -de corpos diversos que falam-, invisibiliza práticas de silenciamento e, portanto, do discurso de grupos sociais subalternizados. Assim:

A psicanálise não é uma crítica dessa epistemologia, mas a terapia necessária para que o sujeito patriarcal-colonial continue a funcionar, apesar dos enormes custos psíquicos e da violência indescritível desse regime. Diante de uma psicanálise despolitizada, precisaremos de uma Clínica radicalmente política que comece com um processo de despatriarcalização e descolonização do corpo e do aparelho psíquico (PRECIADO: 85).

2) Promoção de uma união pluralista e interseccional na produção de saberes.

Preciado questiona a desunião dentro da diversidade com o objetivo de fomentar uma união pluralista e interseccional na produção de saberes. Ele busca ouvir uma conjunção de vozes oprimidas e aponta para a necessidade de novas tecnologias que se fazem necessárias, a partir das quais os corpos falam e produzem conhecimentos pluriversais.

Em sua obra,6 Preciado faz uma crítica à três estruturas do pensamento ocidental contemporâneo (medicina, direito e psicanálise), com o objetivo de exemplificar o sistema de produção de violência epistêmica e necropolítica (MBEMBE, 2001). Compartilha elementos teórico-metodológicos que já têm sido estudados em várias escolas de pensamento: os estudos da subalternidade (SPIVAK, 2010), (CHAKRABARTY, 2000); os pós-colonialismos (WA THIONG’O, 2015), (LOOMBA, 1998); a decolonialidade (QUIJANO, 2014), (LUGONES, 2014); os feminismos plurais (CRENSHAW, 1989), (HAMMONDS, 1997), (LORDE, 1993); (FRANCO, 2014); os  black queer studies (LANE, 2016), (JOHNSON, HENDERSON, 2005); transfeministas (GALINDO, 2011), (ROJAS, GODOY, 2017), entre outras.7

Sem a expressividade das feridas de classe e raça dentro da subalternidade sexual, a monstruosidade pode também gerar violência e ser construída, novamente, a partir do silenciamento de alteridades colonizadas(MAMA, 1995). É um erro reduzir a diversidade de experiências a favor de uma suposta unidade entre anormais-monstruosos com o objetivo da liberação sexual sob o paradigma de Ocidente, como pretende o discurso branco-queer. Os black queer studies têm chamado a atenção sobre esta condição: “os black studies têm historicamente omitido questões de (homo)sexualidade e/ou como os estudos queer omitem questões de raça” (JOHNSON; HENDERSON, 2005: 17). Como argumenta Zabus:

A representação crescente do desejo pelo mesmo sexo fora do vocabulário de desvio e arrependimento está ligada a ajudar a quebrar a cegueira epistêmica africana para um desejo que é universal, mesmo que seja culturalmente relativizado e composto por especificidades locais e temporais. No entanto, os homossexuais africanos nunca podem ser confortavelmente inseridos nas políticas de identidade esculpidas nas lutas de libertação de gays e lésbicas ocidentais, e mesmo exibindo características (pós)queer, das quais modelos alternativos de subjetividade podem ser gerados. Outras subjetividades emergentes também são criadas pelas novas mídias (ZABUS, 2021: 393).

Em outras palavras, uma política das identidades essencialista só reforça as estruturas de poder predominantes. Daí que, de acordo com Haraway, a “monstruosidade inapropriada/vel” não deverá ser um mero reflexo ou espelho da alteridade, mas uma possibilidade de ir além da crítica desconstrutiva. São as diferenças que geram interferência difrataria para criar novos inter-saberes.

A “consequência” dessa tecnologia generativa, fruto de uma gravidez monstruosa, poderia ser equiparada ao “inapropiado/vel […]. A posição histórica daqueles que não podiam adotar a máscara do “eu” ou do “outro” oferecida pelas narrativas ocidentais modernas da identidade e política anteriormente dominantes. Ser “inapropiado/vel” não significa “estar em relação com” […]. Significa estar em uma relação crítica e desconstrutiva, em uma racionalidade difratária e não refratária, como formas de estabelecer conexões poderosas que vão além da dominação. Ser inapropriado/vel é não se encaixar na taxon, é estar colocado no lugar errado nos mapas disponíveis que especificam tipos de atores e tipos de narrativas, mas também não deve ser originalmente ficar preso pela diferença (Haraway, 1999: 125-126).

Os diversos domínios científicos, analisados desde uma perspectiva interseccional (OYÊWÙMI, 2001); (COLLINS, 2000), contribuem ao nascimento de um novo paradigma epistémico. A expressividade e performatividade dos corpos são essenciais não só para a transformação das espacialidades, mas também da produção e reprodução social. Uma crítica refratária à racionalidade moderna-eurocêntrica e etnocêntrica e à sua pretensão de universalidade (ALEXANDER; MOHANTY, 2010) poderá conduzir, finalmente, a caminhar em direção a uma epistemologia da corpo-política.

3) Apelo à ocupação da espacialidade.

Preciado apela para a ocupação da espacialidade que habitamos, para coletivizar a palavra, politizar os corpos, desbinarizar a sexualidade e descolonizar o inconsciente. Para ele, um novo paradigma científico só poderá sobreviver se responder aos desafios da diversidade e heterogeneidade ontológica do mundo.

Uma descolonização do inconsciente é um imperativo no trabalho do autor, cujo objetivo é gerar um reconhecimento dialógico entre conhecimentos e saberes dando uma especial atenção aquelas formas de ser-saber que tradicionalmente têm sido marginalizadas e perseguidas, como acontece com os corpos trans. Metodologicamente, Preciado faz parte de uma linha de autoras que não escrevem sobre, mas escrevem desde o próprio corpo (HOOKS, BRAH, SANDOVAL, ANZALDÚA, 2004), procurando desafiar a taxonomia binária e racial de pessoas consideradas monstruosas para o sistema científico colonial heteronormativo (PRECIADO, 2019).

Eu, um corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como “transexual”, caracterizado na maioria dos seus diagnósticos psicanalíticos como sujeito de uma “metamorfose impossível”, situando-me, segundo a maioria de suas teorias, além da neurose, no limite ou mesmo em psicose, em sua opinião, incapaz de resolver corretamente um complexo de Édipo ou tendo sucumbido à inveja peniana (PRECIADO, 2020a: 16-17).

O autor procura pensar a partir da heterogeneidade da existência, passando pela relação de violência e desapropriação dos corpos, “do terror de ser anormal” (PRECIADO: 45). Os novos processos de identificação e a não simplificação binária homem-mulher, homossexual-heterossexual, configura cruzamentos e processos de hibridização pós-identitária. O seu fundamento é a crítica ao caráter puramente performativo dos corpos (o género como efeito de práticas linguísticas e culturais), mas a importância da sua materialidade corpo-espacial. O caráter normativo das representações biológicas e os códigos culturais binários pertencem a um regime de verdade que é arbitrário a um novo paradigma de outras corpo-políticas epistêmicas.

É neste sentido que o estudo da “somateca”8 colonial do poder é uma proposta importante do Preciado: a ideia do estudo de arquivos políticos vivos mediados pelas instituições disciplinares hetero-coloniais e mono-sexuais do cânone científico moderno/ocidental. O trabalho de Federici (2017), sobre a história dos corpos das mulheres e caça as bruxas, é um grande exemplo da somateca a partir da crítica à divisão sexual do trabalho no capitalismo colonial-moderno, mas ainda é necessário pensar uma outra forma de organização política dos corpos e da sexualidade, da produção e reprodução social de subjetividades corpo-espaciais.

As principais questões levantadas nesta resenha do texto do Preciado foram: é a diversidade epistêmica do mundo um reflexo da pluralidade ontológica do mundo? Quais processos de inter-aprendizagem podem existir entre universos epistêmico-ontológicos diferentes, por exemplo, entre: sangoma no sistema Zulu; muxe e nguiu no sistema Zapoteca; machi weye no sistema Mapuche; kuchu em Swahili; oxumarê no candomblé; hijra no hinduísmo, para nomear algumas? Como ampliar o conhecimento de formas de desejo que não podem ser inscritas discursivamente na linguagem hegemônica brancaqueer, pois, têm um conteúdo cultural, histórico e colonial diferenciado que impede a tradução direta dos gêneros e sexualidades?

Da mesma forma em que Pedro, o Vermelho, não quer morrer patologizado ou exotizado em uma prisão epistemológica antropocêntrica, existe também o risco de viver em uma prisão epistémica monstruosa, que embora questione o sistema heteronormativo, termina por suprimir as diferenças ontológicas, subjetividades e corporalidades a favor da unidade essencialista epistemológica. Uma postura ontoepistémica de corpos falantes deverá fazer uma ruptura conceptual com marcos analíticos que só reconhecem um tipo de corporalidades e determina outros como produto do desvio, assim poderão emergir novas ferramentas uteis para a produção e reprodução de subjetividades.

Notas

1 Disponível em Espanhol na editora Anagrama. Ainda não existe uma tradução ao Português. O autor preconizou no texto que atualmente trabalha numa ampliação à crítica do pensamento psicanalítico da sexualidade em Freud e Lacan.

2 Um relatório para uma Academia.

3 Todas as traduções são minhas.

4 A luta anti-manicomial e a Reforma Psiquiátrica brasileira são exemplos da crítica radical ao saber psiquiátrico a partir da afirmação da dignidade humana e contra a razão excludente. Para uma crítica europeia da psicanálise: Francesc Tosquelles, Félix Guattari, Jean Oury.

5 Para uma critica anti-racial, anti-colonial da teoria de Freud e Lacan ver: Fanon (2009), González (2020), Kilomba (2019), Segato (2015) que ensaiam uma leitura psicanalítica situada no Sul global.

6 Cfr. Manifesto Contra-sexual (Orfeu Negro, 2000), Pornotopia (N-1 edições, 2020), Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica (N-1 edições, 2018); e, Um Apartamento em Urano (Bazarov, 2020).

7 Não é meu objetivo simplificar toda a diversidade de autoras e autores que trabalham desde uma perspectiva da subalternidade, pluriversal e interseccional situada, mas contribuir ampliando o debate que Preciado traz no seu discurso. Inclusive é uma tarefa muito complexa categorizar cada uma delas dentro de uma corrente específica, pois transitam de um lado para o outro, nos interstícios criados pelos seus próprios pensamentos em travessias.

8 Cfr. https://www.museoreinasofia.es/pedagogias/centro-de-estudios/somateca-produccion-biopolitica-feminismos-practicas-queertrans

Referências

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Resenhista

Fabián Cevallos Vivar – Investigador em Pós-doutoramento, Faculdade de Belas-Artes. Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, CIEBA. Universidade de Lisboa. E-mail: fabiancvivar@gmail.com


Referências desta Resenha

PRECIADO, Paul B. Je suis um monstre qui vous parle: rapport pour une acedémie de psychanalystes. Paris: Bernard Grasset, 2019, 2020a. Resenha de: VIVAR, Fabián Cevallos. Corpo-Política Epistémica: a Monstruosidade Falante. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.21, n. 1, p. 282-290, 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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